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Sobre nascer de uma mãe emocionalmente morta

Malu Joyce de Amorim Macedo

Ana tinha 15 anos quando a conheci. Estava sendo internada pelo pai por não estar bem. Nos últimos dias, andava muito irritada, não dormia e brigava com todos ao redor. Começou a ouvir vozes e a sentir muito medo de ficar em seu quarto, pois tinha a impressão de ver uma pessoa morta lhe olhando. Graças a tudo isso, começou a ter vontade de morrer. Para a sua proteção, a melhor opção foi a internação, até que se recuperasse.

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Nos primeiros dias, não aceitava falar comigo, que era sua psiquiatra, ou com qualquer outra pessoa do hospital. Conforme fui conhecendo um pouco de sua história de vida, pude compreender um pouco o que estava além, e na base, dos problemas químicos e emocionais de sua mente.

Ana nascera de uma mãe emocionalmente morta. Por volta da metade da gestação, rompeu-se um aneurisma cerebral na mãe, deixando-a em estado vegetativo. Seu corpo ainda funcionava, mas sua mente se apagou e sua alma, provavelmente, ficou inacessível. O corpo da mãe alimentou Ana de oxigênio e nutrientes, através da placenta, durante o resto da gravidez.

Infelizmente, isso não é suficiente para bebês humanos. Se ainda na barriga começamos a ouvir a voz da nossa mãe, sentir os sabores do que ela come através do líquido amniótico, sonhar e poder sentir que se é desejado e esperado, será que um bebê que nasceu de uma mãe que estava viva apenas fisicamente, realmente estaria sendo nutrido?

Através do corte de um bisturi gelado, nas várias camadas que a envolveram durante aqueles 9 meses, lhe mantendo ligada à mãe, Ana foi arrancada de seu corpo, e assim perdeu para sempre o contato mais intenso que pôde ter com a mãe. Mas sua orfandade não pôde ser verdadeiramente vivida. E, consequentemente, não era possível ser confortada, não pôde se dar ao direito de encontrar uma “mãe postiça”, de aceitar o afeto de uma madrasta ou de outro cuidador que ocupasse o papel da mãe.

O corpo da mãe seguia “vivo”, em estado vegetativo, por mais 18 anos.

Ela cresceu visitando a mãe, que dormia em seu vazio emocional por todos aqueles anos. Podia tocar sua pele, mas não podia contar com seu calor e seu toque para lhe acalmar e ajudar a lidar com os desconfortos. Não teve a mãe para ajudá-la no desenvolvimento da própria regulação emocional.

Podia olhar o rosto da mãe, mas nunca pôde ser vista verdadeiramente. Nunca teve a oportunidade de ter a troca de olhares que acontece durante a amamentação, e que propicia a base para os vínculos afetivos seguros ao longo da vida. Não teve o olhar da mãe cheio de afeto e orgulho quando começou a caminhar e a poder se afastar para explorar o mundo.

Quando começou a falar, podia dizer “mamãe” mas nunca ouviu sua voz. Nunca a ouviu chamar seu nome, cantar, sorrir, ler uma história ou mesmo lhe dizer algo que a fizesse chorar. Não pôde ter a mãe como espelho e dicionário de suas emoções para ajudá-la a entender as sensações estranhas que foram surgindo ao longo da infância. Na adolescência, começou a não querer visitá-la. Talvez por nunca ouvir palavras de conforto ou receber um abraço para lidar com as angústias que vão surgindo ao longo da vida.

Um teto todo nosso: narrativas curtas

Durante os dias em que esteve internada, conversamos sobre os vários medicamentos que já havia tomado e nunca funcionavam, e principalmente sobre sua irritação e raiva. Seguia irresoluta quanto a falar sobre a mãe. Se eu tentava, ficava mais irritada e mudava de assunto. Dizia que não tinha o que dizer e não sabia o que sentir. Eu fiz o que restava, respeitei.

Seguimos juntas nos anos seguintes, nos vendo a cada mês. Seguia triste, irritada, brigando com a vida.

Próximo ao seu aniversário de 18 anos, o corpo da mãe finalmente partiu. Ana pôde viver um luto real pela morte materna. Talvez tenha sido o segundo e último momento de vivência emocional real com a mãe, desde que sua alma partira prematuramente.

Esse encerramento permitiu que Ana começasse a melhorar aos poucos. Começou a parecer mais viva , respondendo melhor ao tratamento medicamentoso e à psicoterapia. Começou a melhorar na escola, a fazer planos em relação à faculdade e a se relacionar com amigos e romances.

