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Sapatos off-white

Marlene Farjalla

– Clara, por favor, pegue meus sapatos. Devem estar aí num saquinho de pano que eu deixei em cima da minha cama.

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– Carmem, já vasculhei a cama e todo o quarto e só encontrei essa sacola com sapatos vermelhos.

– Como assim, amiga, esses não são os meus sapatos. Os meus são na cor off-white. Eu mesma os peguei no sapateiro.

Carmem é amiga de Clara desde que conhecera seu noivo. Eles foram colegas na faculdade e seguiram trabalhando numa mesma empresa de engenharia. Clara estava sempre mudando de namorado. Dizia um dia ter se apaixonado mas fora um amor não correspondido. Estavam todos sempre juntos nos encontros entre amigos.

Convidada a ser uma das madrinhas da noiva, se oferecera para ajudá-la a se arrumar em sua casa. Depois de penteada e maquiada, ela a vestiu a amiga com seu lindo e longo vestido.

– Tem certeza, Carmem, você conferiu quando recebeu a sacola?

– Não. Não sei. Não me lembro. Estou muito nervosa. Não sei de mais nada. A minha cabeça estava muito cheia com todos os preparativos. Eu havia te dito que meu carro estaria na revisão. Devia ter me levado, como prometido. Você que se diz ser tão minha amiga, não devia ter me dado um bolo.

– Eu não pude mesmo, amiga. Eu tive um contratempo. Me perdoe.

Dois dias antes, depois que Carmem pegou seu vestido no ateliê da costureira, tomou outro Uber e foi até o sapateiro que ficou de forrar

Um teto todo nosso: narrativas curtas o sapato branco que ela havia comprado. Depois de visitar muitas lojas, não encontrou um que ela gostasse e que fosse na cor off-white para combinar com seu vestido. Estava muito apressada, pediu ao motorista que a esperasse. Iria entrar e sair rapidamente do sapateiro. Não demorou cinco minutos, Carmem já estava de volta com uma pequena sacola nos braços.

– Ai, meu Deus, minha maquiagem está derretendo. – Carmem, o vestido se arrastando pelo quarto, com o controle do aparelho de ar condicionado nas mãos coloca a temperatura no mínimo.

– Clara, tenho certeza de que o trouxe. Ontem mesmo o entreguei ao fotógrafo junto com o vestido. Ai, meu Deus! E agora? Estou atrasada. Já deveria estar saindo de casa.

– Tem certeza de que o fotógrafo te devolveu?

– Clara, pare. Você está me deixando mais nervosa.

– Desculpe, amiga. Eu só estou querendo ajudá-la. Quer usar esse meu? É novo, é bege e calçamos o mesmo número. E o vermelho combina direitinho com meu vestido estampado. – Clara, que ainda estava calçada com suas havaianas, pega seus sapatos que havia trazido numa pequena sacola.

– Os meus eram bem mais baixos. Você sabe que eu não posso usar sapatos com salto muito alto e finos, por causa dos parafusos que eu tenho no meu pé direito.

– Não tem outro jeito, amiga. Não calce esses agora não. Vá com um outro seu. Vou estar te esperando com os meus sapatos na porta da igreja e te ajudo a calçá-los.

Carmem havia se organizado com bastante antecedência para seu compromisso. Há mais de um ano, ela, pessoalmente, vinha cuidando de tudo nos mínimos detalhes. Não tinha como algo dar errado.

Na igreja, depois de uma hora e meia de atraso, o pai conduz a noiva até o altar. Enquanto desfilam pelo tapete de espelho, um dos saltos dos sapatos que Carmem está usando se descola do solado. O

Um teto todo nosso: narrattivas curtas 87 pé de Carmem, o direito, que bruscamente se vira para o lado, sofre uma grave contorção e é levada ao chão. No tapete de espelho sofre um pequeno corte num dos cotovelos e joelhos. Depois da cerimônia na igreja, o pé bastante inchado, o joelho sangrando, Carmem é atendida numa emergência e precisa ser operada do pé.

Na casa de festas que Carmem alugara, com a banda de rock que ela contratara, o caro buffet que encomendara junto com o bolo de três andares, a decoração com lindos arranjos de flores: nada disso Carmem pôde desfrutar no seu tão planejado casamento. A lua de mel, onde os noivos viajariam no dia seguinte para as Maldivas, foi adiada.

Um mês depois, numa visita à casa de Clara para devolver o sapato emprestado, Carmem aproveita quando Clara vai ao sanitário do seu quarto e vasculha seu guarda roupa. Numa sapateira, bem ao fundo, dentro de um saquinho de pano, ela encontra o que procurava. O que está dentro dele, confirma uma terrível imagem obscura que Carmem não enxergava por trás da Clara. Imagem que seu amigo e sapateiro de confiança a ajudou a enxergar. Bastante entendido de cola, depois que colou o salto do sapato da sua amiga, recomendou a Carmem que se descolasse dela.

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