leia
1 Sou cuidador. Tomo conta de gente velha e carcomida, que não se aguenta em cima das pernas ou tem alguma doença senil: Alzheimer, mal de Parkinson, artrite reumatoide, demência, lumbago, qualquer dessas maleitas que vêm com a idade, agravadas pela incontinência urinária e pelo intestino solto. É um trabalho merdoso, mas paga bem, porque os filhos dos pacientes, endinheirados (de pobre ninguém cuida), fazem qualquer negócio para não ter de limpar a bunda dos pais. Eu próprio enjoo com o vudum e, no início, não tinha habilitação para lidar com metade dos problemas que afligem um ser humano em vias de extinção, o que gerava um certo descontentamento. Felizmente, não chegou a interferir na minha carreira: se alguém pedia referências, eu podia sempre dar a desculpa de que a clientela tinha morrido, dado que, em pouco tempo, vinha a ser verdade, pois morriam em pencas, contorcendo-se de dor, como se a Grande Ceifeira, também decrépita e com as falanges trêmulas, errasse os golpes da foice, fatiando a carne a esmo antes de acertar nalgum órgão vital. Eu teria sido mais útil aos doentes se tivesse frequentado uma escola de enfermagem, coisa de que abdiquei. Por preguiça e falta de disciplina, fui aprender tudo na prática, à custa de muito sofrimento, claro que não o meu. A lista dos matusaléns que passaram pelas minhas mãos é maior do que as Páginas Amarelas, mas tenho boa memória, guardo lembranças precisas de todos como se eu fosse uma amostra do seu DNA. Examinem-me ao microscópio e verão esses candidatos a cadáver, um a um, encolhidos na cama, sem grandeza, gemendo baixinho, finando-se aos poucos. A julgar pelo que presenciei, posso deduzir como vocês — sim, vocês que me leem — vão morrer um dia. Não tenham 9
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ilusões. Já os vejo mastigando, sem dentes, um fim amargo, com dispepsia, pedras nos rins, hérnias, varizes, osteoporose, gota, hipotiroidismo, bicos de papagaio, tromboses, diabetes, aterosclerose, câncer, além de arrotos e flatulências que irão empestear o vosso quarto até o derradeiro instante. Tudo acrescido de remorsos, que nunca faltam, por tudo e por nada, esses tristes companheiros de agonia. Como posso eu saber? Ora, meus caros! Sou formado, pós-graduado e Ph.D. na Faculdade Superior de Cuidação Humana. Quando defendi a tese de mestrado “Sobre a decadência física, moral e espiritual do homem e o caráter vil da decrepitude”, fui aplaudido pela banca examinadora e tirei a nota máxima, aprovado Summa Cum Laude. E daí que os eméritos professores estivessem gagás? No mundo acadêmico, que é uma espécie de Conselho de Anciões, ninguém liga para isso. Cuidar é a palavra certa, porém depende da interpretação e do contexto. Por exemplo, cuidei de uma senhora fazendo pressão com um travesseiro sobre a cara dela, e tal foi o meu zelo que sua maquiagem transformou a fronha no “Retrato de Dora Maar”, do Picasso, enquanto a velha morria sem conseguir dar o último suspiro. Acham que fiz mal? Eis aí: questão de interpretação. Do meu ponto de vista, fiz bem, tanto que a família não suspeitou de nada nem o médico se deu ao trabalho de fazer autópsia, limitando-se a declarar causas naturais no atestado de óbito. Mas vejam, tendo lido esta confissão, e já prontos a me rotular como fora da lei, não façam o meu julgamento sem antes avaliar o contexto: é que se tornou insuportável ver o sofrimento daquela alma, depois que os filhos dela ficaram dois meses sem me pagar. Agi dentro da lei mais antiga que conheço, a Lex talionis, um mês por um olho, outro por um dente. E, se não for bastante o milenar preceito do Código de Hamurabi, encontram justificativas para o meu ato também no Novo Código Civil e Direito do Trabalho, segundo o qual, bem lidas as suas leis, parágrafos e alíneas, fica claro que os deveres de um cuidador para com patrões incontinentes não 10
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são extensíveis aos inadimplentes. O empregado, tal como o seu empregador, também tem o direito de sobreviver até uma idade provecta. Foi a consciência desse fato que me levou a abreviar o fardo da minha ex-patroa, Deus a tenha!, e sair à procura de um cliente melhor. Assim é que chegamos ao fio condutor desta história, o tal cliente melhor, sobre quem pretendo me alongar nas páginas vindouras. Encontrei-o num anúncio classificado, que escolhi pelo tamanho, visto que são pagos, e muito bem pagos, por centímetro. Se uma família é capaz de bancar um quarto de página de jornal para achar um cuidador para o avô, então há de ter um quarto com vista para acomodar o empregado, bem como prover as condições adequadas ao exercício