O Triângulo do Fogo

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Lopes, Thiago O Triângulo de Fogo / Thiago Lopes; João Vittor Carvalho; Amanda Leite. - São Paulo: Editora Sinestesia, 2017. ISBN 978-85-xxxxx--xx-x 1. Ficção. 2. Literatura Nacional. I. Carvalho, João Vittor. II. Leite, Amanda. III. Título. xx-xxxx 869.93

CDD

Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura Brasileira 869.93

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A Editora Sinestesia dedica esse livro a todos que, de alguma forma, nos ajudaram dar vida a esse projeto: João Vittor Carvalho, João Gabriel Lima, Clarice Greco, Flávia Duduch, Felipe Sali, Bárbara Prince, aos Potterheads, e aos professores que nos orientaram nesse projeto, em especial a Profª Cris Almeida.



- O triângulo do fogo refere-se ao fenômeno químico que explica o surgimento de uma chama. O triângulo é a representação dos três elementos que são imprescindíveis para que o fogo aconteça: o combustível, o comburente e a fonte de ignição. Demonstrando assim que o fogo trata-se de um acontecimento, uma ação ou um evento desencadeador de um processo, e não uma coisa. - E o que isso tem a ver comigo e com que está acontecendo? - Tudo. Absolutamente tudo… essa pode ser a chave para nos salvar!”



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1.0079

H HidrogĂŞnio

Valentina 11


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SOBRAS DO PASSADO

A maioria das pessoas, em geral, tem uma noção muito fantasiosa do cotidiano de uma modelo de passarela. Pensa-se quase que imediatamente numa vida de glamourização do que é mais fútil, e no estereótipo de alguém que vive em função de tirar proveito das típicas facilidades existentes para quem teve a sorte de ter nascido dentro dos padrões estéticos sociais vendidos pela mídia. Valentina Cavatti - como era conhecida no meio em que construiu sua fama e sua vida - sabia que tal clichê correspondia a apenas um terço da realidade, quando muito. Não que seus estonteantes olhos azuis, seus cabelos artisticamente alinhados em ondas espiraladas nas pontas que refletiam o dourado reluzente de seus fios diante de luz natural ou artificial, ou que suas medidas corporais milimetricamente desenhadas para modelar qualquer grife badalada não tivessem lhe facilitado a vida em momentos oportunos e tirado obstáculos medíocres dos quais provavelmente não teria temperamento para lidar. Sabia, no entanto, que havia dificuldades próprias do mundo das passarelas; trabalho árduo e conhecimento técnico eram imprescindíveis para quem queria alçar patamares maiores. Acabara de chegar de uma bem-sucedida campanha publicitária italiana para uma conceituada marca de fragrâncias. Aquilo evidentemente lhe atribuíra mais notoriedade como modelo e estimularia a possibilidade de trabalhos mais promissores e rentáveis. Tinha uma opinião muito particular sobre a natureza comportamental dos italianos, sobretudo a masculina. Eram tão intensos e espalhafatosos, sempre demasiadamente agitados para assuntos que não merecem tamanha importância, beirando 13


