Holly Webb
e o feitiço
Tradução Alice Klesck
jovem
Capítulo 1
Rose espiava a rua abaixo, pelo cantinho da janela, observando interessada enquanto duas garotinhas passavam com sua babá. Elas estavam lindamente vestidas, com casaquinhos cor-de-rosa, e ela ficou fascinada. Como alguém consegue manter limpo um casaco rosa? Ela imaginou que elas nunca deviam ter permissão para chegar nem perto de terra. As menininhas caminhavam tranquilamente, e Rose ficou nas ponta do pé para dar uma última olhada conforme elas viravam a esquina. O balde sobre o qual ela estava em pé balançou ruidosamente, e ela pulou, apressada, torcendo para que ninguém tivesse ouvido. As janelinhas chumbadas do Orfanato sr. Bridget para meninas abandonadas eram bem altas, para que as meninas não ficassem tentadas a olhar através delas. Se alguma das monitoras percebesse que Rose tinha descoberto uma forma de ver lá fora, faria tudo para impedi-la, para que sua virtude não fosse colocada em risco pela visão da rua. Talvez até proibissem os baldes, só por precaução. Rose arrumou seu avental marrom de algodão e saiu rapidamente pela passagem deserta até o almoxarifado para colocar o balde de volta. Ela o alojou cuidadosamente numa das prateleiras de madeira, que estava coberta por outros baldes, escovas e panos. Ela planejava dizer que tinha estado polindo, caso alguém a visse.
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Rose – Psssiu! Rose! – disse o sussurro, enquanto ela seguia rumo à porta do almoxarifado, e Rose virou como um raio, de costas para a parede, ainda nervosa. Uma mãozinha cinzenta a chamava por debaixo da última prateleira, vinda de trás de uma enorme tina de banho. – Venha ver! Rose respirou fundo, com o coração desacelerando. Ninguém tinha visto seu uso clandestino do balde. Era apenas Maisie. – O que está fazendo aí embaixo? – perguntou ela, lançando um olhar preocupado à porta. – Vai arranjar confusão. Saia daí. – Olhe – apelava a voz sussurrada, e os dedinhos cinzentos balançavam algo embaixo da prateleira. – Ah, Maisie... – Rose suspirou. – Eu já vi isso, você sabe. Você me mostrou na semana passada. – Mesmo assim, ela se abaixou e contorceu para entrar embaixo da prateleira com a amiga. Era domingo à tarde. Em sr. Bridget, isso significava que muitas das meninas tinham ido ao salão da srta. Lockwood para olhar os objetos de estimação. Rose não tinha nenhum, motivo pelo qual era um bom momento para pegar o balde emprestado. Mesmo que alguém a visse, provavelmente estariam repletas de sonhos tolos para se importar. – Acha que isso é para guardar um cacho de cabelos? – perguntou Maisie, melancólica. – Ou talvez um retrato? Rose olhou, pensativa, o medalhão de latão gasto. Ele parecia ter sido pisado e enterrado em algo desagradável, mas era o pertence mais precioso de Maisie – seu único pertence, pois até suas roupas eram emprestadas. – Ah, um retrato, com certeza – ela disse à Maisie com firmeza, passando o braço ao redor do ombro ossudo da amiga. Ela realmente não fazia ideia, mas sabia que Maisie sonhava com aquele medalhão a
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Holly Webb semana inteira e, no domingo, quando chegava a hora de segurá-lo, era seu momento mais especial, e Rose não podia estragar isso. – Talvez tivesse sido da minha mãe. Ou talvez ela guardasse a foto do meu pai ali dentro. Sim, deve ter sido isso. Aposto que ele era bonito – diz Maisie, sonhadora. – Hummm... – Rose murmurou diplomaticamente. Maisie não era exatamente horrível, mas era bem magrinha, e ninguém fica bonito com os cabelos cortados rentes, para prevenir piolhos. Era difícil imaginar que um dos pais dela fosse bonito. Todas as amigas de Rose passavam o domingo no mundo da lua, no qual eram filhas perdidas de duques que viriam levá-las em carruagens, recuperando suas legítimas heranças. Porém, estranhamente, ao contrário das outras meninas, Rose não sonhava. Ela não tinha nenhuma Relíquia na qual basear seus sonhos, mas essa não era a razão principal. Muitas das outras meninas também não sonhavam, e isso não as detinha em nada. Rose só queria sair de sr. Bridget o mais rápido possível. Não que fosse um lugar ruim; as professoras liam muitos livros sobre crianças que não tinham a sorte de possuir um lar. Elas viviam pelas ruas e iam de mal a pior, de formas nunca claramente explicadas.As meninas de sr. Bridget eram alimentadas, embora nunca houvesse comida suficiente para que se sentissem saciadas – apenas o bastante para seguir em frente. Elas tinham roupas, até um traje melhor para a igreja, aos domingos, e para a fotografia anual. O importante era que elas eram treinadas para serviços domésticos e, portanto, quando tivessem idade suficiente, poderiam ganhar seu próprio sustento. Se Rose tinha algum sonho, era esse. Ela não queria ser uma dama numa mansão; se contentaria em ter permissão para limpar uma, e ser paga por isso. E talvez ter a tarde de folga uma vez por mês, embora ela não tivesse a menor ideia do que faria então.