de suas funções e um salário à altura. Com a vantagem de que os anúncios caros, só acessíveis aos estratos socioeconômicos mais elevados, equivalem a uma apólice de seguro contra a inadimplência ou, por outra ótica, a um seguro de vida, dependendo de que lado do travesseiro está o titular. Esse meu melhor cliente, eu diria quase perfeito, é um velho singular e plural ao mesmo tempo, conforme terão oportunidade de constatar. Antes, porém, da descrição pormenorizada do senhor, permitam-me esclarecer que nem sempre pratiquei a atual profissão, e que a referida Faculdade de Cuidação Humana era só uma blague. Na verdade, formei-me em jornalismo pela universidade estadual e, mesmo sem ter padrinhos nos jornalões, pude trabalhar nas melhores folhas desta terra, durante quase uma década, com razoável sucesso, até que nos Estados Unidos estourou a crise do subprime, que suprimiu — ou subprimiu? — as garantias ao crédito no setor imobiliário, levando alguns bancos americanos à falência. Agora vejam vocês: a globalização, que nunca antes me tinha proporcionado nada, desta vez funcionou, juntando causa e efeito, causa e efeito, até que a fileira de dominós veio atingir o jornal onde eu trabalhava, na capital paulista, desabando sobre a minha cabeça. Foi um duro golpe. A cabeça, que antes atraía headhunters e tinha tido dias tranquilos, 11
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profissionalizada, bem informada, valorizada, de repente ruiu com a pancada dos dominós, metáfora à medida para Dominus, o Senhor. O desemprego zerou minha poupança, que gerou insegurança, que minou minha autoestima, que afetou a libido, que azedou meu casamento, que acabou em divórcio, que deflagrou uma depressão, que me levou a um psiquiatra, que me fodeu a alma. Nem calculam por quanto tempo eu perdi o rumo depois que esse cura-louco me fez engolir quilos de ansiolíticos, antidepressivos e antipsicóticos, com efeitos secundários que baralhavam meu cérebro, que era incapaz de raciocínios coerentes, que viravam ideias de jerico, que... bem, ando confuso, sei lá se não matei a velha por causa disso. A propósito, também não sei se a matei de fato, é um ponto dúbio. Pois há a hipótese de que eu apenas tenha tido o desejo de acabar com ela, impulso tão avassalador e violento que, advinda sua morte por causas naturais, fui levado a fantasiar a mórbida cena de asfixia sem jamais ter empunhado o travesseiro assassino. Um delírio, portanto, mera obra ficcional da minha mente enferma. Mas voltemos ao meu cliente, o do anúncio: se afirmei que era um velho singular, foi porque nunca encontrei alguém tão culto, sagaz e inspirado; e, se disse que era plural, foi porque esse senhor gostava de se travestir intelectualmente. Explico: ele agia como se fosse uma espécie de Fernando Pessoa, desdobrando-se noutras personas, e chegou mesmo a adotar, em momentos distintos, dois heterônimos adulterados do poeta português — Ricardo de Campos e Álvaro Reis —, na pele de quem se pôs a ditar poemas bem razoáveis, uns em estilo clássico-impulsivo, outros pejados de onomatopeias epicuristas, acreditem ou não. O modo como isso se dava é que era esquisito, porque ele dirigia as sessões do Centro Espírita Ariel, na Pompeia, onde se fingia de médium, e só recebia os espíritos que lhe aprouvessem, desde que fossem de literatos. Para tornar a fraude credível, ajudou muito o dom que o velho tinha de imitar vozes, o que fazia com grande facilidade, bastando para isso ouvir algum antigo programa ou entre12
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vista com o escritor escolhido. Depois, na sessão, logo que encarnava um espírito, como o de José Saramago, por exemplo, este começava a falar pela sua boca, com a voz original, enquanto alguém à mesa, caprichando na letra, função que veio a ser minha só porque tenho boa caligrafia, passava o discurso para o papel. Há uma pilha de manuscritos dando testemunho dessa atividade nos arquivos do Centro Ariel, os mais recentes anotados por mim e outros anteriores à minha chegada. Posso mostrar-lhes, a título de curiosidade, a prosa do Nobel português, que o velhote simulou receber do além, não do além-mar, mas do outro, se quiserem ver com os seus próprios olhos um excerto dessa literatura psicografada ou, para ser mais correto, psicoditada: “Sou o José Saramago e estou no limbo. Este céu dos cristãos não se parece nem de perto nem de longe com os afrescos de brancas nuvens sobre azul-cobalto onde uma doce brisa embala os anjos mas, antes, faz lembrar o árido e calcinado relevo de um inexpugnável deserto que se apodera do círculo inteiro do horizonte. Por este oceano de rudes encostas