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O retorno

Mirtes Santa Rosa

Ela sabia que aquele momento era mais do que a gota d’água. Foi o momento de ruptura. O constrangimento que sentiu foi tão grande que a fez ficar sem fala, não por ter sido mandada calar a boca mas por perceber que não tinha mais volta. Seu filho que se encontrava no banco traseiro do carro calou e foi olhar os carros que passavam na rua. A vida continuava e ela estava calada. Conseguiu respirar fundo e apenas decidiu continuar calada. A dor do fim era grande e ela escolheu ficar calada. Sua boca não emitiu som mas sua mente não calou. Ela ficou acesa, a mil por hora, pensava no que ia fazer no próximo dia, como seria conversar com seus pais sobre a separação e com os amigos que sempre estavam torcendo para que a crise do casal terminasse. O que ela queria que acabasse não era a crise e sim a apatia que tinha se abatido nela a tantos dias ou talvez anos. Ela sentia saudade de seu riso, de sua esperança, de sonhar, de resolver os problemas com companhia. Tudo tinha sumido. Quando sumiu? Ela buscou programar sua vida perfeita e se adequar a tudo e hoje percebe que esse foi seu erro. Os compromissos maternais eram tantos que ela se afogava sempre. Um dia desses ela começou a ler alguns livros que achava na espera da sala dos pais enquanto aguardava o filho terminar as aulas de natação. Esse momento duas vezes na semana era uma dos mais aguardados. Conseguia sentir a história de amor dos livros. Só escolhia e comprava romances que tivesse final feliz e poucos dramas. De drama e dificuldade bastava a vida amorosa dela. Em que momento eles se distanciaram ela não sabia precisar. Sua terapeuta

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Um teto todo nosso: narrattivas curtas 79 diz que ela deve tentar lembrar. Que ela precisa ser sincera consigo e com o marido. Que ficar se questionando sobre o quando para racionalizar pode estar bloqueando a busca pela resolução do que deve fazer frente aos desafios de seu casamento. Mas o que fazer? Ela quer continuar dentro desses livros que tem final feliz. Quer morar neles. A realidade que vive assusta e faz inclusive ela ter vontade de fumar, beber e fugir da realidade. Ela já imagina seus pais lhe dizendo que o casamento é indissolúvel e a pior pergunta será feita depois do sermão da moral e bons costumes. Como eu pretendo me sustentar? Se eu sei o valor do quilo da carne ou do azeite de oliva e blueberry que eu tanto amo usar na minha dieta eterna. No mundo em que vivo, nenhuma grama a mais é permitida nos corpos femininos. Que vontade de gritar e xingar, mas eu continuo calada, os carros continuam passando por nosso carro, olho para o velocímetro e marca 80 km/ hora mas parece que estou em câmera lenta. Quero sair desse slow motion que se tornou a minha vida. Quando estava na adolescência eu acreditava em felizes para sempre. Tinha boas referências de casamento. Meus pais, tios dos dois lados da família e amigos próximos que sempre falavam sobre a importância de se casar. Eu gostava de estudar mas sempre me vi casando e tendo filhos. Queria ter tido três mas hoje agradece a todos os santos, orixás, encantados, espíritos de luz e a quem mais tenha que agradecer por só ter tido um. Ela acredita que seu anjo da guarda deve ter inspirado a sempre ter um pé atrás pra engravidar do segundo. Já pensou agora eu ter que pagar três terapias no mês? Se eu não sei nem quanto custa a carne imagina negociar um pacote com a clínica para que todos fossem atendidos. Ela para de se torturar e abre o sorriso. A familia unida e perfeita chega ao destino. Aniversário do filho de um amigo da época de faculdade do seu marido. Eles são sócios em alguns negócios. Nadja a esposa do sócio chega para nos recepcionar, vejo nela o mesmo sorriso que trago em meu rosto. Artificial e sem vida. O sorriso que mais vejo

Um teto todo nosso: narrativas curtas atualmente. Nós sorrimos ao cumprimentá-la. Seu marido sorri também e ela retribui. Decido abrir um lindo sorriso pro meu marido. Respondo pra meu filho que ele pode já ir brincar com os amigos, mas que tome cuidado e lembre de ser educado. Ela tem certeza que na cabeça de seu marido aquele momento no carro foi apenas mais um desentendimento, mas na dela foi o momento mais importante daqueles últimos 15 anos. A voz dela retornou mesmo que ainda não tenha emitido nenhum som.

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