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Rose De vez em quando, as meninas que vão embora de sr. Bridget voltam para se exibir. Dando risadinhas, contam histórias sobre serem admiradas pelo lacaio, e trajam roupas bonitas que não foram usadas por outras seis meninas antes delas, como acontece com o vestido e o casaco preto que Rose veste aos domingos. Ela sabia disso porque os nomes de outras garotas estavam costurados no alto. Duas delas até tinham sobrenome, algo muito nobre. Rose era apenas Rose, e isso era por conta da rosa amarela, no pequeno jardim da srta. Lockwood, que tinha começado a florescer no dia em que ela foi trazida para sr. Bridget pelo vigário. Ele a encontrara no cemitério da igreja, sentada no memorial de guerra dentro de um cesto de pescaria, aos berros. Se Rose fosse dada a sonhar, como as outras, talvez imaginasse que isso significava que seu pai havia sido um soldado corajoso, morto numa artilharia heroica, e que a mãe moribunda não podia cuidar dela, deixando-a no memorial de guerra e torcendo para que alguém cuidasse da pobre filha de um soldado. Mas, pelo jeito, ela concluiu que sua família provavelmente tinha algo a ver com peixes. Rose detestava peixe. Apesar de que, é claro, num orfanato, você come o que tem, e o de outra pessoa, se tiver a chance. Ela sabia que nenhuma dama nobre entraria no orfanato reivindicando a filha perdida. Devia ter sido um ano ruim para peixes, só isso. Isso não a incomodava; só a deixava ainda mais determinada a fazer sua vida fora dali. – Como acha que eles eram? – Maisie perguntou suplicante, referindo-se aos seus próprios pais. Rose era uma boa contadora de histórias. De alguma forma, suas histórias iluminavam os cantos escuros do orfanato, onde as meninas se escondiam para que ela as contasse. Rose suspirou. Estava cansada, mas Maisie parecia tão esperançosa... Ela se acomodou embaixo da prateleira, do jeito mais confortável que pôde, enfiando o vestido por baixo dos pés para se aquecer. O almo-
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Holly Webb xarifado era úmido e frio, e tinha cheiro de pano molhado. Ela olhava, sonhadora, para a lateral da tina de banho reluzindo na sombra. – Você tinha dois anos, não tinha, quando veio para sr. Bridget? – murmurou ela. – Então, você já tinha idade para estar correndo para todo lado... Sim. Era um domingo, e seus pais a levaram ao parque, para brincar com o barco na fonte. – Um barco! – Maisie concordou, alegremente. – Sim, com velas brancas e cordas, para que fosse possível manejar as velas, como nos barcos de verdade. – Rose estava se lembrando das ilustrações que vira em Contos moralmente instrutivos para crianças, um dos livros da sala de aula. Os dois menininhos donos do barco, na história original, brigavam para ver quem o velejaria primeiro, o que obviamente significava que um deles se afogara na fonte. A maioria dos livros da escola tinha finais assim. Rose gostava muito de reelaborar as histórias a partir do ponto exato em que os personagens já tinham perdido a esperança. – Você vestia o seu melhor casaco cor-de-rosa, mas a sua mãe não se importava se você o molhasse. – A voz de Rose ficou meio duvidosa nesse ponto. Ela não resistira a colocar o casaco rosa, mas, realmente, fora muita tolice... De súbito, ela percebeu que Maisie estava olhando desejosa para a lateral da tina de banho. – Sim, olhe: tem botões em formato de flores! São rosas, Rose? Rose engoliu em seco. – Não tenho certeza... – murmurou ela, olhando, de olhos arregalados, para o desenho que piscava no metal. – Acho que são margaridas... – Será que ela havia feito aquilo? Rose sabia que suas histórias eram boas (elas sempre a incomodavam, então deviam ser), mas nenhuma delas jamais viera com imagens. Imagens que se moviam.
