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Obituário em vida

Taís Panapaná

Hoje, 19/02/2022, eu, Carla Joana Feitosa Nascimento, faleci.

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Tenho certeza de que fui uma pessoa controversa, questionadora, de opiniões fortes, daquelas pessoas intensas a quem muito se ama ou muito se odeia.

Por tempos reneguei minha intensidade e tentei viver de uma forma mais padrão, mas o desejo de transformação veio instalado em minha alma - se para enfrentar todas as dificuldades que viriam ou se foi gerado por causa destas dificuldades, não sei. Me aventuraria em dizer que foi pelos dois.

Tive muito medo, muito medo mesmo.

De novo, não sei dizer se tanto temor surgiu antes ou depois de muitos dos acontecimentos e reviravoltas de minha vida, mas, como dizem, segui vivendo profundamente ainda que com meus temores (lidando com eles).

Muitas vezes agi na força da raiva que pulsava dentro de mim, agressões aos outros e principalmente a mim mesma, ao meu corpo, mente e espírito. Não foi fácil aprender a me amar, ainda hoje, breves momentos antes de minha passagem, o amor próprio seguia sendo uma questão de escolha, de permanecer firme olhando e aceitando minha luz. Enquanto outros buscam reconhecer a sombra, eu tive que me forçar a deixar minha luz brilhar.

Como escorpiana nata me encontrei na jornada do autoconhecimento e sempre tive clareza sobre minhas sombras. O dedo crítico apontado para os outros, era um mero mindinho, contra os outros nove que sempre apontei pra mim mesma.

Eu amei e amei e lutei até aprender a amar a vida, a mim mesma e aos outros, incansavelmente focada em evoluir. Acreditei piamente que vim nessa vida pra sair dela melhor e, se é certo que ainda havia muito o que aprender, também está claro que vou melhor do que entrei e muito!

Construí minha família, me tornei mãe como sempre sonhei e tudo isso com meu melhor amigo, a pessoa que mais me conheceu neste mundo, meu amor companheiro, Bernardo.

Ao lado dele me vi digna de amor mesmo com meus maiores defeitos. Pude amá-lo e ver como meu amor regou seus sonhos e também lhe ensinou a se ver com outros olhos, como ele me ensinou.

Olhos de amor, um amor tão grande e profundo que gerou outros dois amores. Uma sintonia tão forte que me trouxe mais certezas de que a vida é generosa.

Agradeço aos meus amores, à minha primogênita amada que escancarou meu ser, me ensinou sobre a beleza da vida e me inundou com seu viver artístico. Meu caçula eu agradeço por encher minha vida de coragem, com seu jeito meigo e impetuoso, se jogando na vida, literalmente.

Digo meus, por serem meus amores e também por escolherem a mim mesmo sendo livres para escolher qualquer outra pessoa. Acredito mesmo que meus filhos me escolheram e quando duvido de mim mesma, lembro que os mereci. Eu mereci ser feliz e fui.

Carreguei tristezas e dores até meu túmulo, mas não permiti que me carregassem pela vida, a qual eu vivi plenamente, intensamente, profundamente e orgulhosamente.

Levo comigo os que amei e me amaram. Levo comigo aprendizados e sabedorias extraídas das demais relações, afinal, sempre fui

Um teto todo nosso: narrativas curtas boa nisso, em aprender, em querer saber sempre mais, curiosa dos ensinamentos da vida e dos livros.

Nem tudo foram flores, mas com coragem transformei minha existência. Tive coragem de ir atrás do emprego que queria e de largá-lo quando não me apetecia mais. Questionei as regras implícitas e explícitas da vida obstinadamente e busquei minha liberdade da própria caverna que por vezes eu mesma me prendi.

Deixo aqui minha história de vida como uma doação espontânea, de coração, quem sabe minhas dores (e também conquistas e alegrias) possam inspirar alguém. Mostrar que sempre é tempo de mudar e de buscar fazer diferença e deixar uma contribuição para que o mundo mude.

Sempre acreditei no poder das transformações individuais e na contribuição delas para uma mudança global. Vou embora fazendo minha parte e feliz com o que construir, certa de que o amor agora me leva até os meus, que me precederam na passagem, e me mantém conectada aos que ficam por mais tempo cumprindo sua missão.

Estou viva, vivíssima, mais viva que nunca. A consciência da morte apenas me faz viver com mais consciência, vontade e verdade aos meus desejos.

Com afeto, Carla.

Fecho essa carta que escrevi de próprio punho. Respiro fundo, pois ainda há ar em meus pulmões. Fazer o obituário em vida nos ajuda a diminuir o medo da morte e, ver a vida em perspectiva, nos ajuda a buscar melhor nossos maiores desejos, disse a professora na aula de hoje que foi sobre luto.

Ela não disse expressamente sobre a necessidade do obituário ser sobre nossa própria história e a minha não seria tão bonita. Meu nome é Fernanda, tenho 16 anos e estou aqui obrigada, após ter falhado até mesmo em tirar minha própria vida.

Um teto todo nosso: narrattivas curtas 71

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