Não, ela não se curou. Não se tratava só de um luto que não podia ser elaborado. Se tratava da ausência de tudo que ela precisava ter vivido com a mãe, na gestação, no primeiro ano de vida, na infância, na adolescência. Se tratava de não poder ter tido um modelo para seguir como figura feminina, como mulher, como mãe. Se tratava de nunca ter tido a oportunidade de ser filha de verdade. O Luto, que não pôde ser elaborado devido à presença do corpo “vivo” da mãe, a impediu de poder vivenciar essas experiências com outros cuidadores. Ana ainda tem muitos desafios pela frente, principalmente se quiser ser mãe. Precisará seguir lidando com as lacunas emocionais que foram deixadas pela ausência materna em sua vida.

Precisará enfrentar suas próprias sombras para poder permitir que outro ser tenha a própria luz.

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Trilhar um caminho gradual, muitas vezes assustador e longo, de reconstrução do próprio eu e do direito de existir na maneira mais inteira possível.

Um teto todo nosso: narrativas curtas

Ana Júlia Poletto

A persiana não subia nem descia: parada ali, a meio caminho. A luz do dia não entrava completamente, à noite não era possível ver a lua. As luzes dos prédios vizinhos faziam desenhos na parede mofada.

Lua era o seu nome. Janis Joplin embalou provavelmente seus primeiros meses de vida, lá, naquela infinita infância que ela habitara. Agora, hoje, era uma lua nova: escura, sem sonhos, sem voz.

As cortinas, um dia vermelhas, hoje eram de um marrom sanguinolento, desbotadas do tempo, empoeiradas de séculos: assim parecia. Não tinha amigos, não tinha vontades, não tinha ânimo. Acordava para pagar as contas e quem sabe, um dia comprar uma caixa inteira de Nembutal para pôr fim aquela impaciência de vida.

Queria pular pela janela e simplesmente acabar. Ela, a Lua, saltou da janela do quinto andar “nada fácil de entender. Dorme agora…”, Renato Russo nem sabia, mas essa música era dela.

Hoje. Talvez seja hoje. Nessa merda de quitinete, tomar um a um, e esperar. Como será? Dói? E se não funcionar? Ainda gastar dinheiro para pagar hospital e voltar. Voltar para cá. Para essa merda de quitinete. Esse instagram de pessoas felizes: de merda. Sim, é esse o cheiro que sinto. Merda. Deve ser o encanamento do banheiro de novo. Ou sou eu: já fedendo antes mesmo de apodrecer.

Burritos! Uma última tele-entrega. Morrer sem fome. Ela, que nunca teve fome de nada. Pix: 40 minutos. Os últimos quarenta minutos da vida, burritos, e fim. E esse verão que não chega? Onde foi parar a outra meia, a única de algodão? Só um pé. Engraçado: os vizinhos chamam porque o cheiro podre já se espalha pelo corredor. A polícia chega: morta. Em estado de decomposição. E um único pé vestido de meia. A meia sem par. A persiana à meio caminho. Ela pela metade. O papel-alumínio do burrito amassado na mão engordurada. Nunca seria inteira.

À meia luz: ela lembra. Era ele? Ele, que deveria ser pai? Ele, se esgueirando pelo quarto? Nojo. Nojo. Nojo. Ela sempre tinha nojo ao sentar na frente do prato. De qualquer prato. Foi na terapia que veio: um cheiro de sovaco, um cheiro salgado de homem, um cheiro tão perto e tão longe de pai. Aquilo não era pai. Aquilo não era nada. Ela não lembra de nada. Ela sente. Ela sente algo como. Se. Se ela não estivesse ali? Talvez. Mas não. Era a mãe que não estava. E nem poderia estar. Ela nunca esteve. Ela já havia ido, ao som da Janis J. A lua ficou no céu. Só.

Burritos: tinha lido em algum lugar que o nome era porque um burro pode ser carregado com quase tudo. Também eles, os burritos: guacamole, pico de gallo, chilli beans, muita pimenta, sour cream, muita pimenta. Ela adorava aquela trouxinha enrolada cheia de coisas picantes. Alguns tinham carne, mas ela sempre pedia o vegetariano: cogumelos, chilli beans, e muita pimenta!

Mordeu. A guacamole escorreu pelo canto da boca, a pimenta ardeu na garganta, e ela lembrou. Lembrou de quase tudo. E continuou mordendo, bocadas cada vez mais gigantes, engolindo quase inteiras as mordidas. A pimenta ardia e ardia, os feijões saltavam da tortilha para o chão, ela, toda ela, ardia. Era raiva e não fome o que sentia.

Estraçalhava a presa. Não. Não iria pular da janela, nem tomar a caixa inteira de comprimidos. Limpou a boca engordurada no dorso da mão, testou o isqueiro, pegou o litro de álcool, e saiu pela porta. Deixou aberta, escancarada. Não voltaria para aquela janela pela metade. Chamou um uber: e ao entrar no carro ouviu. “Child, the living’s

Um teto todo nosso: narrativas curtas easy”, na voz da Janis Joplin, Summertime. Não, não tinha sido nada fácil. Ela sabia o endereço. Ele continuava morando no mesmo beco da infância dela.

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