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Rose Uma Maisie miudinha e robusta pulava e batia palmas, enquanto um cavalheiro elegante soprava seu barquinho numa fonte borbulhante. Calça branca!, pensou o lado casual de Rose, desgostosa. Essa família não tem bom senso? – Ah, a imagem está sumindo! Não, não, traga-a de volta, Rose! Quero ver a minha mãe! – choramingou Maisie. – Shhh! Não deveríamos estar aqui, Maisie; vão nos pegar. Maisie não estava ouvindo. – Ah, Rose, era tão bonito! Eu era tão bonita! Quero ver de novo... – Meninas! – Uma voz aguda as interrompeu. – O que estão fazendo aqui dentro? Saiam já! Rose deu um pulo e bateu a cabeça na prateleira. A imagem imediatamente desapareceu e Maisie caiu em prantos. – Saiam daí! Quem é? Rose? E você, Maisie! O que estão fazendo aí? Rose se espremeu para sair, tentando não chorar também. Sua cabeça doía muito; um latejar tão forte que a deixava enjoada. Como é que ela tinha feito uma bobagem dessas? É isso o que acontece quando você começa a fazer imagens em tinas de banho. A srta. Lockwood parecia irritada. – Maisie, você sabe que não deve pegar isso em meu escritório – repreendeu ela, esticando a mão para arrancar o medalhão. A corrente frágil arrebentou e Maisie berrou ainda mais alto,agarrada à ponta pendurada. Rose viu que a srta. Lockwood estava horrorizada. Ela realmente não tivera a intenção de arrebentar a corrente, e sabia quanto Maisie a estimava. Mas agora não podia voltar atrás. – Menina tola! Agora você o quebrou. Bem, é o que merece... – Com o rosto vermelho, ela enfiou a corrente no bolso pendente que usava no cinto e saiu como um raio. – Vão para cama, agora! As duas vão ficar sem jantar! – anunciou, imponente, à porta.
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Holly Webb – Bem, isso não é uma grande perda... – murmurou Rose, passando o braço ao redor de Maisie, que chorava, aos soluços. – Ela... quebrou... o... meu... medalhão! – Sim – Rose admitiu baixinho. – Sim, quebrou. Mas eu tenho certeza de que podemos consertá-lo. Domingo que vem.Vou ajudá-la, Maisie, eu prometo. E acho que ela não teve essa intenção. Acho que ela lamentou o que aconteceu, Maisie. Ela poderia ter feito a gente ficar de pé na sala de aula com os livros na cabeça a noite toda, como fez com Florence na semana passada. Ficar sem jantar não é tão ruim. Seria só pão e leite. – Talvez não fosse – fungou Maisie, parecendo decidida a ver o lado negro das coisas. – Poderia ser bolo. Rose pegou a mão dela enquanto voltavam abatidas ao dormitório. – Maisie, é sempre pão e leite! A última vez que tivemos bolo foi na coroação, há quase três anos! – Rose suspirou. Ela não podia deixar de sentir raiva de Maisie por colocá-la em encrenca, mas não muita raiva. Afinal, ela já vinha desafiando o destino com as janelas, de qualquer forma. Maisie era tão miúda e frágil que Rose sempre sentia pena dela. – Quer que eu conte uma história a você? – perguntou, resignada, enquanto colocavam as roupas de dormir. – Você vai fazer com que as imagens voltem? – perguntou Maisie, com os olhinhos se iluminando. – Eu não sei – Rose disse com sinceridade. – Isso nunca aconteceu. E pode haver problema, se formos flagradas; tenho certeza de que não é permitido. – Não está nas Regras – Maisie disse, fazendo bico. – Eu sei que não está. A srta. Lockwood lia as regras aos domingos antes da igreja, então elas já as haviam ouvido naquela manhã. Rose tinha que admitir que Maisie estava certa: ela não se lembrava de uma regra sobre fazer ima-