a inconveniência em determinadas ocasiões. Apesar disso, achava-os muitíssimo atraentes, e isso, combinado com a sua sede de viver histórias intensas, a fizera facilmente ter um romance com um herdeiro de uma vinícola do sul do país. Seu grande problema é que se entediava com a mesma facilidade e velocidade com a qual se animara com as histórias, e com Luca Ferraro não havia sido diferente. Seus cabelos pretos luminosos feito penas de ave de rapina e forma atlética distribuída em um metro e noventa de um interessante protótipo de exemplar masculino não foram suficientes para superar o aborrecimento que sofria ao ouvir intermináveis monólogos sobre vinhos, tórridos romances em que ele era o objeto de desejo e perseguição e de como fugia das responsabilidades da vinícola apesar de usufruir fartamente da fortuna familiar. Talvez devido a seu abissal ego tivera excepcional dificuldade em se desfazer daquele homem quando chegou o fatídico momento. Recebeu durante duas semanas buquês de flores inconvenientemente grandes para o limitado espaço físico de seu quarto, bilhetes perfumados e ligações em horários manjados que fazia questão de não atender independentemente de quantos números diferentes aparecessem no identificador de chamadas. Isso se estendeu até o dia em que recebeu uma visita inesperada de Luca na saída de um almoço promovido pela marca da qual estava modelando naquela temporada. - O que está fazendo aqui, Luca? - disse ela apreensiva e ligeiramente irritada. - Pensei que, pelo meu comportamento com você, nós não precisaríamos chegar a esse ponto. - Será que não consegue entender que eu te amo? - disse o rapaz visivelmente desacostumado a proferir essas palavras. - Claro que não ama! Você ama a possibilidade de me conquistar, mesmo estando claro que não quero mais nada com você! Mas, acredite, estou te dando um presente, não seríamos felizes e uma história de derrota amorosa pra contar vai te deixar bem mais interessante com as mulheres. - disse e saiu andando com a dignidade e indulgência das pessoas que se importam muito pouco com o peso das próprias palavras. Uma expressão patética e paralisada, frente a um restaurante badalado numa tarde ensolarada com pessoas em volta olhando atônitas foi a última coisa que teve de Luca antes do término de sua campanha publicitária e de seu retorno ao Brasil. Certamente colecionara lembranças nessa viagem, recordações bonitas, intensas e muito divertidas, e cá estava ela reflexiva olhando pela janela de um avião de primeira classe enquanto fazia um retrospecto de todas essas lembranças. Nostalgia eram o que provocavam as janelas todas as vezes que voltava para casa. Seu retorno do aeroportofoi breve devido à falta de tráfego nas ruas fazendo com que o táxi encontrasse pouca ou nenhuma dificuldade conforme avançava pelas ruas do subúrbio que cercavam a modesta residência da família Branco Tavares. Exato, Cavatti era apenas seu nome artístico, e era mais do que apropriado para o mundo de fama em que estava inserida desde os primeiros anos de vida, no entanto ali era uma Branco Tavares. 14


O táxi não demorou a encostar frente a uma residência simples de cores alaranjadas e jardim com grama espessa cujas gardênias e rosas se degladiavam em um emaranhado de relva mal aparada frente a aconchegante e clássica varanda. Apesar de sutis sinais de negligência doméstica, a casa facilmente inspirava um tom reconfortante de lar até mesmo para um estranho que a visse pela primeira vez, menos para ela. Para Valentina, a casa, não ela exatamente, mas os sentimentos predominantes em seu convívio interno, presente nos cochichos entre a mãe e o irmão mal ocultos de seus ouvidos por uma parede fina, e a intensa iminência da descoberta de uma grande infâmia faziam com que o sentimento típico de lar não fosse privilégio daquela modelo de ares internacionais; sua volta nunca representava um retorno de fato, pois era como se não tivesse a sensação de encaixe e de pertencimento. E tudo aquilo, só havia um motivo de ser, motivo esse que sempre lhe causou curiosidade, medo e fascínio, esse motivo era representado por uma pessoa, seu pai: Walter.

Mal descera do veículo, e avistou sua mãe vindo ao seu encontro com um robe de seda branco e com cabelos recém penteados, Estela Branco Tavares havia se tornado uma senhora de meia-idade de modos práticos e olhar praticamente vazio mesmo que estivesse rindo copiosamente de uma incrível piada. Fisicamente era muito parecida com a filha, cabelos loiros, porém menos ondulados, misturavam-se aos fios brancos que ainda não representavam maioria no topo de sua cabeça, era uma mulher alta e robusta, ainda que não pudesse ser considerada gorda. Abriu-se em um abraço emocionado enquanto observava a filha dispensar o táxi e ir ao seu encontro envolta na mesma sincronia de emoções. Enquanto abraçava a mãe, Valentina refletia sobre o significado da palavra amor. Normalmente as pessoas têm dificuldades em responder se já haviam amado alguém na vida, mas reconheciam o sentimento ao revisitar seu mundo interior e verem se formar a aparição de determinadas pessoas de forma quase instantânea nas suas mentes, mas para ela essa imagem interna não era tão simples de ser concebida. Entretanto, se existia uma pessoa que no decorrer dos anos passara a ocupar essa imagem mental com cada vez mais intensidade era sua mãe. Estela havia demonstrado um amor incondicional pela filha que a aquebrantou, comoveu e conquistou no decorrer de sua trajetória de vida pessoal e profissional. Sua mãe havia sido uma parceira incondicional diante diversos obstáculos que havia passado, inclusive para conseguir a notoriedade que adquiriu, e se devia algo a alguém, era a sua mãe; poderia dizer que não só a amava, mas tinha verdadeira adoração por ela. Estela lançou um olhar investigativo com seus vagos olhos verdes à filha e disparou: - Por que demorou tanto para voltar? Aconteceu alguma coisa? 15