pedregosas que se erguem sobre um emaranhado de vales, na face dos quais nenhuma vegetação medra nem se conhece vida de qualquer espécie, de nada serve andar um homem em vestes de gala, como se à festa do céu tivesse sido convidado, de modo que me dispo e sigo nu, qual Adão fora do Éden, a caminho de nada e menos do que nada. Já não digo que vou ao encontro do Senhor, que é como quem diz, pois velhos de barbas brancas aqui não se veem, nem, em havendo algum, que se anunciasse como o Todo-Poderoso, eu acreditaria nele, ateu que sempre fui e continuo a ser, também deste lado que é lado nenhum. Mas eis que meus pés já não tropeçam na atribulada superfície das pedras nem se afundam nas falhas e fissuras que enrugavam o solo, subitamente liso, agora que a paisagem hostil se transformou num enorme círculo de areia, sobre o qual uma espiral de fumo gira sem pressa, até pousar no exato centro. Sem precisar de voz que se conheça, a nuvem ordena-me, Ajoelha-te José, e pede perdão pelos teus pecados, 13
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ao que respondo, Nem agora nem nunca, pois ainda não nasceu o dia em que me verá de joelhos quem julga ser Deus ou o Diabo, autoridade que não me diz respeito, ao que o fumo, girando mais rápido, como certos ciclones capazes de engolir rebanhos inteiros de inocentes borregos, replica tonitruante, Cala-te e obedece, não vês que tirei a tua vida, infeliz, e que te trouxe de volta ao pó de que são feitos todos os desertos? Mas, digo à nuvem enraivecida, Não creio em ti, sou comunista ateu como o meu avô era camponês alentejano, abraço as minhas ideias como ele, à vista da eternidade, em gesto de despedida abraçava o tronco das suas oliveiras, e Deus, Hoje não és comunista nem ateu nem neto do teu avô, porque tu já não és nada, alma sem corpo de um desalmado, só poeira que se mistura à poeira, espírito deserto, por dentro e por fora, perdido na imensidão circular que sou, sempre fui e serei Eu.” Esse texto, que meu cliente fazia passar por um original póstumo do laureado escritor, como certos escritos apócrifos que circulam na internet pretendendo ser o que não são, é um entre muitos com que ele se divertia à custa dos crédulos. Um charlatão, portanto, tremendo cara de pau. Com a ressalva de que nunca se aproveitou do logro para obter ganhos materiais ou prejudicar terceiros, e podendo-se mesmo afirmar que, salvaguardada a falsidade ideológica de seus espíritos, era um tipo honesto, com um senso de ética desenvolvido. Ora, se digo que era singular e plural ao mesmo tempo, vê-lo simultaneamente ético e charlatão, com fingidos poderes mediúnicos, resulta num enigma difícil de destrinchar. Pode parecer que lhe faltava um parafuso, mas não é por aí. Eu, que cuidava dele, me sentia mais perdido do que ele, que acabou por cuidar melhor de mim. Mas lúcido, lúcido, o velho também não era, porque às vezes rateava como um motor rodado, desarticulando frases e trocando letras, a ponto de dizer estranhezas como esta: “Pernando Fessoa, esse trande poega!”. Faço notar que nem sua disfunção tatibitate significava dano cerebral nem a personalidade múltipla era indicativa de alguma tendência à 14
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esquizofrenia, longe disso, eram só dois modos de expressão peculiares, e bastante saudáveis, creio eu. Outra característica do meu cliente, que dava na vista, se é que posso dizer assim, e devido à qual ele se fazia passar também por Homero ou Jorge Luís Borges, era que, tal como o grego antigo e o argentino moderno, o velho tinha perdido a visão, ficando totalmente cego. Isto, no que se refere ao mundo físico, pois espiritualmente enxergava mais longe do que o comum dos mortais. Pronto. No capítulo das idiossincrasias, julgo que não há mais nada a acrescentar sobre o homem, e ainda bem, pois já era bastante vê-lo no Centro Espírita com um sem-número de nomes artísticos, de escritores desencarnados, mais os seus heterônimos, pseudônimos, short names, apelidos e alcunhas, que ele escolhia conforme a lua, não obstante haver, oficialmente, nos arquivos do 19o Cartório de Registro Civil, uma certidão de nascimento que o identificava como José Antônio de Souza, vulgar selo cristão de pia batismal, que as pessoas da família reduziam drasticamente para Zé, ou tio Zé, quando se referiam a ele. Enquanto cuidei desse senhor, e dos outros todos que frequentavam a sua mente, sempre fiz questão de chamá-lo de Seu Zé, em sinal de respeito aos oitenta e tal anos que o afligiam, e porque eu não era sobrinho nem nada. A mim, ele chamava invariavelmente de “fiel secretário”.
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