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Rose gens em banheiras. O que era estranho: isso devia indicar que não se tratava de algo comum, pois as Regras abrangiam tudo. Até mesmo o exato comprimento das unhas de uma órfã. – Só dá a sensação de algo que não seria permitido... – Rose disse. Motivo pelo qual é tão divertido, parte dela queria acrescentar. – Ah, tudo bem. Mas acho que precisa de algo reluzente para dar certo. – Ela olhou em volta, pensativa. O dormitório era comprido e estreito, lá no alto, no sótão da antiga casa. Tudo era muito limpo, mas algo reluzente estava em falta. Quase não havia espaço para as meninas se movimentarem por entre as camas estreitas forradas de cobertores cinzentos, muito menos espaço para móveis lustrados. Maisie a seguiu, esticando o pescoço para olhar os cantos. – As minhas botas estão brilhantes! – sugeriu ela, radiante. Rose estava prestes a dizer que não poderia ser, mas percebeu que Maisie estava certa.Todos os sapatos das meninas eram feitos e remendados pelos meninos do orfanato de São Bartolomeu, do outro lado do muro. Eles tinham uma oficina de sapateiro enquanto as meninas tinham uma lavanderia, para que pudessem ser treinados para algum trabalho útil. As botas de Maisie tinham acabado de ser remendadas, estavam pretas e brilhantes, mesmo depois dos remendos frequentes, já não tendo quase nada da bota original. Se ela conseguia fazer imagens numa banheira, por que não numa bota? As duas meninas sentaram juntinhas, embaixo das cobertas de Rose, olhando o couro polido. – Mesmo que dê certo, será bem menor – alertou Rose. – Não me importo – Maisie não tirava os olhos da bota. – Quero ver o que aconteceu. – Não é o que realmente aconteceu... – Rose lembrou-lhe. – É apenas uma história que estou inventando.Você sabe disso, não sabe?
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Holly Webb – Sim, sim... – Maisie abanou a mão para Rose, irritada, mas Rose não achou que ela estivesse realmente ouvindo. – Mostre para mim! Naquela noite, muito tempo depois que Maisie chorou até dormir, de coração partido, diante da própria imagem correndo pelo parque e chamando pela mãe, bem depois que as outras meninas voltaram para a cama, conversando, Rose ainda estava acordada. Será que ela tinha inventado tudo aquilo? De alguma forma, parecia tudo tão real. E se eu me transformei numa cartomante? Rose estava preocupada. Ela não acreditava em cartomantes. Mas é claro que inventara; havia até acrescentado o casaquinho rosa, das garotinhas que vira pela janela. Então, se não era real, por que deixara Maisie tão aborrecida? Por que ela acreditou mais nessa do que em todas as outras histórias de Rose? As imagens, Rose disse a si mesma. As imagens faziam parecer tão real. Eu também quis acreditar. Não farei isso novamente. Ao seu lado, a respiração de Maisie ainda tinha espasmos enquanto ela dormia, e seus ombros magrinhos estremeciam, como se estivesse sonhando tudo outra vez: a criança perdida que acreditava ser, correndo ao redor da fonte cintilante para pegar o barco, depois virando-se e vendo somente os pais de outras crianças. Rose não sabia como fizera aquilo. Até hoje, isso nunca tinha acontecido quando ela contava histórias. Ela não fez nada de diferente; não que lembrasse. Mas jamais poderia deixar que acontecesse de novo. Era forte demais. Rose tinha certeza de que inventara – ou quase certeza. Porém, agora que Maisie tinha visto, para ela era real. Ela se lembraria disso para sempre. Embora, pensou Rose, finalmente fechando os olhos, se fosse verdade, o barco estaria no escritório da srta. Lockwood, com as outras Relíquias... Então não podia ser verdade. Era apenas uma história. Mas suas histórias nunca a haviam amedrontado antes.
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