- Houve um contratempo mãe, você sabe que minhas temporadas fora não têm data exata para terminar. - Por isso fico tão apreensiva quando você viaja. Entre! Vamos sair do sereno. - ordenou Estela guiando a bagagem da filha para o interior da casa de forma enérgica. Ao adentrar a residência sentiu como se um peso sufocante fosse jogado às suas costas de forma abrupta, sentiu o ar rarefeito e uma sensação amarga na boca causada por sensações conhecidas e desagradáveis. O interior permanecia o mesmo de quando havia ido embora, mobílias simples, pouco adereços e pintura básica nas paredes apesar do impecável acabamento, passava a impressão de um lar temporário, de alguém que estava ali de passagem pronto para a qualquer momento empacotar as poucas coisas que tinha e fugir, e não o lar de uma família que afixou residência ali fazia dezoito anos. Aquele era um outro clima típico daquele ambiente que reforçava a sensação de não pertencimento, a sensação de partida constante, mas de uma forma ou de outra ela sempre voltava. - Sente-se! Descanse, imagino que a viagem tenha sido longa. - disse Estela deixando as coisas da filha na sala, passando pelo cômodo e encostando-se em um espaço vazio entre a geladeira e a pia da cozinha, enquanto a filha sentava em uma das cadeiras vagas virada em direção a mãe. Era um dos espaços predileto das duas para longos papos pós viagens. - Um pouco, estive pensando em voltar mais dessa vez do que nunca! Quero fazer vários trabalhos por aqui por um tempo, então pode ficar feliz, não vou embora tão cedo. - Você anda viajando muito, e ando passando muito tempo sozinha. - Onde está o Júnior? - nunca mencionava o irmão sem uma ponta de aborrecimento na voz e desta vez não havia sido diferente. Era impressionante como seu irmão mais velho representava uma dicotomia de seus valores. Tão cínico, enfadonhamente conservador e apinhado em valores de retidão que chegavam a lhe atribuir um ar de caricatura. Fosse o que fosse, porém, era o que havia restado da família, ele e a mãe. Sua tia Maria havia falecido há três anos de um ataque cardíaco enquanto assistia a novela das oito. Júnior, claro cuidou de todos os preparativos do velório com toda pedante eficiência que lhe era de costume e levara a tiracolo sua estonteante noiva Isabela que era tão mosca morta quanto ele, apesar de representar de forma sem igual a beleza negra, lhe faltava carisma e possuía pouca habilidade no convívio social, apesar de ser uma mulher culta. Júnior a conheceu no departamento pessoal da delegacia onde trabalha como investigador há doze anos, havia sido um sonho realizado estar a frente de uma equipe policial e comandar diversos desbaratamentos bem-sucedidos de gangues de traficantes conhecidos. Júnior era bom no que fazia, e havia superado muita coisa para isso. Nem mesmo uma breve complicação motora na época da pré-adolescência havia sido empecilho, sofreu operações cirúrgicas complexas e passara por tratamentos intensivos e sofridos por 16


um período considerável de vida até restabelecer sua saúde de forma completa ao ponto de conseguir galgar os degraus para a excelência em desempenho profissional que havia alcançado nesse momento. Estela não tinha do que reclamar, pois diante circunstâncias adversas havia criado dois filhos bem sucedidos, ainda que totalmente distintos um do outro. - Júnior está às voltas com os preparativos do casamento. Gosto da Isabela, mas gostaria que pudesse cuidar mais dessas coisas sozinha. Ela irá ter tempo de sobra para ficar com o meu filho daqui pra frente. - sentiu um toque de ressentimento da mãe ao se referir a nora com aquele típico tom que transpira um sentimento de que alguém estava lhe roubando uma pessoa muito importante de forma irremediável. - Você sabe que o Júnior também tem complexo de eficiência. Jamais aceitaria que sua linda deusa do ébano cuidasse sozinha do próprio casamento com suas lindas e delicadas mãos. - disparou Isabela gestualizando de forma caricata balançando as mãos para cima e para baixo em tom de deboche. - Você passou tanto tempo fora de casa Tina, que até mesmo essa sua implicância com seu irmão me faz sorrir. - comentou Estela jogando divertidamente a cabeleira loura para trás. Tina era uma forma carinhosa de tratamento que Estela designava a sua filha desde criança, que lhe provocava nostalgia e ternura, apesar de sentir-se ligeiramente infantilizada. - Amanhã volto para agência temos uma campanha de outono que será lançada no nordeste, talvez eu tenha que me ausentar, mas pelo menos estarei no país. Estela a fitou com um semblante indignado.

Rever os mesmos semblantes de sempre no seu ambiente habitual de trabalho provocara em Valentina uma sensação de familiaridade maior do que quando estivera em casa durante todo o dia anterior. Passara um dia tranquilo com sua mãe falando sobre amenidades e sobre seu romance com o impetuoso jovem italiano do qual tivera excepcional dificuldade em dispensar, dentre outros detalhes da campanha publicitária. Seu irmão acabou não aparecendo, provavelmente dormiu no apartamento com a noiva, ele ainda morava com Estela apesar de passar mais tempo ausente. Foi sociável com todos ao chegar no trabalho, suportou a tonelada de perguntas e questionamentos de seus assessores, mas a quem queria ver mesmo eram suas colegas de passarelas, sobretudo Milena, uma parceira de coração que havia ganhado em Houston. O reencontro das amigas não decepcionou as expectativas e as duas se abraçaram de forma intensa e altamente emocional no corredor dos camarins enquanto algumas modelos passavam de forma apressada e ligeiramente aborrecidas pelo bloqueio do caminho. - Nossa! Dessa vez pareceu que você não voltaria nunca. Onde se meteu, Valentina? - Milena, como sempre, mantinha-se elétrica e vivaz no menor de seus 17


gestos, e seu sorriso aberto de dentes grandes e brancos resplandecentes permanecia magnético, era uma de suas características mais marcantes, diga-se de passagem. - Ah, além da campanha ter sido maior dessa vez, tive um casinho com um cara por lá. - segredou Valentina sorrindo como se revelasse uma traquinagem. - Você vai me contar isso agora! - exclamou Milena puxando a amiga para um camarim próximo, encostando a porta atrás de si. - Não há o que contar, foi um babaca que se achava o centro do universo, porque era rico, bonito, mas extremamente desagradável. Daqueles que a gente pega na balada por uma noite, mas viver uma vida ao lado de um embuste desse seria um martírio. Milena gargalhou ostensivamente. - Ai Valentina, você permanece a mesma e eu gosto disso! - repentinamente o semblante de Milena assumiu um tom mais formal e bufou como se iniciasse uma apresentação séria perante uma banca examinadora de doutores. - E aquele assunto? Aquele que tanto te preocupava antes de você viajar, conseguiu tirar aquilo da cabeça? Você me disse que aceitou essa campanha de seis meses para abstrair as suas preocupações. Valentina lançou um olhar de desalento que só poderia revelar a amiga, um olhar que dizia mais do que qualquer palavra, esse e outros gestos demarcavam a sincronicidade daquele relacionamento e consolidava a amizade das duas cada vez mais. - Não Mi, me distrai apenas, mas voltar pra casa trouxe todo aquele peso de novo sabe. É algo do qual não adianta eu fugir, eu preciso enfrentar. - O que pretende fazer? - Vou confrontar a minha família, sobretudo o meu irmão que possui os registros policias do que aconteceu com meu pai. Eu preciso saber quem foi Walter, quem foi esse narcotraficante que todos temem. Eu sou a única a não saber de onde eu vim, e isso é muito angustiante! - Valentina falava num tom perigosamente alterado demais para a sua delicada situação. - Calma amiga, fale baixo! Lembre-se que sua família saiu do olho do furacão para recomeçar. Você não é a filha do famoso traficante de metanfetaminas aqui. - obtemperou a amiga diminuindo o ritmo e a tonalidade da voz gradativamente. - Você é Valentina Cavatti, modelo internacional. Se as pessoas aqui soubessem disso você… - Eu sei, eu sei. - disse Valentina recompondo-se quase que imediatamente. Mas entenda que não posso usar medidas paliativas para eliminar a fonte do problema, preciso cortar o mal pela raíz! - nesse momento sentiu um calafrio de maus presságios serpenteando a sua nuca. Uma brisa gélida que fez com que a porta do camarim batesse ligeiramente assustando as duas modelos. Milena que estava perto da porta pôs a cabeça para fora do camarim e mirou o corredor repentinamente vazio como um deserto. Virou-se para amiga esforçando transparecer um tom de acalento, mas estava visivelmente assustada. - Não foi nada. Que sinistro! 18


Depois do encontro, a modelo passou o restante da tarde obstinada do que faria enquanto pousava tão mecânica como uma boneca para os agressivos flashes de câmera que a atingiam impiedosamente numa sessão de fotos para um catálogo de lingeries em um dos inúmeros estúdios da agência. Curiosamente quando encontrava-se naquele estágio nada a detinha, tornava-se altamente comprometida com qualquer tarefa que se predispunha a executar, ainda que sua mente estivesse ocupada com outros assuntos. Não era justo aquele mistério, ela não era mais uma menina, havia provado seu valor desde muito cedo, e sabia bem onde queria chegar e para isso precisava saber de onde veio, quais eram as raízes que compunham a estrutura do seu ser, e querendo ou não, o sangue conta, o sangue dita, e seja lá o que aquilo fosse, tinha o direito de saber, custe o que custar.

Chegara em casa no final de tarde com um instinto animalesco de acerto de contas, e ao mesmo tempo com muita sobriedade, que, infelizmente, se extinguira em questão de minutos. Ao adentrar a pequena sala pouco decorada, avistou seu irmão conversando energicamente com sua mãe sentados no sofá bege de duas peças. A presença de Valentina cessou o diálogo, e as atenções se voltaram para a jovem modelo. - Por favor, não se acanhem por minha causa. Continuem o que estavam falando, ou é mais um dos segredos que as paredes dessa casa escondem? - Como vai Valentina? Como foi a viagem? - disse Júnior em tom apaziguador, mas por mais que se esforçasse não conseguiu disfarçar a censura em seu olhar. Júnior havia sido um adolescente bastante desengonçado, muito pelas condições médicas em que vivia, possuiu em grande parte da juventude um cabelo com corte de tigela e fios pretos desgrenhados, ao contrário do louro dourado das representantes femininas da família, sua fala outrora arrastada e seus movimentos lentos e poucos habilidosos, no decorrer do tempo ganharam novos contornos; tornou-se um homem razoavelmente atraente, alto como a mãe, e corrigira a postura graças às incessantes sessões de fisioterapia e ao intenso treinamento policial que se submeteu nos anos conseguintes. Sua compleição física não combinava com os traços de sua personalidade, que segundo a irmã, possuía um ranço de moralismo que a incomodava fortemente. Seu queixo quadrado, sua expressão dura que refletia os quase quarenta anos de provações pelas quais havia passado e sua barba rala que envolviam todo o rosto lhe impunham autoridade e contribuíam para que estranhos lhe concedessem respeito antes mesmo de conhecê-lo, mas isso não era suficiente para intimidar Valentina. - Foi bem Júnior - começou ela de maneira soturna. - Apesar de que ainda que em outro país estive tão afastado da mãe quanto você que estava aqui pelo que fiquei sabendo. 19


- Eu não disse isso Tina, seu irmão esteve atarefado preparando o seu casamento. - Não precisa se justificar mãe. - Disse Júnior. Valentina bufou mediante o bom samaritanismo. - Eu sei que não reclamaria de forma leviana, e que estive sempre ao seu lado de forma satisfatória. Por que está tão agressiva irmã? Sua viagem não saiu como esperava? - Não, não foi, pensei que finalmente poderia tirar algo da minha cabeça, mas eu simplesmente não pude, e está na mão de vocês dois esclarecer as minhas angústias. - disse Valentina largando sua bolsa caríssima no sofá esfarrapado, causando um contraste visual interessante. Estela estremeceu mediante aquela frase, e experiente como era não demorou a perceber que se encontrava numa difícil situação. - Do que está falando? - indagou Júnior de forma sincera, levantando-se e se pondo a frente da irmã. - Do tal assunto proibido. Do nosso pai, Júnior. A expressão de Júnior ganhou uma sombra taciturna naquele momento, e soltou as palavras subsequentes de forma ameaçadoramente tranquila, tal qual como se estivesse em um interrogatório policial: - O que mais você precisa saber além do que você já sabe? Nosso pai, foi um homem que por muito pouco não destruiu a vida dos que ficaram depois que ele foi assassinado por causa dos próprios crimes que cometeu. Ele foi um homem que matou seu próprio cunhado. Você era uma bebê quando uma tropa de policiais simplesmente infernizaram a nossa mãe por tentar proteger a nossa família, enquanto as pessoas nos apontavam na rua como se tivéssemos culpa ou usufruíssemos do dinheiro sujo de droga que custou a vida sabe lá de quantas pessoas; ou quando, por exemplo, tivemos que fugir feito animais, ainda que a mãe tivesse conseguido provar a inocência dela, para fugir da inquisição popular que já tinha nos declarado culpados e que é muito mais cruel do que qualquer julgamento em um tribunal, tivemos que recomeçar a vida onde ninguém nos conhecesse, em uma casa simples no subúrbio para não chamar atenção… se hoje você pode ter uma bolsa que custa o valor dessa casa e se encher de luxos num país europeu irmãzinha, é graças a esses segredos que essas paredes escondem. Então me diga Valentina… disse o irmão aproximando-se um passo mais próximo da irmã mantendo um olhar duro e afiado. - O que mais você precisa saber? - Dos detalhes - respondeu Valentina visivelmente abalada e com olhos lacrimejantes. - Como foi a morte do meu tio, como foi a morte do meu pai. Como ele era? O que o fez se tornar o homem que se tornou. Eu tenho o direito de saber! - Você não tem o direito de trazer toda essa merda à tona de novo! De colocar a segurança da nossa família em risco. - disse Júnior de modo ameaçador. - Eu quero que os dois parem imediatamente! - guinchou Estela levantando-se do sofá e se interpondo entre os dois irmãos. - Seu irmão tem razão Valentina, você era muito pequena, não viveu o inferno que vivemos. Vamos prosseguir nossa vida minha filha, foi tão difícil recomeçar, foi duro demais, se esforce para entender. 20


- Não, mãe! Por que não experimentam parar de me tratar como uma bonequinha de luxo não confiável e me incluam nesse tal horror familiar que vocês viveram? Eu só quero que me contem, não vou publicar no jornal. Eu teria muito a perder. - Talvez se não se comportasse feito esse bibelozinho, você merecesse um tratamento diferente. - ralhou Júnior cuspindo as palavras como flechas flamejantes. - Olha aqui seu engomadinho de merda! - retrucou ela apontando para o irmão. - Você não sabe nada da minha vida para me julgar. Você é um bosta que se acha no direito de manter essas informações só pra você, e decidir pela família inteira, mas você não tem esse direito, imbecil. - Chega vocês dois! - vociferou Estela de modo definitivo. - Estou tão cansada disso tudo, da sombra das coisas que o Walter fez nos perseguir até hoje. - Os filhos estremeceram perante a mãe por ter proferido aquele nome de forma tão natural. - Vou pro meu quarto. - Eu te levo mãe. - predispôs-se Valentina notando a indisposição física da mãe. Valentina levou Estela delicadamente pela mão até seu quarto. Assim como o resto da residência, o quarto possuía apenas a cama, e algumas poucas mobílias juntamente com o guarda-roupas onde Estela guardava as poucas peças básicas que possuía. A mulher deitou-se e Valentina a cobriu, seus olhos pousaram na mãe com singeleza, e sentiu-se furtivamente preocupada por ter de alguma forma ocasionado aquele mal estar. Vigilou a mãe até que pegasse no sono por alguns minutos, e quando se levantou para retirar-se do quarto ouviu a voz dela às suas costas. - Tenta entender o seu irmão Tina. Você não tem ideia do que ele sofreu com tudo o que aconteceu. Valentina aproximou-se ajoelhando frente a cama dela e disse em tom suplicioso. - Apenas quero que confiem em mim, mãe. Júnior tem acesso a inúmeras informações policiais do que aconteceu e poderia me dizer. Ficaria entre nós, e eu não me sentiria mais tão colocada em segundo plano. Como um peixe fora do aquário. - Não se sinta assim minha filha, fazemos isso porque te amamos - a voz de Estela foi enfraquecendo consumida pelo torpor do sono. - Mas é importante pra mim, eu preciso… - detivera-se ao constatar, desolada, que a mãe havia caído em um sono profundo e irremediável. Debatia-se internamente com a dúvida e a frustração, enquanto sentia a sua nuca queimar provavelmente devido ao olhar do irmão que a espiava através da porta entreaberta do quarto. Não havia justiça nessa escuridão por maior que fosse a dor do passado que assolava a família Branco Tavares da qual era pertencente. Insistiam, porém, em renegar esse pertencimento com a oclusão daqueles fatos que tanto precisava saber, mas que estava obstinada a descobrir de uma forma ou de outra. Repentinamente sentiu uma estranha e carinhosa empatia por Walter.

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Valentina Branco Tavares é uma grande modelo de alcance

internacional. Deslumbrante, manipuladora e acostumada a ter tudo a seus pés convive com o peso de ser filha de Walter Branco, uma lenda do tráfico de metanfetaminas. Sua jornada em busca da verdade e de seu passado, no entanto, trará a tona consequências funestas e tão poderosas quanto uma chama ardente, onde todos sem exceção podem sair terrivelmente queimados.


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