3 minute read

Mulheres que se cuidam são mais felizes

Kelly Cristina Oliveira

Fátima escreve para uma revista feminina, assim como eu. Somos colegas de trabalho da Revista Mulheres Notáveis. Nesta segunda-feira, em plena pandemia e véspera de Finados, estamos trabalhando no escritório localizado numa das avenidas mais movimentadas de São Paulo. Além de nós duas, que sempre chegamos às oito em ponto, lá pelas dez, chega o nosso subchefe com a brilhante pauta do dia, segundo conta: “Mulheres que se cuidam são mais felizes”.

Advertisement

Enquanto desenvolvo o texto, meus sentidos são interrompidos por uma fragrância masculina... Eis que olho discretamente para o lado, e o vejo debruçado em cima da mesa de Fátima. Realmente eu não entendo como ele consegue fazer isso parecer tão natural. Os comentários feitos na repartição, quando ela não está por perto, me incomodam ainda mais que uma intimidade forçada. É quando ele a chama carinhosamente de “safadinha”.

Preciso me concentrar: “Mulheres que se cuidam são mais felizes”. Difícil, sabendo que deixei a bebê com febre na creche. Mesmo medicada é ainda muito novinha para se afastar da mãe o dia todo. Após sair daqui preciso buscá-la, depois passar no mercado para comprar algumas coisas para preparar o jantar. Estou exausta porque está chovendo e a casa ficou quase toda alagada. Ontem passei horas durante a madrugada colocando baldes e puxando a água da chuva. Nem pensar em chegar atrasada no serviço. Meu dente dói, lembro que

Um teto todo nosso: narrativas curtas preciso ir ao dentista. Mas quando? Devo lembrar também que ontem foi o último dia para fazer a mamografia, esperei 3 meses para marcarem a consulta, e na hora exata não pude ir.

Enquanto isso, meu subchefe está programando as suas férias, provavelmente Caribe, Itália ou quem sabe Londres ou Espanha dessa vez. Alguns sub chefes parecem ter férias permanentes. Ele é um homem bonito, bem formado, tem pós-graduação e até curso no exterior, mas não tem habilidade nenhuma para ocupar um cargo de liderança. A sua voz ao telefone e a maneira de gesticular lembrou-me de uma grande apresentação teatral. A entonação de voz, mais alta e mais grave, e aquele sorriso sarcástico preenchem toda a repartição, ele anda de um lado para o outro e solta um grito às vezes.

Não sei se Fátima já conseguiu escrever com todo barulho que ele faz ao telefone. É praticamente impossível concentrar-me no texto. Todas as vezes que começo a escrever: “Mulheres que se cuidam são mais felizes”, olho para Fátima e percebo que ela não tem maiores ambições na vida, e, ainda que tivesse, levaria anos luz para conseguir comprar o seu primeiro lote, veja lá a casa própria. Está sempre cabisbaixa, passa-me a impressão de estar sofrendo algum tipo de depressão, ou assédio psicológico. Com certeza, toda a humilhação que ela passa nesse lugar nada tem a ver com o que preciso escrever. Esse título me lembra mais uma vez que não tenho dinheiro suficiente para pagar uma academia de ginástica. Se eu quiser cuidar da saúde, a opção é vir a pé para o trabalho, saindo de casa duas horas antes do expediente.

Mais uma vez, sou interrompida por ele falando ao celular. Deveria estar fechando o negócio de um novo apartamento, ou uma TV de 80 polegadas. E ainda lhe sou muito grata, por ele não embolar o meu texto e me jogar na face como faz sempre com a Fátima, exigindo que escreva de novo. Por mais que eu e Fátima nos esforcemos para terminar com louvor o texto “Mulheres que se cuidam são mais felizes”,

Um teto todo nosso: narrattivas curtas 67 é certo que ele irá reeditar várias vezes, só para ter a certeza de que é melhor do que a gente.

Tenho sede, esqueci minha garrafinha de água hoje. Somente na sala dele tem água. Fora isso, alguns gritos que temos que suportar às vezes.

–Mulheres que se cuidam são mais felizes? Já terminou? Qual mulher não gostaria de se cuidar? Claro que mulheres que se cuidam são mais felizes. As que têm tempo, dinheiro e oportunidade para se cuidar vivem mais e têm melhor qualidade de vida. Faltam apenas poucos minutos para entregar o texto, ele dá uma ordem:

– Uma das duas, pega um pano de chão e ajuda a enxugar essa sala que está bastante molhada. Olho para a sala e para o corredor, tudo está encharcado por causa da chuva. Lembro da minha casa alugada que deve estar muito pior. Fátima pega o pano de chão e começa a limpar. Ele olha para mim com desaprovação por eu ainda estar sentada, e com a boca seca. E olha para ela e canta - lerê, lerê... Fátima torce o pano e vê uma faquinha que fica bem em cima do frigobar, nervosa. Ele continua cantando. Olho para o relógio, o tempo está acabando e amanhã é dia de Finados. De repente, Fátima levanta rispidamente o rodo, interrompendo aquela gozação e ameaça dar uma cabada bem no braço dele, e sai correndo da sala, sem entregar o texto. Ele solta a última:

– Essa mulher é completamente louca! Mulheres que se cuidam são mais felizes.

Um teto todo nosso: narrativas curtas

This article is from: