4 minute read

Onde se jogam pensamentos vencidos?

Rafaela Cukierkorn

NOTA – passado, presente e futuro são tempos que se confundem, uma vez que a linearidade aqui segue a linearidade de uma história sem linha, sem fio condutor e muito mais construída nos processos mentais de uma pessoa, do que nas ações físicas e concretas dessa mesma.

Advertisement

“Deve ter um lugar em nossa mente que funciona como um limbo, um buraco negro dos esquecimentos... Onde se pode jogar todos aqueles pensamentos que sabemos que já venceram, mas que a data está apagada da embalagem.”

Assim ela acorda. Assim ela passa o dia e dessa mesma forma que vai dormir. Não me levem a mal, é claro que há outras coisas que conseguem chegar a lugares de prioridade e ocupar essa linda mente conturbada e confusa. Mas é esse o pensamento que fica, constantemente, no fundo da cabeça. Como aquele cenário único de uma peça de teatro barata.

Tenho outra verdade chata para compartilhar... Na realidade, a personagem de pensamento conturbado é minha irmã. Pois é, cá estou contando uma história que nem é minha, mas é como se fosse.

Foram, ou melhor, são mais de 3 anos que o loop daquele primeiro parágrafo atormenta a todas nós. Sim, tem outras mulheres envolvidas nessa história, mas me atentarei apenas àquela que origina os

Um teto todo nosso: narrattivas curtas 75 pensamentos. Enfim, 3 anos e um tanto de enormes e inúmeras tentativas de esquecer, deixar a história e o passado irem embora.

Para ser tão grudento assim, tinha que ser amor, não é mesmo? Foi, amor, a tomou e a revirou.

O começo da história é aquela lindeza de sempre, é feliz e melosa.

O problema foi o depois. Ele que decidiu que a torturaria mentalmente, ela que se prendeu na ideia de que tinha que ser essa figura ideal para a figura ideal que ela mesma havia criado em sua cabeça (só que ele era só mais um homem). Ele que era mais velho. Ela que era nova no país. Ele que era tudo aquilo que ela pensava que queria. Ela que se mostrava ser tudo aquilo que ele buscava. Ele se dizia feminista. Ela via ele ser um grande abusador perante ela, sua parceira. Ele precisava de espaço e tempo. Ela só queria estar junto.

O meio da história foi um belo de um emaranhado. Do tipo que nem mais dá para saber se esse amor continua sendo romance ou se se tornou só um tipo estranho de dependência. Ela fugiu. Por cansar de não saber, por cansar de chorar, fugiu. Atravessou um Oceano, teve que se afundar nas profundezas de vários sofás para conseguir voltar e sentar e se divertir ao som de uma série boba.

Às vezes determinação de nada adianta. Porque ela volta e tudo volta. Tudo se confunde, tudo se emaranha. Ela teme estar sozinha. Ela teme perder aquele que mostrou um mundo ao qual ela pensou que poderia pertencer. Ela teme se perder nesse mundo do qual até agora não conseguiu pertencer. Os temores e angústias são tantos que quem passa a ditar as regras do jogo dela é seu medo, sua transmutação em bola de medo.

O chão vira um tapete de ovos. Onde ninguém pode pisar com muita força.Qualquer peso a mais e todos os ovos se quebram.

Estamos chegando ao final.

O medo é passageiro. É disso que ela se convence. Descruza o Oceano antes atravessado, se afasta o máximo que pode. E como o

Um teto todo nosso: narrativas curtas medo é passageiro, assim também seria ela. Passageira. O problema é que, ao se enquadrar como passageira, foi isso que se tornou de sua própria vida. Passageira e não motorista. E em trem que não tem condutor, qualquer um pode guiar. E ele guiou. E ela deixou. Mais uma vez.

O medo de passageiro nada tem. Ele ficou, se transformou, mas ficou. Agora era com essa dupla imbatível, ele e o medo de maquinistas da vida dela. E assim mais um medo nasce e entra para a família. Afinal de contas, ela só queria se encontrar. E o medo de isso nunca acontecer? De nunca pertencer, de nunca entender as paixões verdadeiras, de deixar escapar, perder a oportunidade... Esses medos ela sabe que não são passageiros. Esses, ela sabe que cultiva e que eles brotam no solo que for. Ser alguém que ela mesma admire.

Ele vai embora. E ela sofre.

Ela sofre mais que tudo. Porque agora seu trem estava parado, e não tinha ninguém que o conduzisse. Eu disse que estava chegando no final. Pois bem, ela larga o trem e de bicicleta segue para longe. Leva consigo os medos que a encarnaram nele, que a deslocaram dela mesma e até os medos que a fizeram seguir. Esse não é o final.

Desse momento em diante, voltamos ao primeiro parágrafo. “Deve ter um lugar em nossa mente que funciona como um limbo, um buraco negro dos esquecimentos... Onde se pode jogar todos aqueles pensamentos que sabemos que já venceram, mas que a data está apagada da embalagem.” A necessidade de tê-lo por perto, da impressão dessa necessidade, de querer que ele a tenha em pensamento, a ilusão de que ela quem falhou, ela que não conseguiu sustentar a personagem que se prometeu ser. Era tudo isso que deveria ter caído no limbo da mente. Mas não caiu.

De um parágrafo para o outro um ano se passa. E o limbo ainda não apareceu.

Um teto todo nosso: narrattivas curtas 77

Ela, aos poucos, foi realocando os sentimentos, deixando uns vazios no vazio mesmo e outros preenchidos de outras coisas. Até as águas que a inundavam por dentro se acalmaram.

Até ontem.

É fácil esquecer o medo e o sofrimento quando se está longe. Preencher com outras realidades. Mas ontem, depois de, novamente, cruzar (ou descruzar) o Oceano, ela se lembrou. E o medo voltou.

Só o medo pode voltar. Ela não. Ela segue sem voltas. E por isso o medo. Cair nas condições dele beira o perigo. Beira o possível. Ela enfrentou muitos medos, crateras muito maiores para chegar nesse aqui e agora. E ainda assim esse é o medo que gela o estômago. Ela não pode voltar. Mas ela precisa retornar.

“Quando vou te ver?”

4 palavras, péssima escolha.

Cada medo que se supera, deve ser um medo que se enfrenta. Ela soube olhar de frente, bater no peito e seguir, na boca do medo, na cabeça do incerto. Ela soube fazer do medo, apenas algo que ela ainda não conhecia. Mas dessa vez ela conhece, ela conhece toda a situação, conhece ele, conhece tudo. Mas já não se conhece nesse enredo de ele com ela. Vê-lo, senti-lo é abrir portas para uma viagem ao seu próprio passado. Mas vê-lo e senti-lo é a forma de finalmente criar o tal limbo.

Amanhã ela vai vê-lo.

Mas para uma coisa o exercício serviu, já que medo da morte nunca tive. Achei a vida de Carla inspiradora, quem sabe um dia esse obituário vira mesmo o meu.

Um teto todo nosso: narrativas curtas

This article is from: