Revista Substânsia - Ano II - N 03 - C 02

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ano II nº03

ISSN - 2318-1877

substânsia revista


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ano II | nº 03 | 2mil14

EXPEDIENTE Editores Nathan Matos Roberto Menezes Revisão Amanda Jéssica Alex Costa Klauber Renan Impressão é só levar este aquivo numa gráfica Quem ajudou nesta edição Alice Sant’anna Ana Raquel Silva António Carinha Bagadefente Bruno Latorre Célio Celestino Constança Lucas Cristiana Cangússu João Varella Léo Prudêncio Marco Severo Mateus Henrique Patrícia Lino Renato Essenfelder Sebastião Ribeiro Thiago Blumenthal Variável 5 Projeto Gráfico Nathan Matos | Roberto Menezes Capa Chad Wys | http://http://chadwys.com/ Colagens Célio Celestino Revista Substânsia www.substansia.com.br revistasubstansia@gmail.com


Editorial Todas as formas e regras são estabelecidas a partir da razão. E com isso acaba se perdendo, quase sempre, a essência das coisas. Fica-se então à mercê dos ditos e reditos que influenciam as criações, ideológicas ou não, dos artistas prontificados a levantar o estandarte da liberdade artística, querendo deixar vívida a presença da ânsia que possuem em si. Desta maneira, a Revista Substânsia traz, em seu terceiro número, textos e imagens que tentam unificar toda essa força, seja a partir de poemas ou de ensaios, de rimas ou de versos livres. Nada poderá ser demolido enquanto a colagem de gêneros existir e transmitir entre as várias modalidades artísticas o sensível existente em nós. Nesta edição, é possível o leitor acompanhar de perto o Variedades Literárias, evento ocorrido em Belo Horizonte; os ensaios de Renato Essenfelder, de Marco Severo e de Patrícia Lino, em que discutem o gênero ensaio, a presença de animais na literatura e o amor na poesia. Alice Sant’Anna, Bruno Latorre, Constança Lucas, Cristiana Cangússu, Mateus Henrique e Sebastião Ribeiro oferecem os poemas. Os contos ficam, desta vez, por conta de Ana Raquel Silva, portuguesa, e o dito, desconhecido, bagadefente. Léo Prudêncio, no ano em que Moreira Campos faria 100 anos, nos mostra como o autor era por trás dos livros, trazendo, ainda, uma entrevista com uma das filhas do escritor cearense, Marisa Alcides Campos. As entrevistas estão presentes com muita vivacidade, por certo. Além de Marisa, uma com os editores da Lote 42 e outra com o editor e fundador da Tradisom, José Moças, que nos conta como se tornou um dos maiores editores de Portugal. As imagens/colagens de capa são de responsabilidade do americano Chad Wys, e as imagens/colagens internas são de Célio Celestino. Que você, leitor, tenha a oportunidade de vislumbrar a substânsia que ora se apresenta. Um abraço, Os editores.


sumárioial

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O saber destilado da vida Renato Essenfelder

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José Moças: descobridor, colecionador e editor António Carinha

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Conto bagadefente e Ana Raquel Silva

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Moreira Campos por trás dos livros Léo Prudêncio

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A presença de animais na literatura Marco Severo

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Poesia Cristiana Cangussú, Mateus Henrique, Bruno Latorre, Sebastião Ribeiro, Constança Lucas e Alice Sant’anna

Variedades Literárias

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Entrevista com Lote 42

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O amor comeu na estante de todos os meus livros de poesia Patrícia Lino


NOTA Ao longo desta edição, você encontra um recorte da série “Demaquiladas”, de Célio Celestino. Artista e educador, natural de Fortaleza, tem 30 anos e há três descobriu a colagem como procedimento artístico. Dentre algumas exposições coletivas participou do Festival de Artes de Areia na Paraíba (2013) e da última Mostra Sesc Cariri das Artes (2013). Foi educador nos Museus do Centro Dragão do Mar de Arte Cultura entre os anos 2011 e 2012 e atualmente é professor de Artes Visuais no Cuca Chico Anysio.



ensaio

O saber destilado da

vida

Renato Essenfelder

O

gente, com bases teóricas hibridamente fincadas na sociologia, na literatura, na historiografia, na antropologia, na geografia humana, na psicologia, na comunicação e no jornalismo, sem a pretensão de resolver o mundo com um arcabouço teórico definitivo, o teorema perfeito. Re-

fredo Bosi, Silvano Santiago, Renato Ortiz, Milton Santos, Sergio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro. Entre os autores da atualidade – e ainda em atividade – podemos citar ainda Gilles Lapouge, Alberto Dines, Roberto DaMatta, Marcelo Gleiser, Marcelo Coelho, Ferreira Gullar e muitos outros com presença regular em diversos veículos de comunicação. Entre tantas, são vozes que sobressaem na produção de saberes e reflexões sobre o país e sua

negar esta fecunda tradição ensaística – ou pior, os frutos dessa prática no país – é renegar uma marca importante da produção intelectual brasileira e, talvez, um aspecto de conjugação entre os maiores pensadores de Brasil nos séculos XIX, inicialmente, e no XX, principalmente. O aspecto identitário é, aliás, o problema marcante da temática dos ensaístas latino-americanos1. Senão as bases para essa preocupação, o século XIX é pelo menos um de seus períodos

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ensaio tem sido, historicamente no Brasil, um instrumento privilegiado para a manifestação de grandes pensadores e para a constituição de importantes saberes, dado o histórico de brilhantes ensaístas no país. Silvio Romero, Oliveira Viana, Antonio Candido, Al-

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mais ricos na América Hispânica, quando escritores e poetas fortemente angustiados pelas grandes questões nacionais encorajam-se a abordar a temática em sua obra e até chegam a assumir cargos públicos de relevo, num exercício de engajamento e reflexão, literatura e pragmatismo. Um caso fundador é o de Domingo Faustino Sarmiento, considerado um dos grandes expoentes do Romantismo argentino à época. Sarmiento se exilou no Chile durante a década de 1840, perseguido pelo regime de Juan Manuel de Rosas. Lá, escreve seu livro mais famoso, o ensaio “Facundo, o Civilización y Barbarie”, publicado em 1845, que parte da biografia do caudilho argentino Facundo Quiroga para tratar, em realidade, da questão do caudilhismo no país – e reiterar sua oposição a Manuel de Rosas. Em 1868, Sarmiento é eleito presidente da Argentina – o que pode ser considerado o ápice de uma trajetória híbrida conciliada (e não dividida) entre o pensar a nação e o transformar a nação. Podem ser considerados ainda exemplos desta estirpe figuras como Simon Bolívar, na Venezuela, e José Martí, em Cuba, entre outros que, no século XIX, pensaram a América Latina em ensaios, sobretudo ligados a questões de identidade: nação, língua, cultura, independência. Firmam assim bases para a preocupação ensaística do século seguinte, que floresce dentro e fora da Academia. Lúcia Lippi Oliveira2, socióloga e pesquisadora da FGV-Rio, também se voltou ao estudo do gênero ensaístico no continente para detectar uma divisão histórica entre esses pioneiros – Sarmiento, Alberdi etc. – e os ensaístas do século XX, como Octavio Paz e Sergio Buarque de Holanda. Os primeiros, afirma, colocavam-se

como “salvadores”, propunham a reforma da sociedade primeiramente no papel e, logo, na política (como Sarmiento, de ensaísta a presidente da Argentina). No século XX, diz a pesquisadora, os ensaístas continuam a enunciar os problemas de sua sociedade, mantendo ainda acesa a tradição identitária. Mas não são mais os portadores da solução ideal ou da implantação esperta da ideia aventada: deixam isso a cargo dos executivos, técnicos, políticos. Lúcia Oliveira detecta ainda outro aspecto interessante que distinguirá o ensaio latino-americano do europeu, que presta tributo ao mestre francês Michel de Montaigne. Tratam-se de suas íntimas ligações com o jornalismo, com o fato contemporâneo, urgente e concreto, e com o jornal enquanto meio de comunicação de ideias e de ideais. Por isso, e por sua raiz também política, o ensaio latino-americano surge nas páginas dos jornais como crônica da sociedade, das quais é compilado para ganhar livros em edições assim imortalizadas. A proposta faz sentido se lembrarmos que esses ensaios do século XIX eram transformacionais, salvadores. “Discursos, cartas abertas e artigos polêmicos de jornal revelam o papel doutrinário e crítico dos ensaístas latino-americanos, que, ao exporem suas ideias, opiniões, teorias, procuravam ganhar adeptos e influir na exposição dos problemas da sociedade”, rememora a professora e historiadora Eliane Fleck3, referindo-se ao século XIX. Ainda é tempo, porém, de abrir parênteses para apresentar uma definição, ainda que provisória, do que vem a ser um ensaio. Etimologicamente, a palavra deriva do latim exagium, ou “ação de pesar”. Por extensão, afirma o dicionário Houaiss, significa “ponderar, avaliar”. O Dicioná-


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quisador Dimas Künsch8 em São Paulo, entre outros estudiosos. Mas, antes de tangenciá-la, voltemos à rica noção de complexidade como tecido. Captar esse tecido, compreendê-lo, demandaria mais do que apenas um sentido. Não é possível compreender o tecido somente pelo perscrutamento da visão. Ela pode explicá-lo, informar sua cor, seu tamanho. A textura e a maciez, contudo, serão apreendidas pelo tato. O cheiro, pelo olfato; o ruído do dobrar e estender das fibras, pela audição. Em suma, é possível explicar o tecido, parcialmente, pelo movimento de apenas um sentido. Mas compreendê-lo é um esforço plural. Operadores de complexidade ajudam nessa tarefa, segundo a sistematização de Morin. O pensador parisiense propõe três: primeiramente, o operador dialógico, cujo propósito é reunir conceitos tidos como opostos na nossa visão de mundo partitiva (razão vs. emoção; ciência vs. arte; razão vs. mito são exemplos muito arraigados dessa dualidade). Outro instrumento é o operador recursivo, que repensa a noção de causalidade, tão forte no pensamento contemporâneo – e no jornalismo em especial, o que de certo mereceria, por si só, capítulo à parte (tema já ricamente elaborado na obra de Cremilda Medina). Na recursividade não é apenas a causa A que produz o efeito B, e fim da equação. O efeito circula sobre a causa, transformando-a também. Há ainda o operador hologramático, em que se defende a visão holística do problema aventado: não é possível separar parte e todo. A parte está no todo. O todo está na parte. Somados, os operadores dão substância ao projeto de totalidade sem fazer com que ela sig-

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rio de Termos Literários de Massaud Moisés4 fertiliza o verbete. Vê no gênero ensaio “espécime literário de contorno indefinível”. Como o próprio rótulo denuncia, escreve Massaud, é impossível estabelecer com rigorosa precisão os limites daquilo que é somente “ensaio”. De fato, numa acepção demasiado ampla, tudo por ser considerado ensaio, mas essa visão levaria à inutilidade do termo – ecoando talvez o mesmo problema da História no verbete da Enciclopédia Einaudi em que Jacques Le Goff5 problematiza uma questão contemporânea de sua área: “Tudo é histórico, logo a história não existe”. História e ensaio, não obstante, existem. E o casamento entre essas vertentes tem se mostrado rico, aliás, como Michel Vovelle6 e sua defesa ensaística da história das mentalidades demonstra. Nesse caso, o ensaio como método é justificável – e necessário – para lembrar a cientistas, intelectuais e leitores que a complexidade do mundo não pode ser circunscrita ao x de uma equação. Complexidade. Não por acidente, toca-se aqui em um ponto-chave da ensaística. Nesse sentido, é interessante retomar a teoria defendida por Edgar Morin7, entre outros, que prega a impossibilidade de lidar com os problemas complexos das sociedades contemporâneas sem recorrer a estudos inter ou transdisciplinares, que, combinando os saberes parciais da sociologia, da medicina, da biologia, da comunicação, do jornalismo e de outras áreas, sejam capazes de abarcar satisfatoriamente o problema enfrentado. Complexus, do latim, está ligado à ideia de algo tecido em conjunto. É o particípio passado de complecti, que significa ainda compreender – mote da epistemologia da compreensão que na atualidade tem alimentado a trajetória do pes-

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nifique uma simples soma de partes – o que possibilitaria, em último estágio, o conhecimento do todo pelo exame partitivo. Mas o todo, no pensamento complexo, é ao mesmo tempo mais e é menos do que a soma das partes. Como no saber local indiano, em que o provérbio conta a história dos três homens incapazes de enxergar um elefante devido à proximidade com o objeto e à sua visão partitiva. Enxergam um rabo, uma orelha, um grossa pata cinzentos sem se darem conta, afinal, de que estão diante da vida, do movimento pulsante de um animal. Em seu texto “O Ensaio como Forma”, Adorno afirma que “o ensaio desafia gentilmente os ideais da clara et distincta perceptio e da certeza livre de dúvida”9. Segundo o autor, o ensaio é um protesto contra as quatro regras estabelecidas pelo “Discurso do Método”, de Descartes. Adorno começa sua reflexão abordando a regra segundo a qual o objeto de pesquisa deve, nas palavras do próprio Descartes10 em sua obra fundamental, ser dividido em “tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolver suas dificuldades”. No entanto, raciocina Adorno, os artefatos que constituem o objeto do ensaio resistem à análise de elementos. Sem romantizar o escrutínio da totalidade sobre o método partitivo, Adorno crê que “o ensaio se orienta pela ideia de uma ação recíproca, que a rigor não tolera nem a questão dos elementos nem a dos elementares. Os momentos não devem ser desenvolvidos puramente a partir do todo, nem o todo a partir dos momentos”. E, com isso, “o ensaio é presenteado, de vez em quando, com o que escapa ao pensamento oficial: o momento do indelével, da cor própria que não pode ser apagada”.

Diversos autores11 localizam no francês Michel de Montaigne a origem da acepção moderna de ensaio. Com seus escritos agrupados sob a alcunha Essays, de 1580, Montaigne propõe uma bagagem conceitual e estilística para o gênero. O moralista sugere que o ensaio se caracterize pelo auto-exercício das faculdades; pela liberdade pessoal; pelo esforço constante de pensar originalmente. E há outra característica, esta muito próxima do ethos jornalístico: o ensaio reúne experiências, ou seja, apresenta uma reflexão embasada empiricamente. Nas palavras do próprio Montaigne, o ensaio traz “o saber que se destila da vida”. Por fim, diz o autor que o ensaio deve ser necessariamente crítico – ou seja, repudiar o obscurantismo e o “sono dogmático”. Nesse sentido, é uma ginástica cerebral, lembra Silvio Lima, porque simultaneamente repudia qualquer autoritarismo (é ensaio, é exercício, é ato de pesar, e não o peso das coisas em si) ao mesmo tempo em que é rigoroso no “pensar firmemente por si só e por si próprio”. “O ensaio é o espírito crítico, é o livre-exame”, pontua Lima em seu “Ensaio Sobre a Essência do Ensaio”12. Outro pensador alemão, Max Bense, em “Über den Essay und seine Prosa”, afirmará complementarmente que “escreve ensaisticamente quem o questiona e o apalpa, quem o prova e submete à reflexão, quem o ataca de diversos lados e reúne no olhar de seu espírito aquilo que vê, pondo em palavras aquilo que o objeto permite vislumbrar sob as condições geradas pelo ato de escrever”13. Outras características que podemos apontar nos ensaios em geral são sua relativa brevidade, sua liberdade temática e sua abertura ao diálogo com leitores e especialistas. “O ensaísta não busca


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cos com grande antecedência. O conceito profético das artes entra em conflito com o conceito corrente das artes como meios de auto-expressão. Se a arte é um ‘sistema de alarme prévio’ – para usar uma expressão da Segunda Guerra Mundial, quando o radar era novidade – tem ela a maior relevância não apenas no estudo dos meios e veículos de comunicação, como no desenvolvimento dos controles nesses mesmos meios”15. A arte, pois, que frequentemente encontra no ensaio um veículo adequado de expressão – pela abertura da forma ensaística à intuição sintética do autor –, é um importante veículo para captar as pulsações de uma sociedade dinâmica e complexa. Há armadilhas nesse caminho, todavia. A maior delas parece ser a falsa dicotomização entre a liberdade do ensaio e a pesquisa científica. O ensaio não necessariamente rejeita a metodologia e o rigor acadêmicos. Pode ser plenamente científico, mas não canônico em sua forma. O romancista e ensaísta português Vergílio Ferreira16 reflete sobre o ofício e apela à necessidade de incorporar a ele a sensibilidade da arte. Referindo-se especificamente ao ensaísmo português, diz: “O que é importante é que o ensaio discuta, que problematize... é infinitamente mais útil o erro fértil do que a verdade estéril. Mas há um elemento urgente para incorporar ao ensaio e que o aproxima particularmente da arte literária – um que o torna um candidato potencial a suceder a novela: a sensibilidade.” Sendo assim, por que negligenciar, nas universidades brasileiras, a intuição sintética, alma do ensaio? Tememos a fertilidade de nossos próprios erros, às vezes dolorosos sim, mas sempre fecundos de possibilidades? Ou é a linguagem,

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provar ou justificar as suas ideias nem se preocupa em lastreá-las eruditivamente, nem, menos ainda, esgotar o tema escolhido; preocupa-o, fundamentalmente, desenvolver por escrito um raciocínio, uma intuição, a fim de verificar-lhe o possível acerto”, escreve Massaud. “Daí que o ensaio se constitua num exercício ou manifestação de humildade, e faça da brevidade e da clareza de estilo os seus esteios máximos. O ensaísta conhece por experiência as limitações do saber humano e tem convicção de que os torneios frásicos absconsos, o vocabulário especioso e bizantino, os neologismos forçados etc., não raro escondem o vazio intelectual.” Se pode ser tomado como uma espécie de meditação, o ensaio também é realização dialógica, ou uma meditação coletiva – ou ainda, como na literatura, uma meditação social. Os melhores ensaístas agem também como “antenas da raça” (ou “antenas da sociedade”), para citar a famosa metáfora de Ezra Pound14 ao se referir à sensibilidade quase premonitória dos artistas. Daí advém a elasticidade temporal do ensaio, que transita entre a grande obra literária, atemporal, e a pesquisa datada no aqui e agora. Marshall McLuhan expande essa idéia no prefácio à segunda edição do clássico “Understanding Media” (no Brasil traduzido como “Os Meios de Comunicação Como Extensões do Homem”). No início do texto, o pesquisador canadense afirma que “o poder das artes de antecipar, de uma ou mais gerações, os futuros desenvolvimentos sociais e técnicos foi reconhecido há muito tempo. Ezra Pound chamou o artista de ‘antenas da raça’. A arte, como o radar, atua como se fosse um verdadeiro ‘sistema de alarme premonitório’, capacitando-nos a descobrir e a enfrentar objetivos sociais e psíqui-

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mais despojada e por vezes poética que incomoda os arquitetos da obscuridade – cujo domínio confere inegável capital ao pesquisador? Pois Susan Sontag destaca justamente o brilho lírico do ensaio entre suas características mais sedutoras. “Enquanto precisão e clareza argumentativa e transparência de estilo são geralmente considerados normas na escrita de ensaios (...) a mais irresistível tradição do ensaio é um tipo de discurso lírico.” Ela localiza nos sermões e, antes disso, nas pregações em praça pública – que remontam ao filósofo Sócrates e seus célebres diálogos – o gérmen do estilo ensaístico, que celebra. Desse parentesco advém a coincidência de todos os grandes ensaios, diz Sontag, terem sido escritos em primeira pessoa. Contra o obscurantismo de uma certa prosa canônica que insiste em fechar-se em si mesma, fazendo-se acessível a poucos iniciados, o ensaio é plural e democrático. Aceita múltiplas formações, formulações, intenções. E, sem pruridos ou falsa modéstia, abre-se, inclusive, à dúvida e ao erro – o que vem a ser precisamente a sua maior virtude diante da complexidade do mundo atual.

História. Edição portuguesa. Porto, PT: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2003. VOVELLE, Michel. Ideologias e Mentalidades. São Paulo:

6

Brasiliense, 2001. MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo.

7

Porto Alegre: Sulina, 2001. 8

Sobre o tema, ver KÜNSCH, Dimas Antônio. Maus pensa-

mentos: os mistérios do mundo e a reportagem jornalística. São Paulo, Annablume/Fapesp, 2000. ______. O Eixo da Incompreensão: a guerra contra o Iraque nas revistas semanais brasileiras de informação. Tese de doutorado, São Paulo: ECA-USP, 2004. 9

ADORNO, Theodor. O ensaio como forma. In: Notas de

Literatura I. São Paulo, 34/Duas Cidades, 2008. P. 31-35. 10

DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Mar-

tin Claret, 2002. 11

MASSAUD (1974).

12

LIMA (1944, pág. 60).

13

BENSE, Max. Über den Essay und Seine Prose. In: Merkur,

1, 1947, p. 414-424. 14

Em seu “Abc da Literatura”, escreveu Pound: “Os ar-

tistas são as antenas da raça” (2006, pág. 77). 15

MCLUHAN, Marshall. Os Meio de Comunicação

como Extensões do Homem. São Paulo: Cultrix, 2011. p. 14-15.

NOTAS 1

OLIVEIRA, L.L. O ensaio e suas fronteiras. In: F. AGUIAR;

J.C. MEIHY e S. VASCONCELOS (orgs.), Gêneros de fron-

16

FERREIRA, Vergílio. Um Escritor Apresenta-se. Lis-

boa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1981, pág. 181.

teira. Cruzamentos entre o histórico e o literário. São Paulo:

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Centro Angel Rama, 1997.

12

2

Idem.

3

FLECK, Eliane. O ensaio (Comentários a Antônio Sanse-

verino e Márcia Tiburi). In: História unisinos. Vol. 8. No. 10. Porto Alegre: Unisinos, 2004. 4

MOISES, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São

Paulo: Cultrix, 1974. 5

LE GOFF, Jacques. Enciclopédia Einaudi, v. 1, Memória –

Renato Essenfelder é jornalista e escritor, doutor em Ciências da Comunicação pela ECA/USP e professor das Universidades Mackenzie e ESPM. É autor do romance “Febre” (Ed. Patuá, 2013) e do livro de contos “As Moiras” (no prelo).


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perfil

Moreira Campos por trás dos livros

Léo Prudêncio

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“Amo-te, fortaleza / nasci contigo / aprendi-te.” Das 348 crônicas escritas para o jornal O Povo, entre citações fortalezenses, 5 crônicas são dedicadas exclusivamente à capital cearense. A poucos meses de falecer, em crônica publicada em um jornal curitibano, ele confessa: “o chão que me viu crescer, que jamais abandonei e onde um dia fecharei os olhos”. Essa devoção pela cidade que o acolheu a partir dos anos 1930 repercute em toda a sua obra, principalmente através da linguagem. O total de contos produzidos por Moreira Campos diverge, mas muitos autores comentam que ele escreveu ao todo 137 contos. São de autoria do autor os livros Vidas Marginais (1949), Portas Fechadas (1957), distinguido com o Prêmio Artur de Azevedo, do Instituto Nacional do Livro, As Vozes do Morto (1963), O Puxador de Terço (1969), Os Doze Parafusos (1978), A Grande Mosca no Copo de Leite (1985) e Dizem que os Cães Vêem Coisas (1987).

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o dia 06 de janeiro de 1914, na cidade de Senador Pompeu, nascia José Maria Moreira Campos. Filho do casal Francisco Gonçalves Campos e Adélia Moreira Campos. O futuro contista formou-se em direito pela Faculdade de Direito do Ceará em 1946. Atuou no magistério, com louvor diga-se, na Universidade Federal do Ceará. O nome desse escritor é fortemente ligado à cultura literária do Ceará. Participou de importantes grupos literários como o grupo Clã, grupo precursor do modernismo literário no Ceará além de ser imortal da Academia Cearense de Letras (ACL). Seus livros são fonte de pesquisas acadêmicas não somente em nosso estado, mas fora dele também. Seus livros já foram traduzidos para o inglês, italiano, francês, alemão e até mesmo para os idiomas japonês e hebraico. O autor era apaixonado pela capital cearense. Uma dessas declarações de amor aparece no único livro de poemas do autor, Momentos:

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perfil

Os contos de Campos inicialmente eram longos, com o passar do tempo o escritor foi percebendo a necessidade de se reinventar e de se adequar às proporções pós-modernas e um grande salto para isso seria economizar seu vocabulário verbal. O espaço gráfico foi ficando cada vez mais condensado. Seus últimos livros publicados demonstram essa mudança. Mas desde seu primeiro livro, Vidas Marginais, o autor conquistou o respeito da crítica. Em um de seus prefácios, ele comenta que seus contos são “uma fatia de vida, um impressão, uma mancha”.

sonagens de maneira longa. O fator psicológico é fundamental em sua escrita, assim como a repetição de termos e expressões populares. Moreira Campos nos deixou uma vasta herança cultural e humanística. Eu conversei com a filha do autor, Marisa Alcides Campos. Quando criança, sua irmã Natércia não conseguia pronunciar seu nome; em vez de falar Marisa, a pequena pronunciava Badida. Familiares e amigos adotaram o apelido, e Marisa o adotou para assinar os seus trabalhos como artista plástica. Por e-mail tive a honra de conversar com ela, que assim como seu pai, é de uma extensa gentileza:

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Léo P: Estamos curiosos para saber como era Moreira Campos no ambiente familiar. Badida: Doce e espalhando Amor, sempre.

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Léo P. Como era a rotina dele? Badida : Acordava cedo, tomava seu café, acompanhado de minha mãe e de nós, filhos. Acendia o sacratíssimo cigarro e conversava amenidades. Depois ia para a Faculdade de Letras ou Reitoria e voltava à noitinha. Após o jantar, geralmente, Através de seus personagens, o autor nos reuníamos na sala, ou jardim e conversácaricatura os costumes, a moral e a sociedade, vamos. Antes de dormir ia para o seu gabinete utilizando sempre de uma linguagem carregada (“Buraco da Jia”) e lia, lia. de humor e também de ironia. Temas como a morte, o erotismo, a loucura e a maldade huma- Léo P: Ele lia e indicava livros pra você? na são recorrentes nos textos do autor cearense. Badida: Lia muito e, evidentemente, nos indiA sua linguagem abre mão do sentimentalismo cava livros preciosos. Lembro que li “Guerra e verbal, o que provoca no leitor uma transparên- Paz” com 14 anos de idade (era um dos livros cia maior do real. Um elemento curioso de suas prediletos dele) e que tive de repetir a leitura narrativas diz respeito aos seus personagens, que anos depois, para compreender melhor o Messempre se apresentam em ação. Moreira Cam- tre Tolstoi. pos não desperdiça tempo apresentando os per-


perfil

Léo P: Já mostrou algum texto (conto/poesia) mentos (seu único livro de poesias) me encanta de sua autoria para que ele comentasse? muitíssimo. Badida: Sim e ele era muito generoso com suas críticas. Léo P: Seu pai ficava ansioso para receber os comentários de seus livros? Badida: Se ficava, não demonstrava muito. Mas sei que restava feliz quando a crítica chegava. Certa vez, estávamos almoçando, quando chegou um telegrama de Graciliano Ramos que dizia: “Moreira, hoje amanheci com saudade de Dona Adalgisa. Abraço grande. Graça”. Dona Adalgisa é uma personagem de um dos contos de meu pai e que, na época, acabava de ser publicado. Léo P: Era frequente a visita de outros escritores na casa de vocês? Bandida: Muito frequente. Tive o privilégio de, na minha mocidade, conhecer os amigos Aurélio Buarque de Holanda, Rachel de Queiroz, Francisco Carvalho, Braga Montenegro, Eduardo Campos e vários outros. Finais de semana deliciosos no jardim de nossa casa, em conversas memoráveis. Léo P: Você sabe se existe algum conto dele que foi inspirado em algum episódio pessoal? Badida: Vários. Contos e poesias.

Léo P: Tem por costume ler os livros que seu pai publicou? Qual seu preferido? Badida: Leio sempre e gosto de todos, mas Mo-

Léo P: Como escritor, Moreira Campos deixou um vasto legado literário, qual o legado que ele lhe deixou como pai? Badida: Legado precioso: Humanístico, Amoroso e Cultural.

Léo Prudêncio nasceu em São Paulo no ano nostálgico de 1990, é capricorniano leitor de Saramago; Salman Rushdie; Guimarães Rosa; Poeta de Meia-tigela; Arnaldo Antunes; Ferreira Gullar, dentre outros mais. Nas horas vagas, escreve poemas e resenhas literárias.

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Léo P: Você já presenciou seu pai no momento da criação literária? Conte-nos. Badida: Ele se trancava no “Buraco da Jia”, escrevia, escrevia, e depois vinha até nós e lia o que acabava de criar. Aplaudíamos e ele sorria.

Léo P: Existem escritos inéditos dele? Badida: Penso que não. Possivelmente, se houver, minhas sobrinhas (Caterina Campos de Saboya e Carolina Campos) saberão melhor que eu, uma vez que ambas cuidam de todo o seu acervo cultural.

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entrevista

José Moças descobridor, colecionador e editor António Carinha Nasceu no Alentejo e passou parte da juventude no Algarve, foi estudar para Lisboa, onde fundou um grupo musical, e partiu para Macau. Do Oriente, José Moças trouxe uma pequena editora, das escalas em Londres, o gosto pela descoberta que o haveria de tornar no maior colecionador português de discos de 78 rpm.

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José Moças trabalhou em tribunais, andou por Lisboa a saltar de curso em curso, vive em Vila Verde e doou um espólio de cerca de 6000 discos de música por tuguesa à Universidade de Aveiro. A sua vida, tal como a vida da editora que fundou, é rodeada de música por todos os lados. Aos 61 anos, o fundador e proprietário da Tradisom admite ser um homem com sor te por fazer aquilo de que mais gosta.

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entrevista

António Carinha: Como, quando e onde nas- A C: Os fundadores do Almanaque são José Alceu a Tradisom? berto Sardinha, José Manuel David, Vítor Reino, Vítor Silva, Manuel Rodrigues e José Moças. José Moças: A Tradisom nasceu em 1992, em Julho, em Macau. E nasceu com alguma natu- J M: Exatamente. Foram esses os fundadores: o ralidade porque eu abandonei a minha carreira José Manuel David foi para os Gaiteiros, o Vítor de funcionário dos tribunais e fui trabalhar para Reino foi para o Maio Moço e antes disso Ronda a rádio e depois nasceu o bichinho da música. dos Quatro Caminhos, o Sardinha foi para as graEm Macau, porque eu já o tinha anteriormente. vações, o Vítor Silva continuou posteriormente E nasceu a editora, se calhar por causa dos discos com o Almanaque, já depois de eu e o Sardinha que eu tinha descoberto em Inglaterra.1 Havia a termos saído. Portanto, foi tudo malta que ficou

“A Tradisom, sendo uma editora pequena, pequeníssima, tão pequena que até há um ano atrás era só eu, agora somos dois, eu e mais uma colaboradora, tem cumprido um papel fundamental, se nós verificarmos o que até hoje já editou” necessidade de editar coisas. Foi por isso. A Tradisom quer dizer tradição no som, é essa a ideia. Havia uns amigos meus que brincavam comigo e diziam «ah, isso é trade som». Não, não: é tradição no som, a ideia é essa. Este nome, é uma curiosidade, estava para ser o nome de um grupo de que eu fiz parte em Lisboa, o Almanaque. Fomos os primeiros, antes da Ronda dos Quatro Caminhos, Terra a Terra …

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A C: Brigada Victor Jara …

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J M: Brigada Victor Jara. O nosso foi o primeiro a aparecer, logo a seguir ao 25 de Abril. E então eu sugeri Tradisom, que tinha tudo a ver. Eles disseram: não, não, é muito fechado, é Almanaque, que é mais aberto. E é verdade, é mais aberto. José Moças refere-se ao espólio de Bruce Bastin, agora no Museu do Fado. 1

ligada à música. O Manel foi o único que deixou de cantar. Isto tudo por causa do nome da Tradisom. A C: Depois a passagem da Tradisom para Portugal dá-se naturalmente. J M: Sim. Vim para Portugal em 97. Aliás, eu possivelmente era para ter ficado em Macau mais tempo. A ideia era que se calhar estava lá bem, ganhava-se bem, estava a fazer rádio, tinha um bom ordenado na rádio, era uma pessoa de que as pessoas gostavam muito. Era fácil editar porque em Macau havia muita capacidade financeira do governo. Desde que se tivessem ideias eles apoiavam tudo. Ideias com alguma piada. E eu em Macau fiz um trabalho interessante que foi recuperar um pouco do património que existia de influência portuguesa. Só que em 96 fizeram-me um contacto. Eu tinha uma ideia


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de um projeto muito interessante para 98 mas na altura, quando apresentei em 95 à comissão dos Descobrimentos, levei-o para trás. Era o Vasco Graça Moura o presidente. Só que, entretanto, foi para lá um novo presidente e ligou-me para Macau e perguntou: olhe como é que está aquela sua ideia? A minha ideia está no caixote, está no artigo sexto como a gente costuma dizer, está no cesto dos papéis, está no mesmo sítio. A minha ideia era fazer um projeto sobre a presença portuguesa no mundo. Fazia todo o sentido na altura em que estávamos a comemorar os 500 anos da chegada dos portugueses ao oriente.

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sem grandes ambições, essa é a verdade. Agora, se eu falar com honestidade, e a falsa modéstia também é uma estupidez, tenho consciência, e não sou eu que o digo, é o que as pessoas dizem, que a Tradisom, sendo uma editora pequena, pequeníssima, tão pequena que até há um ano atrás era só eu, agora somos dois, eu e mais uma colaboradora, tem cumprido um papel fundamental, se nós verificarmos o que até hoje já editou. E basta, por exemplo, falar em dois grandes projetos que fez. Primeiro a tal coleção da Expo, que é uma coleção de 12 discos que retrata a presença da música portuguesa no mundo. Estamos a falar de Macau, de Goa, de Malaca, de Timor, da Indonésia (da ilha de Sumatra), Cabo A C: Qual o papel da Tradisom no panorama das Verde, Brasil, Moçambique, São Tomé, o antiindústrias culturais portuguesas, hoje e ao longo go Sri Lanka, Ceilão, e havia muitos mais sítios da sua história? mas não podíamos fazer uma coisa megalómana. Fizemos 12, o que foi muito bom. Aliás, eram J M: A Tradisom foi um projeto muito pessoal, para ser seis e foram 12. E depois a edição da

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“O autor sem mim existe, eu sem o autor não existo. Se eu não tiver autores não edito.”

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filmografia do Giacometti, que era o espólio que estava na RTP há 40 anos e que ninguém tinha acesso praticamente a ele e que eu atirei-me de cabeça completamente louco porque fiz aquilo sem apoio de ninguém. Foi um projeto muito grande com o público. Não correu mal mas também não correu muito bem. Salvei a pele, como se costuma dizer. E tenho a consciência de que cumpri um papel fundamental. Agora, eu acho que ainda tenho muito para fazer. E o muito é, por exemplo, vir a editar mais tarde a recolha do José Alberto Sardinha que é o maior espólio que temos de música tradicional portuguesa, ponto final. O Giacometti foi talvez o que foi mais conhecido. Antes dele, o Armando Leça. O Armando Leça foi o pioneiro, nos anos 39 e 40, tanto que está para se editar as gravações do Armando Leça. Não sei se vou ser eu. Em princípio era para ser eu mas agora parece que tem de haver um concurso público e não sei quê. Tudo bem, se não for eu que seja alguém. Uma coisa assim um bocado trapalhona, mas pronto. O José Alberto Sardinha tem um espólio brutal, tem um espólio de imensos anos. Ele percorreu praticamente o país todo. Em muitos desses anos eu acompanhei-o. De 73 a 82 eu fiz, todos os anos, uma campanha de recolha com ele, no verão, em diversos pontos do país.

meiro, o Giacometti foi atrás, e nós fomos atrás dos dois, a fazer a cobertura do território nacional. O Giacometti, com os pontos de referência do Armando Leça, foi novamente aos locais e descobriu, com certeza, outros. E nós fizemos o mesmo. Fomos visitar de novo alguns desses locais e fomos descobrindo outros. Ainda hoje, e para muita gente isso pode ser uma grande novidade, o Zé Sardinha está frequentemente a ir fazer gravações a diversos pontos do país. Há sempre coisas. Temos o exemplo do novo grande recolhedor, ou recolhólogo, eu chamo-lhe recolhólogo, que é o Tiago Pereira, que está a fazer um trabalho fantástico com a música portuguesa, um trabalho lindíssimo. Ele revela-me coisas, a mim, que eu não imaginava que existissem. Eu andei por esse país fora e não conhecia. Há coisas incríveis. Ele tem feito um trabalho brutal e parece que vai ter sequência este ano, 2014, espero eu. Ele quer que eu esteja ligado ao projeto dele e penso que há fortes perspetivas de se fazer uma coisa séria durante 2014. Isto era o papel que o Estado deveria ter tido, na área da cultura, e não houve um plano nacional, não houve nada. Nem sequer apoios dão! Os palermas, os carolas que gostam disto é que andam a preservar a nossa música e a nossa cultura porque não há um plano nacional, nem de salvaguarda, nem de nada.

A C: Vocês são os herdeiros?

A C: A Tradisom recebe o apoio de alguma entidade para a edição de alguns trabalhos?

J M: Continuadores. J M: Tem recebido, pontualmente, por cada projeto, ou seja, o que eu procuro é apoios que teA C: Do Armando Leça ou do Giacometti? nham a ver com o trabalho que se está a realizar. J M: Vamos lá a ver: o Armando Leça foi o pri- Ou seja, não vou pedir apoios à toa. Por exem-


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agora for fazer … Suponhamos, eu estava para editar e talvez ainda edite o primeiro volume das recolhas do Armando Leça, que é sobre o Alentejo. A minha ideia era esta: temos gravações de 10 localidades, se cada localidade, se cada câmara der 5 tostões, como eu costumo dizer, eu faço o livro e dou um determinado número de exemplares às camaras para distribuírem, venderem, fazerem o que quiserem. Pá, 500 euros, ou 1000 euros que seja, para resgatar um património com 75 anos, que é exatamente em 2014 que se fazem 75 anos sobre as gravações do Armando Leça… Aquela porra teve guardada 75 anos nos arquivos, ninguém conhece e estamos a falar de música tradicional portuguesa, peças que nunca ninguém ouviu, porque é seguro que há ali melodias que ninguém conhece mesmo, não conhece cantadas, se calhar conhece as quadras mas não está lá a música. É assim: esse espírito de missão, às vezes, cansa. Um gajo andar aqui a trabalhar para o país, como se costuma dizer, e anda a pedinchar umas coisinhas aqui, umas coisinhas ali. Eu vou ao Alentejo para pedir 1000 euros a uma câmara, ir e vir gasto 250. As pessoas não percebem isso, nem veem isso. Marcam uma reunião em Serpa para falarem qualquer coisa. Eu nunca peço para me pagarem a deslocação a Serpa. Chego lá, aquilo não dá em nada. Gastei dinheiro para quê? Portanto, isso tem de ser tudo contabilizado a nível edito-

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plo, vou explicar: um dos que, realmente, foi um apoio fantástico foi o livro do Sardinha A Origem do Fado, que é um grande livro, 600 e tal páginas sobre a história do fado. Eu fui apresentar o projeto ao Inatel e o homem deu-se ao trabalho de ler aquilo e disse: eu entrei agora no Inatel, nem sei que dinheiro há, mas eu quero editar isto convosco. E pagou a edição na íntegra. Portanto, é um apoio destes que interessa. Porque as pessoas podem pensar: fizemos 2000 livros, e os livros estão a ser vendidos a 60 euros nas livrarias. É… a livraria leva metade, os custos de envio e não sei quê, não estamos a falar nisso, que é dinheiro. E depois, eu tenho uma filosofia, que sempre foi assim, com os autores, acho que nenhuma editora faz isso, ou seja, eu sou parceiro do autor, porque eu penso desta forma: o autor sem mim existe, eu sem o autor não existo. Se eu não tiver autores não edito. Portanto, eu divido a 50% as vendas com os autores. Agora, eu não contabilizo os gastos que faço para ir a Lisboa 50 vezes num ano, as deslocações, todas essas coisas. Se eu contabilizasse isso vou chegar ao fim e não tenho grandes lucros. Mas pronto, lá está, desde que eu vá vivendo, que é o que me interessa, vou vivendo, tenho a minha vida estabilizada. Agora, há apoios que às vezes se justificavam e as pessoas não são sensíveis, que acho que é uma coisa que, enfim, não tem muita lógica porque, por exemplo, se eu

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ma, a história de Pedro e Inês. Fizemos três espetáculos que foram maravilhosos, correram bem, as pessoas adoraram. É verdade o que eu estou a dizer. Foi um trabalho giríssimo. É um trabalho de que eu orgulho-me de ter feito. E eu apresentei o projeto à educação, havia um concurso, A C: O Auto da Fonte dos Amores recebeu algum nem sequer responderam. É que nem sequer se apoio? dignaram. Havia um concurso, abriram, houve candidatura, houve tudo e nem sequer disseram J M: Para este livro ninguém deu um tostão. Eu nada, nem sequer responderam a cartas registapaguei o livro na íntegra e praticamente não o das. vendi porque foi muito complicado, porque falhou uma promessa. É assim: a Quinta das Lá- A C: O Auto da Fonte dos Amores é o quê? É um grimas tinha dito que apoiava a ópera, não sei livro com um CD, é um CD com um livro, é um quê, não sei quantos, e não sei quê, que apoiava livro, é um libreto, é um panfleto, bem cuidado a ópera e depois não deu nada, acabou por não e bem tratado, o que é isto? dar nada e eu fui na conversa. Eu gastei para a gravação do CD… Esteve uma equipa em Aveiro J M: Isto para mim é uma obra. Uma obra que durante dois meses e eu a pagar tudo, estadias, tem várias componentes. O Auto da Fonte dos alimentação, tudo, paguei tudo, a toda a gente, Amores é um dos trabalhos que eu mais gostei e e ainda houve muita gente que participou nisto, a minha mulher, que é professora do ensino sealiás os principais nomes que aqui estão, pratica- cundário, disse-me: este livro, este trabalho, tem mente de borla. O Sérgio Godinho não cobrou todas as condições para ser um sucesso a nível um tostão, o João Afonso foi uma coisa simbóli- de secundário, porque era fácil de implementar ca. A Uxia, o Manuel Freire, praticamente essa como se viu nos três sítios onde estivemos, a malgente toda participou sem quase lhes pagar, mas ta adorou, participou entusiasmada, as pessoas foi muito dinheiro que eu gastei com este livro e que foram ver … Então em Arouca foi uma coisa foi um fiasco, porque eu tenho os livros no arma- brutal e eu tenho pena que realmente não tenha zém e vende-se um ou outro, de vez em quan- sido levado por diante. Eu estou sempre a tentar do, nas lojas. Nas Bertrand, por exemplo. Está descobrir sítios onde possa apresentar o projeto. lá. Isto era um livro e um projeto que devia ter Tenho pena. Tenho pena porque, para já, fiquei passado pelas escolas todas do país porque tinha com a maior parte dos livros no armazém. Tenho todo o sentido. Porque isto fazia parte do progra- disto até dizer chega. É um livro lindíssimo, não Revista Substânsia

rial. A minha mulher está sempre a dar-me na cabeça e tem razão. Eu continuo a fazer sempre da mesma maneira, não contabilizo essas coisas porque é o meu dia-a-dia, mas é aí que eu gasto o dinheiro.

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“Para este livro ninguém deu um tostão. Eu paguei o livro na íntegra e praticamente não o vendi porque foi muito complicado, porque falhou uma promessa.”


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José Moças tinha razão na dúvida e referia-se, muito provavelmente, a Comandante Hussi.

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só em termos de apresentação gráfica, como os textos são fantásticos, são jocosos, são muito agra- J M: Ele é jornalista na Lusa. Trabalha na Lusa dáveis, e eu acho que foi um projeto de paixão, e é ilustrador desde há uns anos. Ele trabalhava digamos assim. comigo na Rádio Macau e quando fazíamos os noticiários eu lembro-me, agora, de eu na mesa A C: E em relação à ilustração, o que há a dizer? de mistura, o gajo lia a notícia, depois pegava no papel e começava a fazer rabiscos. Eu nunca J M: O ilustrador é um grande amigo meu de olhava para o papel mas era já a veia dele que Macau, o Pedro Sousa Pereira. Este foi o primei- estava a sair ali. Mas ele lá em Macau nunca fez ro grande projeto que ele fez comigo e, depois nada, só quando veio cá para Portugal é que fez deste, já fez mais dois, mas é o novo projeto que um livro com um colega dele, o Jorge Araújo, se tem de ser falado e tem de ser badalado, o novo não estou em erro. E esse primeiro livro que ele disco do Júlio Pereira, para comemorar os 30 ilustrou ganhou um primeiro prémio de ilustraanos do Cavaquinho dele, que foi o grande pro- ção da Gulbenkian. jeto de músico dele. Ele é realmente um executante fantástico. A C: Agora, aliás, já tem mais do que um livro com o Jorge Araújo. A C: Executante e que agora tem também um papel importante na divulgação do cavaquinho. J M: Exatamente, já tem mais, já tem mais. É Capitão Lúcio, não é? Não, não é Capitão Lúcio, J M: Exatamente. Isto não é só o disco, isto é uma é qualquer coisa assim.2 Já fez vários, pronto. Ele componente que é o disco e a Associação Museu para mim é um grande amigo meu. Por exemplo, Cavaquinho. O trabalho é fantástico, porque não ele agora sabe que estou com dificuldades finané só um disco, também é um pequeno livro, de ceiras, que estou a investir muito dinheiro nescapa dura, ilustrado pelo Pedro, ilustrações fan- te projeto do Júlio Pereira, lógico, porque é um tásticas. Só pode ser um grande sucesso, espero trabalho grande e ele fez-me as ilustrações todas eu. É do Júlio Pereira que estamos a falar. E o e disse: oh, pá, não pagas nada, pagas quando Pedro tem um estilo muito próprio. E, neste mo- puderes, e eu vou-lhe pagar, porque eu pago-lhe mento, é um ilustrador reconhecido. Basta dizer sempre, só que agora só quando tiver dinheiro. que ele fez a coleção comemorativa do centená- As ilustrações são todas minhas. Ele faz as ilusrio da república, para a Vista Alegre, e fez a co- trações e ficam para mim. Tenho-as aqui todas. leção alusiva a Guimarães Capital Europeia da São aquelas pastas que estão ali encostadas. Até Cultura, também para a Vista Alegre. E, neste as posso mostrar. E, portanto, ele vai continuar natal, fez uma das seis bolas de Natal da Vista a trabalhar comigo. Para o ano já tenho aí outra Alegre, bolas decorativas, e a dele foi a primeira coisa que ele vai fazer. que esgotou. E os outros nomes eram nomes internacionais. As pessoas gostam daquilo que ele A C: Quanto custaram as ilustrações para O Auto faz porque ele tem um estilo muito próprio. da Fonte dos Amores? A C: Pedro Sousa Pereira que é jornalista. 2

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J M:As ilustrações? Não, estas aqui não lhas paguei porque eu consegui que lhas comprassem. Eu destas não fiquei com nenhuma, infelizmente. Foi porreiro porque ele ganhou umas massas, mas eu tive pena porque não fiquei com nenhuma. Tenho cópias aí numa pastazinha. Na altura fiz uma digitalização como deve ser. Não tenho é da capa, acho eu. Depois, se quiser, faço uns quadrozinhos daqui. A C: São também as ilustrações que ajudam a definir O Auto da Fonte dos Amores como uma obra? J M: É uma obra. Mesmo até graficamente, pela maneira como o meu designer paginou este livro.

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A C: O designer que é outro amigo de Macau.

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quiser ir procurar vai ver em que ato é que está e vai procurar, mas não tem índice, pois não? Pois, este não tem índice. Tem uma ficha técnica, que diz mais ou menos quem é que participou, os nomes mais importantes e tal, mas de resto… A C: Tem ficha técnica mas só a ficha técnica do CD, não tem a do livro. J M: Isto é uma obra musical, para todos os efeitos, nem sabíamos se isto algum dia ia ser levado à cena, mas efetivamente, no fundo, isto é uma obra musical. Isto é libreto e música. No fundo, isto é um trabalho musical, apesar de ter este tamanho todo, mas isto é por causa das ilustrações. Se não houvesse ilustrações, isto não tinha sido assim. Era um livrinhozito normal, um CD, só que quando eu vi as ilustrações pensei: “Não, isto tem de ser uma coisa como deve ser”. As coisas também não são estanques. Pode-se começar a imaginar uma coisa e depois alterar-se consoante as componentes. Eu aqui tomei esta opção e pronto, ficou um trabalho que me deu muito gozo, em termos de qualidade.

J M: Exatamente, é o Bibito, um grande amigo meu. A maneira como ele concebeu os pormenores é um trabalho que eu realmente acho fantástico. Eu tenho agora um projeto para o ano de 2014, que é esse em que o Pedro Sousa Pereira também vai colaborar comigo, e que está A C: Neste tipo de formatos há obras com ficha no segredo dos deuses, e o Bibito vai fazer-me a técnica do CD e ficha técnica do livro. maquete. J M: Mas aqui praticamente só temos a parte A C: Uma característica que salta à vista é a au- musical, tudo o que está aqui faz parte do disco, sência de páginas numeradas. tem o texto, os músicos que participam em cada faixa. Isto tem tudo a ver com a música. Tudo J M: Porque tem uma divisão por atos e cada ato o que está aqui tem a ver com o CD. As letras tem uma sequência. Isto começa sempre da mes- do que é cantado, os músicos que participam em ma maneira. Tem a introdução, muito bem. De- cada faixa. No fundo, é uma obra musical. pois tem a ilustração, o nome do ato, o dos músicos que participam e o texto. Caso não haja texto, A C: Nos livros do José Alberto Sardinha a lógica diz que é instrumental e volta ao mesmo. Por- funciona quase ao contrário. Aí o CD é quase tanto, isto é uma repetição ato a ato. A pessoa se um apêndice do livro.


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J M: É um complemento, porque aí é um livro de investigação. São obras de investigação e as obras de investigação tem a parte de ilustração musical. Aí vem tudo identificado, com as faixas, os locais, os informadores. Fazemos isso com muito rigor para não falhar nada. Mas isso são livros de investigação, que estão complementados com o CD, com música. Mas não são discos, os discos são só a parte complementar.

mesmo, por aquilo que eles venderam. Quando os Adiafa criaram aquele êxito, não sei quê da, não sei como é que era, daquela gaja… A C: Das Meninas do Sado. J M: …das Meninas do Sado, contactaram-me para eu editar o disco. Eu disse “não, isso não é muito o meu género” e não editei. Os gajos venderam uns 50 ou 60 mil discos, o que dava muito dinheiro, de certeza. Lá está, se eu tivesse objetivos comerciais,

“Tenho a sorte de fazer aquilo de que gosto. Passo aqui os dias, sentadinho, ouço música, o que é que eu quero melhor? Melhor, nada.” A C: A Tradisom nasceu mesmo só de um gosto pessoal, pela descoberta de sons, da música e sua história, ou também houve a perspetiva económica de procurar o nicho de mercado que não estava explorado?

J M: Não, não houve nenhum plano pré-concebido do que é que seria a Tradisom. A Tradisom nasceu com muita naturalidade, precisamente pela necessidade de fazer coisas em Macau, ou seja, resgatar um pouco do património de Macau. Desde que a Tradisom nasceu há um denominador comum. As recolhas do Giacometti, as recolhas do Sardinha, as recolhas do Armando Leça, a presença musical portuguesa no mundo, os arquivos do fado que são coisas que estão guardadas com 50, 100 anos de gravação que ninguém conhece, esse é o denominador comum. Essa é que é a verdade e a minha preocupação principal, ou seja, eu não ando a editar o Ema- A C: Valerá a pena, por vezes, a pessoa ceder ao nuel … Eu vou dar um exemplo de como pode- seu objetivo inicial? ria ter ganho uma pipa de massa. E tinha ganho

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se calhar … Eu tive ideias que depois disse “ah, não vou fazer”, mas tive ideias engraçadas. Quando foi da passagem de Macau para a China tinha uma ideia que eu acho que ia dar muito dinheiro. Criei uma figura e só precisava de arranjar quem fizesse as letras e a música. Ia vender que era um disparate. Era a figura do Zé Mandarim, a mistura de Portugal e da China. Zé Mandarim, a cantar coisas populares portuguesas vestido à mandarim, com as trancas e tal. Aquilo andava pelo país inteiro e vendia que era um disparate. Vendia ou não vendia? E eu não fiz. Disse “vou dar-me ao ridículo”, porque eu é que ia fazer de Zé Mandarim. Eu é que me ia vestir e ia cantar. Eu cantei muitos anos, não tinha problema nenhum em cantar. Mas eu disse “oh pá, não faças isso, é melhor não”. Mas ainda estive tentado a fazer essa do Zé Mandarim. Isso era para faturar. Bem, não era brincadeira. Era para faturar muito dinheiro.

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J M: Acho que fiz bem em não fazer isso. Acho que fiz bem em não fazer isso porque o objetivo não é só o dinheiro. O dinheiro é importante, se não eu também não vivia. Felizmente, em Macau, tinha dinheiro. Fiz muito dinheiro porque trabalhei muito. Eu e a minha mulher. Trabalhámos muito, a fazer muitas coisas, a fazer programas especiais para a rádio, ela traduzia filmes para a televisão. Lá ganhava-se bem, mas tinhase de trabalhar. Não era abanar a árvore das patacas. Fiz uma casa, estou aqui porreiro, estou aqui

Lisboa, se calhar surgiam mais contactos, mais propostas, porque estamos ali ao lado, ainda que, hoje em dia, nós estamos aqui, estamos em qualquer lado do mundo. Mas eu, de longe, prefiro estar aqui. Preferia estar no Alentejo, de longe, que eu sou de lá e é onde eu gosto mais de estar, mas, já que não posso, estou aqui. A C: O José Moças é de Estremoz? J M: Exato.

“Eu não vou escrever livros, eu tenho é de fazer as edições dos outros e desafiá-los para fazer, que eu estou cá para editar, que é o mais complicado. Há tanta gente que tem trabalhos fantásticos para publicar e que nunca foram publicados.” num sítio espetacular, não há barulho, não há nada, com boas condições. O que é que eu posso querer mais? Tenho dinheiro para comer todos os dias. Então, pronto, uma pessoa tem de fazer aquilo que lhe dá prazer. Porque quantas pessoas na vida é que podem fazer aquilo de que gostam mesmo? Quantas? A C: Poucas.

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J M: Pronto, e eu faço. Tenho a sorte de fazer aquilo de que gosto Passo aqui os dias, sentadinho, ouço música, o que é que eu quero melhor? Melhor, nada.

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A C: A Tradisom seria a mesma se estivesse sediada em Lisboa, se este local fosse em Lisboa? J M: Lisboa é a capital do país. Quando eu saio daqui para ir a lançamentos, surgem sempre contactos. Portanto, se eu estivesse sempre em

A C: “Não sou um investigador, sou apenas uma pessoa interessada em descobrir.” J M: Sim, não faço estudo, não me preocupo em estudar. É assim, dou exemplos: ainda agora encontrei um puto novo, isto às vezes há cada surpresa, encontrei um puto que está a acabar um mestrado, nem sei qual é o curso dele, não me lembro agora. Apareceu-me na net, a contactar-me e ele é um estudioso dos guitarristas desde o início do século. Eu estou maluco, ele trabalha muito. É uma paixão que o moço apanhou porque andou a aprender guitarra e ficou maluco com aquilo e vou fazer, de certeza, qualquer coisa a sério com ele. Está a fazer um trabalho sobre o Armandinho, que foi o maior guitarrista da história do fado e disse: “ah, mando só assim, agora, um estudo, ainda não é o texto final, nem nada que se pareça. Dez páginas, fotografias ... Agora vai fotografar as guitarras do Armandinho,


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que estão no Pedro Caldeira Cabral. Eu estou para ver o que vai sair, mas o gajo é muito bom. E eu fico surpreendido com gente como esta e o que eu preciso é isto. Eu tenho uma coisa que pouca gente tem, que é um grande espólio de discos de 78 que é praticamente a história da nossa música desde o inicio do século, na parte do fado e da música tradicional e o que eu tenho é de descobrir as pessoas capazes de trabalharem sobre isto. Porque os sons tenho eu mas eles é que têm de estudar. Portanto, não sou investigador, não faço pesquisa, não faço nada. Agora, se me perguntarem o que aquele fulano gravou, isso sei. Sobre gravações sim, sei dizer o que cada um gravou, as gravações que temos e isso tudo. Porque tenho numa base de dados com os discos todos indexados, que eu fiz. Agora, não faco investigação, nem tenho condições para isso, nem quero, porque não é o meu objetivo. Eu não vou escrever livros, eu tenho é de fazer as edições dos outros e desafiá-los para fazer, que eu estou cá para editar, que é o mais complicado. Há tanta gente que tem trabalhos fantásticos para publicar e que nunca foram publicados. A C: A primeira sessão de gravações de fados acontece no Brasil?

A C: Foram descobertos na última meia dúzia de anos? J M: Pois foram, a minha coleção começou há meia dúzia de anos, há 6 ou 7 anos, não foram mais. A C: Durante muito tempo pensou-se que a primeira sessão de gravação de fado tinha sido uma de 1902, feita no Brasil, de Manuel Pedro dos Santos, o Baiano. J M: Sim, mas isso era no Brasil. Em Portugal, eu já sabia que eram de 1900 e disse isso em entrevista para o Diário de Noticias, já há uns anos, e só agora é que esta moça fez a pesquisa, foi aos arquivos a Inglaterra, e veio confirmar aquilo que eu já dizia há anos mas que ninguém ligava nenhuma. Não sou investigador, mas, lá está, descubro as coisas. Agora, não vou trabalhar, não vou para Inglaterra para os arquivos, mas, mesmo aqui, eu descobri e foi muito simples descobrir. A C: A descoberta em Inglaterra do espólio do Bruce Bastin foi fundamental para o início dessas descobertas? J M: Pois, isso foi o que deu origem a tudo porque

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J M: A primeira sessão de gravações foi feita no Porto em 1900. A primeira sessão de gravação de músicas portuguesas, entre elas muitos fados, foi feita no Porto em 1900. Isso está já escrito, aliás temos um artigo, que eu até tenho aqui, que foi publicado agora na Alemanha e que me mandou a Susana Belchior, que é da Universidade Nova de Lisboa, e que também colabora no Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro. Ela publicou um artigo, Contributions for the history of the record industry, que

saiu na Alemanha numa revista,a Strom Projet. Eu tenho 4 discos desta primeira sessão de gravação, em 1900. A fotografia do artigo dela é de um disco meu: Fado Hilario cantado pelo senhor Duarte Silva. Ela diz que o disco é da coleção de José Moças. Também era melhor que não dissesse, não é? Private colection José Moças, Universidade de Aveiro. Porque, em princípio, a coleção já está na Universidade de Aveiro. Não está nada, está aqui, mas pronto.

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a descoberta do espólio do Bruce Bastin é que fez com que … Do espólio, não, aquilo nem foi a descoberta do espólio, aquilo foi … Eu vinha de férias de Macau a Portugal e parava sempre em Inglaterra para ir comprar discos, ou à ida ou à vinda. Fui lá a uma His Master’s Voice comprar uns discos e vejo lá um disco, Fado From Portugal, Lisbon, 1926-1931. Eu nem sequer imaginava que havia gravações daquela altura. “Mas isto é espetacular”, e levei o disco. Depois fui para a rádio e pus aquilo a tocar. As vozes, a maneira de cantar, nada se comparava com o fado que eu ouvia normalmente, que eu nem era apreciador de fado, mas ouvia. Depois fui para a rádio e pus aquilo a tocar. Começaram a telefonar-me a pedir o disco. Muita gente a pedir. “Tenho de arranjar discos”. Mandei uma carta para Inglaterra e o Bruce Bastin disse: “discos é o que eu quero vender, quantos quer?” “Uns 100.” Mandei vi-los e anunciei na rádio: os discos estão à venda na Livraria Portuguesa. Venderam-se todos. Depois, com o segundo volume sobre Coimbra, a mesma coisa. Eu disse ”tenho que fazer qualquer coisa”. Eu já tinha feito dois discos na Tradisom e pedi ao inglês se podia fazer uma edição daquelas e foi aí que fiz o terceiro e o quarto. E depois comecei a pensar na ideia de fazer uma grande coleção. Ele já tinha uns 40 títulos pensados para fazer, uma loucura. Aquilo deixou-me um bocado intrigado e tanto que depois combinei e num dos anos fui ter com ele. Quando cheguei lá e vi a coleção fiquei maluco. Aquilo era uma coisa inacreditável. Então decidi não fazer mais nada, porque estávamos a fazer aquilo sem grande rigor, digamos assim. Os textos até tinham erros e tudo. Agora sei que tinham erros, na altura não sabia. E então perguntei se ele não queria vender aquilo para Portugal. Ele respondeu que não, mas comecei a fazer contactos e depois ele já estava disponível

para ceder o som, ficar com os discos mas ceder uma cópia das gravações para se poder fazer trabalho de edição cá, que era o fundamental. Mas a estupidez dos nossos dirigentes é tanta que só queriam era comprar os discos. E o Bruce Bastin voltou a dizer que não queria vender. Eu sugeri que ele pedisse uma brutalidade e ele disse mais uma vez que não vendia. Eu tanto insisti, porque achava que aquilo tinha de vir mesmo para Portugal, porque é aí que pertence, que o homem lembrou-se de pedir um milhão de euros. E acabou por vender por 900 mil. Vendeu só por causa de eu ter dito para ele pedir uma brutalidade que talvez comprassem. Já que estavam armados em parvos… E foi o que fez e eles compraram. A C: Quem é que comprou? J M: Comprou o Ministério da Cultura e aqui-


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J M: A doação teve por base duas coisas: primeiro, porque gosto da Universidade de Aveiro, porque já tinha feito um grande projeto com a universidade que foi A Viagem dos Sons para a Expo 98, com a Susana Sardo, do Departamento de Comunicação e Arte, que foi a coordenadora científica do projeto e de quem me tornei amigo, porque a Universidade de Aveiro tem qualidade e porque eu sozinho tenho os discos mas depois não tenho hipótese de fazer nada porque não tenho capacidade financeira. Tinha de arranjar alguém que estivesse disponível para me ajudar na investigação e na edição e a conseguir aqueles fundos que eu não consigo, só as universidades é que conseguem. E foi isso. Decidi por mim sem ninguém me ter pedido nada. Eu é que tomei a iniciativa de telefonar à Susana e ela comunicou ao reitor. Doei a minha coleção à universidade nessa perspetiva. Há um protocolo assinado em que a universidade se compromete a digitalizar a coleção toda, fazer trabalhos de investigação, arranjar meios financeiros para se editar. A C: E espera que a Universidade de Aveiro não aja como o ministério da cultura em relação à coleção do Bruce Bastin?

J M: Nem pode, senão eu denuncio o contrato, isso aí é trigo limpo. Até foi a universidade que na altura sugeriu um protocolo. Depois o Sardinha, que é meu amigo e advogado, é que deu ali uns jeitos. Eu tenho usufruto vitalício da coleção. Enquanto eu for vivo eu edito o que eu quiser daquela coleção, ou seja, pego nos discos, vou ali a Espanha ao meu amigo que digitaliza, faço discos, faco o que eu quiser, ninguém me pode A C: E o que leva o proprietário de uma coleção obstruir de fazer isso. Agora houve dois doutoranvaliosa a oferecê-la? dos da Universidade de Aveiro que me pediram

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lo foi para o Museu do Fado. Tentou-se que no protocolo de compra ficasse mais ou menos dito que depois a Tradisom estaria envolvida na edição, segundo as regras que o ministério definisse, ou seja, eu não pedia nada, só pedia, já que fui eu que descobri a coleção, para estar envolvido nas edições, conforme o ministério quisesse. Eu nem pedia percentagens, nem pedia nada, mas eles não quiseram. Eu percebi logo que me iam dar um chuto. Percebi pelas conversas que tinha tido, quando se estava a tentar fazer a compra. Foi o que aconteceu. E foi aí que eu disse: vou procurar porque há de haver discos aí por todo o lado, só que a malta não quer é ter trabalho. Depois fui a feiras de velharias, alfarrabistas, comecei a bater tudo. Resultado: a coleção do inglês é de 2500 discos, a minha é de 6500. Pronto, que chatice, não é? Mas gastei muito dinheiro. Todo o dinheiro que ganhava era para comprar discos. Comprei discos no ebay, nos Estados Unidos e noutros sítios do mundo, mas a grande maioria foi cá em Portugal, a pessoas que compram espólios de casas e que eu fui contactando. Combinámos que eu comprava os discos todos ao mesmo preço. Todos, não me interessava se os tinha ou se não os tinha. Eles gostaram da ideia porque sabem que tudo o que encontram é a cinco tostões. Eles compram o recheio da casa, aquilo vem quase ao custo zero, e há alguém que lhes compra tudo. Foi assim que eu fiz a minha coleção: um preço barato, mas eles sabiam que vendiam tudo. Havia aí gajos no mercado a pedir por um disco da Amália 50 euros. Eu tenho-os todos, até tenho repetidos cinco, seis e sete vezes. Os discos da Amália até são dos que há mais porque eram tiragens muito grandes. Foi assim que fiz a minha coleção.

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ideias sobre o que é que podiam fazer da minha coleção. Eu dei-lhes ideias. Se se fizerem são projetos muito giros. Um é sobre os emigrantes portugueses que foram para os Estados Unidos e que se tornaram fadistas. Tenho praticamente todos os discos deles. É engraçado fazer essa pesquisa. Eu próprio até já tinha os contactos dos herdeiros deles e tudo. Dei-lhes isso tudo para a mão. E o mesmo no Brasil. Portugueses que foram para o Brasil e ficaram lá. É como se fossem brasileiros. Foram para lá cantar fado e ficaram e a maior parte das pessoas aqui nem os conhece. Portanto, a ideia é fazer esse tipo de coisas. Ainda não sei se foram aprovados na Fundação para a Ciência e a Tecnologia, mas esse é o tipo de ideias que eu queria implementar.

cos aqui. Entretanto, ofereci aquilo a um amigo qualquer que fez um artigo para o jornal. Aquilo saiu no jornal e a Fnac telefonou-me a dizer que muitos clientes queriam comprar o disco do Lomelino Silva. Mandei-lhes 25. Venderam-nos todos. É um disco que um dia, se calhar, até vou reeditar, porque ele cantava tão bem e as gravações estão tão boas, tao boas. Quando eu mandei uma cópia do disco ao Rui Vieira Nery ele telefonou-me: “Oh, Zé, tu estás a brincar comigo? Isto não pode ser.” “Não pode ser o quê?” “Este som.” “Este som o quê? É o que esta aí.” “Mas isto não tem barulhos, não tem nada, é uma coisa inacreditável.” As gravações dele são de uma limpidez, não têm barulhos, não têm nada. Só visto. Depois há um libretozinho sobre a história

“Podem criticar quem quiserem, deem-se mal, andem aos tiros, que para mim é-me igual, porque eu não tenho nada a ver com isso.”

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A C: É uma preocupação trabalhar esse aspeto da identidade nas comunidades?

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J M: Então, não é! Inclusivamente, eu fiz um disco, aqui há uns anos, do primeiro madeirense que gravou na história, que acho que quase ninguém conhecia. É praticamente desconhecido em Portugal, mas nos Estados Unidos atingiu muita fama. Ele era muito bom cantor. Lomelino Silva, conhecido como o Caruso português. O teatro antigo onde ele cantou no Funchal tem lá uma lápide dele. E porquê Caruso português? Porque substituía o Caruso nos espetáculos quando este estava doente. Isso está na imprensa. Eu editei o disco para a câmara do Funchal. Por acaso consegui, eles gostaram da ideia. Fiz uma edição para a câmara, fiquei com meia dúzia de dis-

dele, o teatro onde gravou, onde cantou. É um textinho em português e inglês, bilingue, com as letras todas, feito por um moço lá na Madeira. Vimo-nos aflitos para traduzir as letras desta história. Teve de ser de orelha, tivemos de ouvir e tentar perceber tudo. Acho que conseguimos. Mas deu-nos muito trabalho. Havia palavras que não se percebiam bem. Porque não tínhamos os textos, tínhamos que ouvir as gravações. Isto seria o primeiro de uma possível coleção que eu viesse a fazer de cantores líricos portugueses, porque há muitos cantores líricos que gravaram, na história. A C: Por falar em Rui Vieira Nery: como é que um editor lida com a crítica aos seus autores e às suas obras como a que Rui Vieira Nery fez a José Alberto Sardinha e ao livro As Origens do Fado?


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J M: É muito simples. Eu considero-me amigo dos dois e eu não escrevi o livro. Podem criticar quem quiserem, deem-se mal, andem aos tiros, que para mim é-me igual, porque eu não tenho nada a ver com isso. É assim: o Rui Vieira Nery praticamente poucas vezes mais falou comigo, ou se calhar nunca mais falou comigo, mas eu isso acho uma parvoíce. Eu até acho que o Sardinha tem razão e até já houve pessoas com nome que vieram dizer que o Sardinha realmente veio trazer aqui luz, porque a teoria do Brasil é uma coisa que não faz sentido nenhum, para mim não faz sentido nenhum.

ali uma troca de palavras azedas e claro que eles nunca mais na vida vão falar um com o outro. Eu acho isso ridículo, porque as pessoas podem defender as suas teses e respeitarem-se. Agora sei lá quem é que tem razão. Eu acho que o Sardinha é que tem razão. Mas se não tiver razão, entendam-se! Eu nessas guerras não tomo partido nem tenho que tomar. Eu sou apenas editor. Porque se o Rui Vieira Nery viesse ter comigo com uma obra sobre fado , não teria problemas nenhuns e editava também. Não sou eu que escrevo. É como eu costumo dizer: este disco é muito mau, cantam muito mal. Mas não sou eu que canto, pediram-me para editar. Enfim, porque se calhar A C: A teoria do Rui Vieira Nery? editei uma ou outra coisa que até nem é grande J M: Do Nery. Que não é teoria nenhuma, por- espingarda mas não ia dizer que não só porque que não há provas. Não há provas nenhumas. não gostava. Ainda que não prestigie muito, mas também não tenho problema nenhum. A C: Foi o orgulho ferido? A C: Quem faz os trabalhos inerentes à edição J M: A culpa foi do Rui, isso aí é verdade. O Sar- de um livro, como o de revisão textual, por exemdinha editou o livro. Faz lá uma crítica à teoria do plo?

“Eu nessas guerras não tomo partido nem tenho que tomar. Eu sou apenas editor.” J M: A revisão, normalmente, tem sido os autores que se preocupam com isso, ou seja, eles tratam os textos e entregam-me o texto final. Eu não meto para aí palha nem estopa. Entregam-me numa pen, ou num CD, ou por mail, em formato word, que é o mais indicado, mas sempre texto final, fotografias. Normalmente, até nos juntamos com a designer para ela fazer o trabalho de acordo com os interesses de cada autor. Às vezes são um bocado chatos, mas pronto, cada um tem as suas manias. Normalmente funciona assim, mas eu coordeno a edição toda e estou satisfeito com a Printer, em Rio de Mouro, que é

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Rui e o Rui vai para o Jornal de Letras denegrir o Sardinha. Porque na mesma altura que saiu o livro do Sardinha saiu um livreco de Daniel Gouveia, mas uma coisinha que nem tem nada de investigação, uma coisinha muito simples, e o Rui para denegrir o Sardinha põe o outro livro como se fosse a enciclopédia do mundo e o Sardinha a pior coisa que apareceu na vida. Tanto que até o outro autor ficou tão incomodado que telefonou ao Sardinha e disse que achava que aquilo não tinha lógica nenhuma. Ele não tem culpa nenhuma, que o outro é que escreveu. Depois o Sardinha respondeu no Jornal de Letras e foi

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onde eu faço praticamente os livros todos e sou um cliente de há muitos anos e tratam-me muito bem. São impecáveis comigo, tenho ótimas relações com eles. Os designers nem sempre são os mesmos, porque o meu designer já não faz os trabalhos para mim, está em Macau, não faz sentido. Quem tem feito as últimas coisas é uma mocinha de Vila Verde , que é muito boa tecnicamente. Não será tao criativa como será o meu amigo Bibito, mas não posso dizer nada. Ela tem boas soluções. O trabalho do Júlio Pereira ficou um trabalho espetacular. Mas é sempre um trabalho muito de equipa, mesmo com os autores. Este disco do Júlio Pereira, por exemplo, foi feito muito partilhado, com reuniões, eu com ele em Lisboa, ele depois chegou a vir a Vila Verde. Normalmente as coisas funcionam assim, do ponto zero.

der, mas eles estão lá. Agora, isto é uma trabalheira doida, porque em algumas livrarias nunca me venderam livro nenhum, mas há quem venda bem. Em Évora vendem muito bem. Pelo menos discos têm vendido bem. Porque eu nalgumas tenho discos, noutras só os livros. Para os discos não tenho distribuição. A C: A publicação que acompanha o CD do Júlio Pereira já tem as páginas numeradas. J M: Mas isto é um trabalho serio, não é uma coisa qualquer. Está aqui a informação toda que se possa imaginar. O design é desta miúda de Vila Verde, a Ana Cláudia Caldelas, uma mocinha porreira, que trabalha bem. A produção é minha. Isto é a viagem do cavaquinho pelo mundo e o faroleiro é o Júlio Pereira.

A C: A Tradisom trabalha com uma distribuidora? J M: Atualmente, e finalmente, há um ano atrás, tenho uma diretora comercial, uma pessoa que trabalha comigo e que é responsável pela colocação dos livros, de todas as edições de livros. Falamos só de livros ainda, discos não. Dos livros eu já tenho distribuição a nível nacional. Aliás, é fácil de ver. A minha página na net está finalmente a funcionar e se formos ver locais de venda encontramos livrarias em todos os distritos de

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Portugal, menos em Bragança. É o único sítio que acho que não temos.

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A C: Com uma distribuição própria. J M: Eu é que mando para as livrarias todas. É a diretora comercial que controla tudo. Eu tenho os meus livros em muitos sítios. Pode não se ven-

António Carinha nasceu em Portugal, no município da Murtosa. Gosta de viajar e de falar de viagens. O teatro, a literatura, a edição e o jornalismo são alguns dos seus interesses. Licenciado em Línguas e Estudos Editoriais pela Universidade de Aveiro, frequenta, na mesma universidade, o mestrado em Estudos Editoriais. Atualmente, vive a maior parte do ano em Londres.




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A presença de animais na literatura Marco Severo

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fins. Eram utilizados na caça, na pesca e como transporte. Representações pictóricas encontradas em cavernas, ainda hoje, deixam isso bastante claro. Animais eram também representações dêiticas, e muitas vezes era a forma como povos antigos encontravam para tipificar seus deuses, fosse através de aves de estupenda beleza, fosse através de animais fortes e portentosos. Passou-se a época da representação de deuses através de associações com animais – ao menos no mundo ocidental, onde essa transliteração de deus ou deuses se dá através da “imagem e semelhança” em relação ao próprio homem, diferentemente de tribos na África, por exemplo, que até hoje se utilizam dessa forma mais primitiva de representação.

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ão se sabe precisar objetivamente quando o ser humano passou a ter uma relação mais próxima com os animais. Estudos dão conta de que uma relação afetiva entre homens e bichos data de quase dez mil anos, quando a visão antropocêntrica de mundo começou a se desfazer. Até então, o homem tinha uma síndrome narcísica, reconhecendo no mundo ao seu redor pastiches de si mesmo, já que havia sido criado “à imagem e semelhança de Deus”. As outras coisas ao redor seriam apenas maneiras da natureza de tentar criar a perfeição, que culminou com o homem. Assim, há mais tempo do que a antropologia é capaz de conceber, animais eram usados como suporte ou meios para se chegar a determinados

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Porém, no campo da figuração, da linguagem comparativa e associativa, aos poucos certas características dos animais passaram a adjetivar o ser humano. Daí a ouvirmos que fulano é “forte feito um touro”, que “canta feito um pássaro”, “bebe como um camelo”, ou que “dorme feito um bicho-preguiça”, dentre tantas outras. Ao longo dos anos, a transição entre o animal que servia apenas como auxílio para animal de estimação foi acontecendo na medida em que as pessoas se deram conta de que o homem não era mais o centro do universo. Fosse pelo simples prazer de ter um animal ao lado, pelo prazer de vê-lo domado, porque era algum sinal de status, glamour ou nobreza, ou porque tinha fins terapêuticos (hoje, por exemplo, alguns hospitais permitem que os bichos de estimação façam visitas aos seus donos hospitalizados, numa versão moderna e pragmática desse fim), animais começaram a ser agregados à vida das pessoas. Assim é que se dá o início de uma relação que tem sido cada vez mais estreitada ao longo dos tempos, a ponto de receber olhares mais severos de pessoas que não veem, em certas relações entre seres humanos e animais, um substitutivo de verdadeiras relações entre pessoas nos dias que correm. Com a evolução da espécie e esse sentimento de que o homem não era o centro de tudo, a fala foi sendo desenvolvida para além dos grunhidos. É certo que a tradição oral é a grande marca da comunicação humana através dos tempos. É através da fala que o ser humano transmite o que pensa e sente; é também através dela que o homem cria e conta histórias, seduz, persuade, passa de uma geração para outra o que lhe vai à cabeça, ou relatos de vida, sentimentos, ideias. E, talvez por conta de tudo isso, tenha

a capacidade de desenvolver-se, de evoluir (e também do seu oposto). Remontemos, por exemplo, ao tempo em que histórias eram criadas para dar exemplo (as chamadas “histórias exemplares”), ou para afastar a criança do perigo. A fábula nasce, então, desse princípio, no Oriente, mas tornou-se um gênero literário, ainda que não sob essa designação, em meados do século V a.C. Por ser, então, algo de cunho oral, muitas dessas histórias chegaram até nós em muitas e diversificadas versões. O grego Esopo, o francês La Fontaine e o dinamarquês Hans Christian Andersen foram, em seu tempo,

e ainda são, ícones na seara das histórias orais transmutadas em fábulas para crianças e jovens – e também para adultos. Várias delas foram modificadas por outras expressões artísticas, como a música e o cinema. Walt Disney fez isso à exaustão. Transformou histórias com finais tristes em algo mais saboroso ao paladar de audiências


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que a rejeitariam se fosse contada como relatada originalmente. Desta forma é que, por exemplo, a Fera se transforma num belo príncipe ao final do longa-metragem, e não permanece o monstro horroroso, porém de alma translucidamente bela pela qual a Bela se apaixonara, como na história original. Há ainda as histórias narradas tanto no Velho como no Antigo testamento da bíblia, que fornecem imagens vívidas de animais que representam atributos humanos variados, incluindo aí a cobra, o porco e o cordeiro. Da mesma forma, culturas de índios utilizam-se de histórias de animais que ajudam a explicar os mistérios da vida, da morte e do universo. Também fizeram isto os povos na Ásia, Índia, América do Sul e África. Na Idade Média europeia, animais descritos na literatura eram situados na estrutura formal do bestiário, na qual diferentes animais

das características menos desejáveis de certos animais para cutucar o ser humano em suas próprias características menos desejáveis em As Viagens de Gulliver, como ao transformar cavalos em animais sábios, que ensinavam os ideais iluministas da razão e da verdade, vertentes em voga à época. Em 1845, Edgar Allan Poe publicou o poema O Corvo, notável pela sua métrica perfeita, musicalidade e pelo autor ter conseguido, num poema, transmitir uma sensação de sobrenatural insofismável, sem precedentes na literatura mundial. Poe tratou, pela primeira vez de forma distinta, do símbolo do corvo associado à ideia de morte: o pássaro pousado sobre o busto de Atena, representando a inexorabilidade da morte e seu impacto sobre o personagem-narrador, arquétipo das tendências literárias do próprio autor, que sofre no âmago a perda de sua amada.

“Na Idade Média europeia, animais descritos na literatura eram situados na estrutura formal do bestiário, na qual diferentes animais eram categorizados de acordo com a característica única a cada um deles e que poderia ensinar uma lição moral ou religiosa. ” Alguns anos depois, em 1851, Herman Melville publica Moby Dick, o romance do “homem em busca de sua baleia branca” como representação da incomensurável luta entre a razão humana e o instinto animal, que também nos habita, fazendo-nos esquecer da razão, que em teoria deveria vir antes do impulso. E o que dizer do genial Lewis Carroll e o seu Alice no país das maravilhas? Publicado

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eram categorizados de acordo com a característica única a cada um deles e que poderia ensinar uma lição moral ou religiosa. No final dos séculos XVII e XVIII – a Era do Iluminismo – alegorias morais deram lugar à sátira, que serviam não tanto para ensinar lições, mas para ridicularizar fraquezas humanas e a corrupção política. Foi um processo natural, portanto, para que em 1726, Jonathan Swift fosse utilizar-se

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originalmente em 1865, a famosa história da inicialmente lânguida e relaxada Alice, que flana com sua irmã por um campo verde, onde pretende render-se ao nada fazer, de repente, ao avistar um coelho branco vestindo um colete, naturalmente intrigada, põe-se a persegui-lo, caindo num buraco que a leva a um universo do mais puro antropormofismo, onde coelhos, ratos, dodôs (pássaro já extinto), lagartas, gatos e outros bichos recebem características amplamente humanas, construindo um panorama a um só tempo satírico e nonsense, seguindo a lógica absurda dos sonhos.

Outro que fez uso dos animais para discutir questões ligadas ao humano foi o escritor de ficção científica H. G. Wells. Em 1896, o autor publicou A ilha do Dr. Moreau, que narra a história de um médico que refugia-se numa ilha para transformar animais em seres humanos, trazendo à tona a discussão a respeito de temas tão contemporâneos quanto religião, ética, evolução e behaviorismo, demonstrando aqui uma trama pautada em temas profundos e atemporais. Em 1905, o japonês Natsume Soseki publicou Eu sou um gato, no qual, de forma


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Em plena segunda guerra mundial, George Orwell publica A revolução dos bichos, um libelo contra a União Soviética. Utilizando-se da figura de animais para retratar as fraquezas humanas e demolir o comunismo proposto pela Rússia na época de Stalin, Orwell criou em A revolução dos bichos uma sátira que narra uma história de corrupção e traição. Talvez um dos livros mais emblemáticos no qual animais são caracterizados de maneira antropomórfica, a narrativa gira em torno da criação de uma sociedade utópica, feita pelos animais após sua revolta contra os humanos, na qual Bola-de-Neve e Napoleão (repare na simbologia dos nomes), no fim das contas, acabam criando uma ditadura tão corrupta e cruel quanto aquelas criadas pelos seres humanos, denotando, desta forma, a perversidade e o mau-caratismo do bicho-homem, qualquer que seja a sua vertente. Os romances gráficos (graphic novels) também tiveram seus representantes nesta importância da narrativa entremeada por animais. Maus, livro do norte-americano Art Spiegelman, publicado em 1991, narra a relação do próprio autor com seu pai, que lutou para sobreviver ao Holocausto, e as consequências dele nas subsequentes gerações de sua família. Aqui, diferentes grupos étnicos são apresentados através de diferentes animais. Judeus são ratos; alemães, gatos; norteamericanos, cães; franceses, sapos; ciganos, traças; ingleses, peixes. A utilização de animais nessa representação foi, igualmente, um insight irônico em relação às propagandas nazistas, que mostravam judeus como ratos e poloneses como porcos. Os animais, aqui, contam uma história que se propõe antissemita, e a simbologia de suas representações é o fio que permeia e conduz a narrativa.

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satírica e irônica, pretende criticar a ênfase que se dava então ao quase promíscuo amálgama entre oriente e ocidente, numa época em que não estava bem claro o quão bom ou ruim isso seria para a sociedade japonesa. Soseki criou então um gato doméstico que se utiliza de uma linguagem grandiloquente, dando a si mesmo grande importância, para ironizar essa transformação de valores da época. Caminhamos mais um pouco no tempo e chegamos em A metamorfose, de Franz Kafka, no qual um homem subitamente se vê transformado num grande e pavoroso inseto e como, a partir deste momento extraordinário, o personagem adentra numa espiral transformadora que não é outra coisa se não nós mesmos. Seguindo uma vertente um pouco mais simplória, apesar de vir de Virginia Woolf, Flush: uma biografia (1933), foi uma forma de a autora expurgar de si mesma o emocionalmente desgastante As ondas, que ela havia acabado de concluir. Virginia tinha por hábito de, entre um livro que considerava mais abrasivo e o seguinte, escrever textos curtos que não tinham como objetivo algo mais grandioso. Assim, Flush: uma biografia nada mais é do que um pequeno livro que se pretende servir como rito de passagem. Ao narrar a vida do cocker spaniel, Virginia buscou – embora fazendo uso do seu conhecido fluxo de consciência – narrar o que seria uma vida através de olhos não-humanos. Era, naturalmente, uma forma de não enlouquecer, já que a autora era dada a frequentes crises nervosas. Escrever para Virginia era uma maneira de sobreviver, e escrever algo mais simples, quase que por diletantismo, era uma forma de energizar-se para a obra seguinte.

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romance, subitamente se vê às voltas com um cachorro, que chega inesperadamente em sua casa e ao qual dá o nome de “Achado”. O cão passa a ser um grande companheiro, muitas vezes definindo acontecimentos de determinadas passagens. Este não é, entretanto, o único momento em que Saramago usa de cães em sua obra. Já em Ensaio sobre a cegueira, um cachorro bebe as lágrimas de uma mulher, numa das cenas mais profundamente humanas do livro. Em outros romances, como O homem duplicado e A jangada de pedra, o autor também se vale de cães para designar diversas atitudes em suas histórias, sempre as remetendo ao principal traço Seis anos depois, em 1997, a literatura do bicho: a lealdade em sua forma mais atávica. Outro Nobel que resolveu escrever sobre inglesa inverte os parâmetros: e se nós fôssemos os macacos? Em Grandes símios, Will Self reverte os animais, porém fora do âmbito da ficção –

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“Ao longo da História da literatura, o ser humano utiliza-se de animais para fazer referências às mais díspares características, interesses e motivações.”

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a visão de que os humanos dominam seu planeta e sua lógica, ao dar vida a um personagem que, após uma noite de uso de substâncias ilícitas, acorda para um mundo onde os chimpanzés evoluíram a ponto de serem a raça dominante do mundo, enquanto os humanos são os equivalente aos símios no mundo atual. A subversão do atual sistema propõe a reflexão sobre aquilo que nos torna quem somos dentro da dicotomia que separa o real do absurdo. Em 2000, Saramago publica seu primeiro livro após receber o prêmio Nobel: A Caverna. Nele, o oleiro Cipriano Algor, protagonista do

embora não completamente – foi J. M. Coetzee, que publicou um livro intitulado A vida dos animais. Digo “não completamente” porque, embora se trate de uma reunião de ensaios, o texto que dá título ao volume é uma novela, portanto, um projeto de ficção, que se une aos demais ensaios de modo a formar uma espécie de manifesto em prol dos direitos dos animais. A fronteira entre a ficção e a não-ficção é cruzada neste livro curto, que busca justamente retratar, de forma real, a ficção como parte inerente ao nosso cotidiano e, no tocante aos animais, trazer para mais perto do leitor a reflexão de que, na


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busca seja sempre busca: porque buscar, e não encontrar, é o destino de todos. Da mesma forma, em As horas nuas, de Lygia Fagundes Telles, o gato Rahul traz a medida do fantástico para dentro do romance, cuja trama revolve em torno de uma atriz que não lida bem com o avanço do tempo. Rahul, que tem ciência de suas encarnações passadas, e em dado momento é também narrador em primeira pessoa, tornando claro o seu significado na obra: a mutação dos seres através do tempo, as dificuldades em lidar com isso e a atemporalidade da vida, apesar da nossa mais abjeta finitude. Naturalmente, há ainda o poema O bicho, de Manuel Bandeira (“... o bicho, meu Deus, era um homem”), o sabiá da Canção do Exílio, de Gonçalves Dias e as canções da Arca de Noé de Vinicius de Moraes, além, claro, das inúmeras histórias criadas por Monteiro Lobato, em que crianças e adultos se refestelam num mundo onde animais interagindo com nossa humanidade abundam. Mas talvez não haja maior e mais significativo personagem na literatura brasileira do que a cadela Baleia do romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Ao acompanharmos a história do pai de família Fabiano e de sua cadela, Baleia, o personagem mais humano do romance, que traz em seu próprio nome a sina da contradição marcada pela ausência d’água. Baleia era raquítica, como o são a fome, a pobreza, a dor, a necessidade. Ao longo da História da literatura, o ser humano utiliza-se de animais para fazer referências às mais díspares características, interesses e motivações. Para além das metáforas e símbolos, vários escritores, como William

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literatura, os extremos se tocam, e a importância dos animais não se restringe apenas a fazer deles símbolos, em uma desconstrução do bicho para uma imagem do bicho ele mesmo, como ser inerente ao nosso meio e convívio. A literatura brasileira, naturalmente, tem seus valiosos representantes nessa seara. Trazendo novamente o cão como símbolo da lealdade e do companheirismo, José de Alencar publica, em 1865, Iracema, em que a figura do cão Japi, sempre ao lado de Poti, revela o papel simbólico do animal no romance. Machado de Assis, que tanto fez uso de animais na sua escrita, construiu em seu Quincas Borba, de 1892, um cachorro que tem, na figura de seu dono de igual nome, uma paródia ao cientificismo e ao evolucionismo correntes à época, bem como à lei do mais forte e ao positivismo de Comte. Aqui também está posta uma nuance da seleção natural de Charles Darwin. Através do destino dos personagens a partir da figura do cão, vê-se a transformação do homem em objeto do homem, no destrutivo processo de “coisificação” do homem pela sua própria soberba e ganância. Em anos seguintes, ainda vimos o nascer de romances como A paixão segundo G. H., de Clarice Lispector, em que uma mulher, ao demitir a empregada e resolver limpar seu quarto, esmaga uma barata no guarda-roupa e resolve provar do de-dentro, da secreção expelida por ela. Através de um longo monólogo, a narradora nos faz sentir a sua perda de identidade, a busca por sentido, a abnegada entrega ao seu eu mais íntimo. A barata aqui, que talvez remeta a Kafka, também metamorfoseia a personagem, ainda que sua

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elevando os animais a um novo patamar nos mundos natural e humano, e a industrialização avançando a passos largos, explorando tanto homens quanto animais, a preocupação com o bem-estar dos bichos tornou-se uma grande questão social. Daí para a literatura, foi um passo natural, com relatos de abusos de animais, retratados como vítimas da ganância, ignorância e industrialização brutal do ser humano. E tem sido deste modo desde então. Os exemplos poderiam estender-se infinitamente, inclusive porque, sem dúvida, enquanto você lê essas palavras, há alguém escrevendo alguma história em que um animal ou vários exercem algum tipo de função determinante. Afinal, é notório que à medida que o homem passou a enxergar-se nos bichos, transfigurálos para suas obras não é apenas um processo esperado, é também uma forma de analisar-se e, quiçá, compreender-se em meio ao escuro abissal Burroughs e Ernest Hemingway, sempre que é lidar com a própria natureza, a essência de demonstraram em público seu amor por animais. que somos feitos. Antes e além de tudo isso, Charles Darwin trouxe, com A origem das espécies, a noção de que os seres humanos não foram criados separadamente dos animais para liderar e dominar, mas que na verdade desenvolveram-se a partir deles, sendo assim um mero elo numa cadeia que remonta a milhões de anos. Mais de cem anos depois, a teoria de Darwin continua a gerar debate entre evolucionistas e criacionistas. Entretanto, nos anos que se seguiram imediatamente a sua publicação, o livro jogou Marco Severo é professor e tradutor. o mundo ocidental no meio de uma tormenta, Atualmente está finalizando seu primeiro livro de crônicas, a ser publiquando muitos começaram a questionar suas cado em 2015 pela editora Substânsia crenças metafísicas e ontológicas. Com a ciência



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Dois estudos antropogeográficos

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I Cartografia do Teu Sabor (lembranças para possível videodança)

aberto, três quartos em médio e uma solta para detalhes, camada por camada, pele por pele, deliciosamente slow, penumbra sensual.

era quase meia noite no relógio do laptop dela, se eu sair imediatamente e correr, talvez ainda pegue o último trem, mas existe certa tensão boa no ar, foda-se o relógio, o metrô e o resto do universo fora deste apartamento. corpos em P&B, frio: camadas de peles, aquela luz azulada da tevê sei lá porque constantemente ligada e quase sem som na cultura, jornais, filmes & entrevistas meio sem por quê? luz azulada que não s’encontrava com a luz amarelada da cozinha — meio bagunçadinha, né? (quase) tive vontade de arrumá-la, não estava frio como hoje, a noite mais fria do ano, mas a (quase) vontade passou. é diferente, nem as palavras apareceram ainda, talvez precisem de menos espaço & mais tempo. mesmo assim atrito esquenta, é bom no frio, deixa ofegante, afaga a alma, eu me sentia numa dança, sabia? sério, uma coisa bem minimalista & sutil, tipo feldenkrais, lento e sem esforço, saca? três câmeras: geral

(estas palavras ficaram péssimas, desculpe(m), tentarei novamente, tá?) II Da testa, do nariz às pernas, da primeira vez que te vi, tua topografia me interessou um mapeamento dos desejos, das emoções sensoriais relacionadas ao momento das suas realizações, seus antes seus depois. um conjunto de intrincadas representações sentimentais, a complexidade de suas sintaxes incompletas & reflexivas. conversa composta de pequenos silêncios invisíveis, subtexto dúbio, depoimentos difusos na penumbra, os pseudo-halos dos postes de rua e dos prédios pela janela pela sacada por todo o ar da tua sala, aquele tom azulado da tevê constantemente ligada na cultura, filme jornal seilá, microruídos, murmúrios da mídia medieval enquanto o vinho alterava minha percepção da luz que transmutava teu lindo rosto em tantos outros,


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todos belos e não mais que de repente você voltava a alguns assuntos do universo afetivo-relacional humano, experiências & constatações que me levavam a pensar que você também estava a fim, mas talvez fosse só impressão minha, nunca tenho certeza de (quase) nada nessas horas —a gente nunca realmente tem certeza de nada, né? o tempo ia passando, o vinho esboçava um sono fugidio o ar se tornava mais denso a fina película elétrica presente no espaço começava a se intensificar tornando o ar ao nosso redor mais rarefeito a cada instante palavra ou olhar e nós ali, assistindo uma incrível videodança que depois descobri ser uma animação do mclaren, cada vez mais próximos eu em pé você sentada lado a lado olhando a tela e de tão tangível o ar entre nós era quase como se nossas peles já estivessem se tocando e os minutos voavam enquanto em silêncio eu inutilmente esboçava para dizer algo até que perguntei o que você achava de nós dois, a princípio você riu, s’esquivou e eu fiquei ainda mais confuso, então perguntei alguma coisa que agora não me lembro e você respondeu algo que eu, não sem certa dúvida, interpretei como um índice de interesse, mas aí eu já estava massageando suas escápulas, iniciando o estudo topográfico sensorial do teu corpo carregados de casacos.

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ma parte do teu infinito todo. difícil descrever em palavras as sensações sentidas naquelas poucas centenas de segundos quando meu corpo parecia saber instintivamente como se mover deslizando em conjuntura com o teu e tinhas tuas mãos que vez guiava vezoutra censurava eu sentia teu riso e por dentro eu também ria e ronronava mordia lambia & explorava cada um dos poucos centímetros acessíveis do seu mapa carnal naquela gelada noite de julho (não tanto quanto esta outra noite de julho). você também disse algo sobre homens mimados e nosso erro em considerar o sexo somente uma coisa quando na verdade ele é todas — gata, eu concordo, pode ser um & ser tudo, mas na hora não dei muita bola e continuei a tentar mapear teus traços perdidos entre tantas camadas de roupa enquanto meu corpo insistia em dançar com o teu fora do meu controle, metade da mente sentindo metade visualizando aquilo tudo de fora, em closes & planos fechados, talvez P&B gravado em fundo preto (sim, ando meio clichê), algumas macros & uns slows — presenciei isso rapidamente com olhos holísticos enquanto meu corpo se movia por puro feeling como se conduzido pela sinfonia silenciosamente ofegante da tua respiração e tem aquela coisa de que acariciar uma nuca feminina é como acariciar um felino e essas duas coisas — mulheres & feliprovavelmente foi o contexto todo, não só da noi- nos — são coisas que gosto muito, tanto quanto te como da motivação dos nossos personagens e tapiocas com guacamole & deusas gregas. seus momentos pessoais, “não existe relação sexual” comenta você citando lacan. tal aforismo me despertou reflexões posteriores, talvez vocês estejam certos e não exista mesmo, ao menos não enquanto relação, apenas como encontro — não há fusão, mas sim troca, mas quando eu toquei seu corpo, até mesmo instantes antes da pele dos meus dedos tocarem sua pele sem o filtro dos tecidos, eu me senti dançando de olhos abertos ou bagadefente é ar tista multimídia e cria obras fechados eu estava dançando sentindo a rigidez utilizando o Acaso como sua principal ferramenmacia dos teus braços lisos eu conhecia compre- ta criativa. seus trabalhos podem ser conhecidos endia novos pequenos pedaços da tua alma, ínfi- no site www.nada.ar t.br.

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conto

Por que garganta gritas Ana Raquel Silva οὕτως ἔμοιγε τοῦδε τοῦ μόρου τυχεῖν παρ᾽ οὐδὲν ἄλγος (Sófocles, Antígona, vv.465-466)

I

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Quando tudo o que tocas é o seco firmamento da tua boca, vazio atolado dos beijos de Verão, e aí sentes o tatear do sangue, maré cheia na língua, por que garganta gritas? Empresta-me o teu corpo. Não perdemos nada, não percamos tempo: calamidade por calamidade, mais me vale gritar através da tua boca, uma última vez. Dizme, como faremos? Se eu gritar, para o fundo da tua boca, que te amo, achas que os teus dentes vão permitir passagem ao triste som? Desespero. Substantivo ou verbo.

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Chegas, por fim, quando te chamei por pensar no teu nome, amor-teletransporte. Vem, eu levo-te a Lilliput. Tu dizes, esperança esbatida no rosto. Eu digo, gozando-te. Tencionas juntar todas as pessoas que lá encontrares e fazêlas gritar por mim? Não me salvarão. Rimos.

“Comodistas”, alguém grita do lado de fora da janela do quarto de arrumos. II O quarto de arrumos. Tem livros. Mantas. Almofadas. Álbuns de fotografias que não tirei de passeios soturnos nos anéis de Saturno que rodeiam o teu sono. Dizem que, aqui, se eu gritar este medo, as paredes absorverão o grito e mantêlo-ão (res)guardado. Dizem ainda que talvez até o projetem de volta para o meu corpo para que o possa expelir noutra altura. Sim, o mesmo. Cala-te. Dizes, ao fim de um tempo em silêncio. Deliras já. Grito. Grita-me. Usamos opulentos disfarces venezianos – comprados nos sonhos das viagens a 20 € o bilhete pela easyJet – porque temos nos olhos sulcos gritantes de esterilidade. Porque na


conto garganta temos golianas barragens de observável impotência. E no interior das barragens? Uma qualquer cobertura, meu amor, um qualquer lenço a ocultar tudo aquilo que escondemos voluntariamente até certo momento em que queremos não mais esconder e não nos deixam. A culpa é dos preciosismos. III Já te disse que sei Latim? É curioso que a palavra casus (sim, da 4ª declinação) signifique queda no seu sentido mais primário, do verbo cair (cado) [1], mas também uma queda moral, uma falha [2] ou ainda essas ocorrências fortuitas do quotidiano [3]. Ah, e também os casos gramaticais nos quais se flexionam as palavras [4] são casus. Não achas bonito? Quanto tudo o que vês é, vãmente, te caírem do palato os fonemas, te caírem na estrada recurvada da língua porções de memória putrefacta, te caírem calamidades gotejando do véu palatino, te caírem declinações na ponta da língua, por que garganta gritas? Não achas bonito? Preciso de falar. Preciso tanto de falar. Passei uma vida silenciada. Até tu apareces sem que diga o teu nome à voix haute. Nem tu exististe, acusticamente, para mim. Ajuda: quando sabes que as Parcas saltam à corda com o fio dos teus fata, por que garganta gritas?

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Ana Raquel Silva 20 anos. Nasce a 14 de agosto de 1993 em Vila do Conde (Por to, PORTUGAL), cidade onde ainda reside. Frequentou a Escola Secundária José Régio, à qual deve o seu gosto pela área das Ciências Sociais e Humanas. Atualmente é estudante de Línguas, Literaturas e Culturas (Por tuguês e Línguas Clássicas) na Faculdade de Letras da Universidade do Por to. Apaixonada por literatura e por todo o cosmos das palavras em qualquer língua expressas, encontrou, já no Ensino Superior, uma paixão pela Língua Latina e sonha, desde então, vir a lecioná-la. O interesse pela escrita surgiu cedo, porém, foi a par tir do sétimo ano de escolaridade que começou a dedicar-se mais seriamente a essa atividade. Par ticipa frequentemente em atividade culturais e literárias e tem algumas publicações locais.

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poesia

Rituais Cristiana Cangussú

Arar o terreno E me perder nas entranhas, Nas vicissitudes dos sulcos mentais. Estou pronta! Mas antes... Salvarei o mundo E condenarei-me ao eterno retorno. Queimando os tiros de largada E etapas da progressão. Respiro e existo Em nome de instantes claudicantes. Não passo Daquele velho conhecido E inclassificável bolo no peito.

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poesia

O amarelo-tempo das folhas Cristiana Cangussú Vou eu, Falar sobre a falha Falhar sob a falha. Sou eu, Insuficiência sem precedentes. Jazo nos nomes Que morrem na praia. Não mais, Inefável se.

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São meus Carinhosos rascunhos, Ranhura de ideias, Inscrições na íris.

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Somente meus Eternos suspiros. *


poesia

Verdade Mateus Henrique Não há nada sobre mim Que eu não desconheça. A palma da minha mão É o mapa das terras distantes. Eu sou a língua morta Da tribo viva. Eu sou o curupira Do mêi do mato. Eu sou o fumo forte No pulmão fraco. O tiro certeiro No peito errado. Não há nada sobre mim Que eu não desconheça. A estrutura da minha casa Forma um labirinto.

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Eu sou o susto, O grito, O inesperado, Colecionando crenças E rejeitando a fé. Não há nada sobre mim Que eu não desconheça.

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poesia

As pessoas que não entendem de sexo Bruno Latorre as pessoas que não entendem de sexo e suas categorias: trepar fuder meter fazer amor é que são vadias as pessoas que não entendem de sexo e suas peculiaridades e seus múltiplos lugares é que são vulgares

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as pessoas que não entendem de sexo que não é de 50 tons de cinza mas das prosas e das poesias de Hilda é que são vazias

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as pessoas que não entendem de sexo que não é só papai-mamãe mas também papai-mamãe-vizinhas um chefe e dois garotos, talvez aquela sua tia é que são mesquinhas


poesia

as pessoas que não entendem de sexo não veem que o nexo do eixo entre o céu e a terra é este seio de palavras para chupar que deixo pois a poesia que não fode e não goza não rima toda palavra que pode já a poesia que fode num gozo profundo que não é só vida - espermatozoide encontra sentido neste mundo inver tido

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poesia

Bruno Latorre

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quero um poema vulgar sem ser sexy um poema de mau gosto avesso ao cânone um poema de todos e de ninguém um poema sem metafísica sem transcendência um poema que não aspire à lua e sim à picas e xotas um poema sem seriedade que brinque apenas sem rima sem métrica sem ritmo sem teoria um poema que não queira ser poema um poema que não fale verdade e não invente mentiras um poema que tire a roupa me beija na boca me ama no chão

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poesia

Homofobia Sebastião Ribeiro I’ve lost the will to fight I was not made for life Age of Adz, Sufjan Stevens

i. Fato que o tempo está cozido na carne da mãe vazia e do filho que foge ele brinca entre hérnia e cólica pesado a quem apenas vive ii. Sobre a coragem existiu um poema enterrado

comendo moscas e formigas

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tropeça no desespero

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poesia

iii. Ando e resumo o passo já absorto na ideia: quando me montaram haveria quem previsse do meu mundo a queda? iv. Incerto se o sonho é a ladeira que escalo ou o beco que me sobra após o coma em ambos havia piche nas asas agora ossos v. Uma vez no mundo busco ou persigo? Estar aqui é dissolver na lama que se evita no vapor do escarro? vi. Do muro de barro

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caído me fiz apenas

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vidro não mais vista de sal da baía não mais festim de beijo


poesia

fui da queda a fuga do sonido vii. Para outrem sou o outo do outro se mantém o túmulo do reflexo não se exuma o dente do igual não se expia a tripa viii. O menino que se fura que anda e se corta que se deita e desloca que levanta e se atira que descende e se quebra ignora o fim da esper/

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poesia

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Constança Lucas

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poesia

Constança Lucas

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poesia

baixo gávea

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Alice Sant’Anna

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você está mais magra a qualquer momento o cordão vai arrebentar de tão velho se alguém puxasse mesmo que de leve já era mas ela sempre foi magra ficamos marcados para sábado ninguém me chamou? não é isso daquela vez também ninguém me convidou para o café não li a segunda parte, mas a primeira me fez mal fisicamente falando não posso andar com vocês não tenho pós-graduação pra citar deleuze, falar em epistemologia etc. mas vocês já se separaram? a menina vem pra cá nesse fim de semana no fundo não estou assim tão a fim você está com uma cara parece que alguém que você queria que viesse não veio apareceu tanta gente e é sempre assim


poesia

a gente só lembra de quem não veio você que está sumida não te vejo faz quantos meses essa viagem não te fez bem, está magra demais e por que não deu certo? achei que fosse durar, todo mundo achou então marcamos sábado ou domingo não lembro trabalho perto de você, vamos combinar a gente sempre aprende alguma coisa qualquer coisa no carnaval duzentas mil pessoas no aterro ela disse que queria ficar só comigo eu e ela e eu falei que aquilo não tinha como em pleno carnaval aquela gente toda bateu uma saudade não bolei nenhum plano b mas fica bem, você está bem? vou comemorar amanhã com a minha mãe talvez alguma coisa na minha casa você tem que conhecer minha casa minha casa já está com cara de casa

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registro

variedadesliterárias

*todas as imagens foram gentilmente cedidas pela Variável 5

De 16 a 22 de junho de 2014, no Galpão Cine Hor to, Belo Horizonte fomentou e sediou a primeira edição do Variedades Literárias, projeto aprovado e apoiado pelo Concurso Cultura 2014, do Ministério da Cultura, para a promoção da Literatura em suas diversas facetas. Com atividades gratuitas, o público se dividiu entre o ateliê de dramaturgia, os debates acerca das publicações independentes e o uso do supor te digital, as leituras comentadas do Janela da Dramaturgia e a feira de livros com as editoras independentes. Na ocasião, ainda se deu o lançamento da 10ª edição da “Revista Subtexto” do CPMT – Centro de Pesquisa e Memória do Teatro do Galpão Cine Hor to. O evento, produzido pela equipe da Variável 5, contou com o apoio da Polvilho Edições. Vamos, agora, ver um pouquinho do que rolou por lá.

Editoras participantes: Impressoes de Minas João Pedro e Vanessa Bubgniak Junia Carvalho Júnia Pereira Livrinho de Papel Finíssimo Editora Lote 42 (SP) Lucas Carvalho Meli Melo (SP) Mês Mila Barone + Oi Kabum Mineiriana

Miolo Passapor te Pipoca Press (RJ) Piseagrama Polvilho Edições Publicações Iara quar toamado Relicário Scriptum Vinicius Magalhães

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4e25 A Bolha Editora A Zica Agustín Arosteguy Anna Bolenna Chão da Feira Cozinha CPMT Elis Starling Forca Helena Soares

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registro

ESCUTA!

ATELIÊ DE

DRAMATURGIA

E

SOM

Voltado para dramaturgos e ar tistas em geral interessados em investigar a escrita para teatro, o ateliê ESCUTA! par te do registro de som e fala dos ambientes cotidianos, com a intenção de pescar realidades e desestabilizá-las. Coordenado por Assis Benevenuto e Vinicius Souza, o trabalho é inspirado no processo criativa da cineasta argentina Lucrecia Mar tel, que faz uso de registros de conversas para desenvolver seus roteiros e filmes. Para ela, o som é componente fundamental para se obter uma percepção visual. Registros sonoros dos exercícios: http://soundcloud.com/ateliededramaturgiabh

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A ssis B enevenuto é integrante do

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grupo Quatroloscinco Teatro do Comum, em que atua como ator, dramaturgo e diretor nos espetáculos “Humor” (2014), “Get Out!” (2013), “Outro Lado” (2011), “É só uma formalidade” (2009). É coordenador do Ateliê de Dramaturgia, em parceria com Vinícius Souza. Autor do livro de poesia “Rútilo!Rútilo!Rútilo! Me fura e fecha”, publicado em 2009; do livro “Get Out!”, dramaturgia, em 2013, e Para-me [Gritocão], poesia, em 2014, edições do autor.

V inícius S ouza é dramaturgo, ator, diretor, pesquisador e produtor teatral. É licenciado em Teatro pela Escola de Belas Artes da UFMG e formado como ator pelo Cefar/Palácio das Artes. É idealizador e coordenador, junto com Sara Pinheiro, do Janela de Dramaturgia; coordenador do Ateliê de Dramaturgia de Belo Horizonte, junto com Assis Benevenuto. Seus últimos textos foram O leão no aquário, lido no I Janela de Dramaturgia; Ensaio de mentira, escrito junto com Assis Benevenuto, sob direção de Chico Pelúcio e Lydia Del Picchia.


registro

JANELA

DE DRAMATURGIA Em seu terceiro ano, a Janela de Dramaturgia é uma mostra da produção contemporânea para teatro em Belo Horizonte. Idealizado por Vinicius Souza e Sara Pinheiro, o projeto promove leituras mensais de textos inéditos de jovens autores. Dentro do Variedades Literárias, presenciou-se uma retrospectiva de alguns textos apresentados nas duas primeiras edições. Atualmente, em seu terceiro ano, a Janela se encaminha para a reta final com a leitura dos textos “RISCO”, de Luísa Bahia, e “A MENINA DE LÁ”, de Raysner de Paula, no dia 02 de setembro, no Teatro Espanca. Mais informações: http://janeladedramaturgia.wordpress.com/

Textos da retrospectiva: Marina Viana – Silvia e os Outsiders Guilherme Lessa – Embriões de Aniquilamento do Sujeito João Filho – A Carne Sua Raysner de Paula – João e Maria Rafael Fares – Miração Vinícius Souza – O Leão no Aquário Wester de Castro – Fôdo Sara Pinheiro – Conto Anônimo S ar a P inheiro é atriz e drama-

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turga. Graduada em Letras pela UFMG e como atriz pelo Cefar – Palácio das Ar tes. Idealizadora e coordenadora do Janela de Dramaturgia, junto com Vinícius Souza. Co-fundadora e integrante da Cia do Chá, em que foi autora e atriz dos espetáculos A Mudança (2010) e S/Título, óleo sobre tela (2013). Realizou estudos com Philippe Gaulier, na França, e trabalha com o grupo mineiro Pigmalião – Escultura que mexe.

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registro

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MESAS DE CONVERSAS

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MESA 1 – Um livro pra chamar de meu – um bate-papo sobre publicações independentes

MESA 2 – Entre zines, livros e e-books – um bate-papo sobre suportes literários e o meio digital

Convidados: Caio Otta (Polvilho Edições) Cecilia Arbolave (Lote 42) Luis Felipe Garrocho (Quadrinhos Rasos) Rogério Barbosa Silva (Livraria e editora Scriptum)

Convidados: Anne Morais (Literar) João Perdigão (A Zica) Sabrina Abreu (Jornalista e escritora) Felipe Carnevalli De Brot (Piseagrama) Vitor Roscoe Papini Lagoeiro (Piseagrama)

Mediador: João Santos (Variável 5)

Mediador: João Santos (Variável 5)


entrevista

ENTREVISTA

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Vocês (João Varella e Thiago Blumenthal) são Como surgiu a ideia da Lote42? formados em jornalismo. É fácil conciliar as carreiras de repórter e editor? Thiago – Surgiu da necessidade de ter uma editora que soubesse usar os autores da nova geraThiago – Atuei pouco como repór ter na reda- ção, presentes predominantemente em trabalhos ção mesmo, sempre fiquei mais com a edição. E na internet (blogs, tumblrs). Ninguém fazia isso. minha formação é em Letras, com experiência Em dezembro nos juntamos e achamos que era o em editoras e livros (editor, tradutor, revisor, pre- momento de investir nisso. parador etc.), isso ajudou bastante. O mercado editorial anda aquecido, princiJoão – Nem um pouco. É preciso cuidar bem dos palmente quanto à criação de novas editohorários e tentar otimizar ao máximo tudo o que ras. Qual o diferencial da Lote42? você faz durante o dia. Parece que estou há anos sempre com uma sensação de esgotamento. Fel- João – Acho que o Thiago matou a charada na izmente, o sacrifício vale a pena. Ver os livros na- pergunta acima. Só pondero que às vezes essa scendo é uma emoção inenarrável. coisa de diferencial pode fazer parecer que es-

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entrevista

tamos em guerra com as outras editoras. Não lançar poucos livros. Dá para fazer cada um deles é isso. É como dizem os jogadores de futebol muito bem feito. quando chegam num time novo: Estamos aqui para somar. Quais as maiores dificuldades que a Lote42 tem encontrado? A linha editorial da Lote42 se preocupa com a reflexão. E em que a postura da editora Thiago – Dificuldades de qualquer editora que tem que se preocupar, principalmente, quan- acaba de começar e que é pequena: logísticas to a demarcar o seu papel político e social? das mais variadas, isso sem contar a busca pelo Há uma necessidade de deixar isso evidente espaço nas livrarias. Mas tudo tem acontecido de nos livros para os leitores? modo bem sucedido.

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Thiago – Sim, especialmente em tempos de pen- João – A luta diária é evitar repassar o custo insar as novas mídias sem desconsiderar o livro im- sano da logística brasileira ao leitor. presso. Como usar ainda o livro dentro de um ambiente editorial cada vez mais online. Qual a influência da leitura na vida de vocês? Ela salva? João – É impor tante pensar em livros que contribuam algo para a vida das pessoas, mas não Thiago – Não necessariamente salva, mas ajuda acho que tenha de ser evidente. Quando você a entender tudo o que a gente vive. É das leituras já põe uma placa de “livro sério para pensar”, o que a gente aprende algumas coisas que não são povo não lê. O desafio é provocar e seduzir na ditas no cotidiano. mesma medida. João – Sim, salva. Levando em consideração o que está escrito no site da Lote42 – “Nossos livros sempre Pra findar nossa breve entrevista: um livro e vão além do papel” –, vocês acreditam que é um autor preferido? viável haver uma existência pacífica do livro digital e do livro impresso? João – Que pergunta sacana... Se é para citar só um livro, citaria o Memorial de Maria Moura, Thiago – Sem dúvida. Nossos primeiros livros da Rachel de Queiroz. Foi minha primeira leituprovam isso. São de autores que circulavam ex- ra “séria” fora das obrigações escolares. Autor clusivamente no online, no eletrônico. E tiveram você vai ter que me desculpar, mas não dá para ampla aceitação dentro de quem gosta de ler um responder. Estou sofrendo demais aqui tendo de livro impresso, folheando as páginas. escolher um só.

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Em menos de um ano, a editora lança o seu Thiago – Em Busca do Tempo Perdido, do Marcel terceiro livro, Manual de Sobrevivência dos Proust. Tímidos, do Bruno Maron. Qual tem sido a resposta do público em relação aos lança- Acesse: w w w.lote42.com.br mentos da editora? João – Maravilhosa. Temos notado um índice de recompra muito bom. Os comentários são sempre positivos em sua maioria. É a vantagem de se


ensaio

O amor comeu na estante de todos os meus livros de poesia Conjunto de notas sobre o amor entre cinco cafés

Patrícia Lino

HEFESTO Que quereis, ó homens, ter um do outro? Porventura é isso que desejais, ficar no mesmo lugar o mais possível um para o outro, de modo que nem de noite nem de dia vos separem? Pois se é isso que desejais, quero fundir-vos e forjar-vos numa mesma pessoa, de modo que de dois vos torneis um só e, enquanto viverdes como uma só pessoa, possais viver ambos em comum, e depois que morrerdes, lá no Hades, em vez de dois serem um só, mor tos os dois numa mor te comum; mas vede se é esse o vosso amor, e se vos contentais se conseguirdes isso. MÁRIO CESARINY qualquer coisa assim como um tempo sem fim como um espaço sem tempo O OUTRO um ou outro comêssemos pouco meu amor meu amor meu amor

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ARISTÓFANES Sabíamos que nem um só diria que não ou demonstraria querer outra coisa, mas simplesmente pensaria ter ouvido o que há muito estava desejando: unir-se e confundir-se com o amado e de dois ficarem um só. A sua causa é que a nossa antiga natureza era assim e nós éramos um todo. É, portanto, ao desejo e à procura do todo que se dá o nome de amor.

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ensaio What happens between us has happened for centuries we know it from literature

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Adrienne Rich

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I. 2500 anos em menos de 4 cafés: Homero. Entre a Ilíada e a Odisseia, centro-me na Ilíada. Sabemos que, em termos gerais, a pergunta que persegue o título de um clássico mede quase sempre cinco palavras: – Então, qual é a história? E a resposta que assombra a Ilíada pode medir quase sempre, com alguma tristeza, o mesmo número: – A da guerra de Tróia. É certo que a ação da Ilíada acontece durante a guerra de Tróia, mas, tanto quanto se sabe, a guerra de Tróia durou dez anos e a Ilíada dura apenas cinquenta dias. Cinquenta dias são pouquíssima coisa em aproximadamente três mil seiscentos e cinquenta dias. Tendo em conta, porém, que se perderam todas as fontes antigas que narravam episódios da guerra de Tróia e que poderiam perfeitamente encaixar-se na resposta que pressegue o primeiro livro de Homero, já não é sequer arriscado, criticamente falando, olhar os cinquenta dias da Ilíada como os mais marcantes da guerra entre aqueus e troianos. A resposta àquela pergunta enfática – Então, qual é a história? – deverá, pois, medir não cinco mas apenas quatro palavras: – O amuo de Aquiles. A Ilíada narra o amuo de Aquiles. A estrutura da Ilíada antecede a estrutura comum da tragédia clássica: desentendimento entre Aquiles e Agamémnon. Abandono do campo de batalha por parte de Aquiles. Tentativa de aproximação por parte de Agamémnon. Recusa de Aquiles. Morte de Pátroclo. Regresso de Aquiles ao campo de batalha. Morte de Heitor. A reviravolta mede quanto meça a raiva de Aquiles e nela reside aquilo que realmente

importa perguntar: por que razão regressa? A resposta é curta, evidente e para mim mais do que clara: Aquiles regressa ao combate para vingar a morte do amante. Reformulo, Aquiles regressa ao combate por amor a Pátroclo . * O calcanhar de Aquiles era Pátroclo. Anota isto: matar Heitor não trouxe Pátroclo de volta. Só a palavra atenuou a ira de Aquiles e quem lha dirigiu foi Príamo, pai de Heitor. * Haverá quem não concorde comigo ou com quem eu não concordasse findada a primeira leitura da Ilíada. E, vamos lá, praticamente todos os juízos de que discordo são modernos – portanto, nem gregos nem romanos – e, para referir-me aos antigos, prefiro começar pelos antigos. Ora para defender que a dinâmica Aquiles-Pátroclo expõe todos os motivos para que a relação entre ambos seja, não de caráter familiar ou amigável, mas explicitamente amoroso, interessa-me sobretudo Platão que, de modo muito claro, conta que, certo dia, os deuses do Olimpo quiseram eleger, entre os amores dos humanos, o mais nobre. Conta também que, se por momentos lhes pareceu conveniente atribuir a categoria aos amores de Orfeu por Eurídice, logo lhes ocorreu que o amor de Aquiles por Pátroclo era o mais indicado. E, por isso, sem que sequer se mencionasse uma única vez a igualdade de sexos das duas personagens, os deuses elegeram Aquiles e


ensaio Pátroclo como protagonistas do amor mais honrado. Para perceber isto, há que recuar de novo aos séculos VII e VI a. C., rumo àquilo que, depois de Homero, ocupava os poetas e dominava tematicamente a produção da época. Ora para esta questão, entre os autores da época arcaica, convoco Safo e Anacreonte que, além de abordarem com alguma frequência temáticas como a homossexualidade, centram as suas atenções na temática do amor. E é, de facto, fundamental perceber o conceito de amor, tal e qual ele era para os gregos, para depois compreender o por quê de ser tão natural amar-se, sendo-se homem ou mulher, uma mulher ou um homem. Ao traduzirmos e ao lermos os textos antigos, interessa que nos detenhamos sobre a atualidade de algumas palavras e a palavra «amor» reúne todas as condições para um debate demorado e difícil. Os gregos não tinham a palavra «amor», ela é de aceção latina e corresponde diretamente à nossa palavra portuguesa. Portanto, se hoje lermos uma passagem grega, na qual, em português, caiba a palavra «amor», ela corresponderá quase sempre à palavra «Ἔρως» que, não por acaso, está na raiz de palavras como «erótico», «erotismo» e restantes derivados. Não é fácil falar-se da palavra «eros», porque atrás do seu significado, escondese um conjunto infindável de teorias e possibilidades de interpretação. *

Ἔρως trata-se também de uma força indestrutível, inesperada e tendencialmente errónea. Explico: no âmbito amoroso, Ἔρως raramente acerta. Se atrai o primeiro corpo até ao segundo, raramente atrai o segundo para o primeiro. Chega, por vezes, a existir um terceiro corpo e, até – quem sabe – , um quarto. A figura do Cupido, mais bem sucedida em Roma, recupera o acaso com que o Ἔρως atinge o ser humano e consiste num menino, semi-nu, a atirar setas de forma desordenada. Também por isso é muito comum a figura do poeta lamentando-se, porque acabou de ser atingido por esta força maioral e, para não variar, o corpo para o qual foi atraído não foi atingido de volta. Ou foi, mas não para ele . A certeza com que se aceita a existência do Ἔρως corresponde também ao grau da certeza com que se compreende que ele é independente do género. Os corpos são corpos e há uma força que os atrai. E a prova disso reside no facto de, mulher ou homem, as características que personalizam o desejo, a dor, o enamoramento, o desespero e a esperança serem sempre as mesmas. E em nenhum momento se diz que uma ou outra é mais válida. * O amor chega sempre antes da validade. Quando abres a boca para dizer «amo-te agora» é como se dissesses «amo-te desde sempre».

* Certo é que, em relação às mulheres da antiguidade, não há muito que possamos dizer tendo em conta aquilo que, por via direta, nos deixaram. Claro está que Safo, natural de Lesbos, de onde, aliás, se inaugura a significância de termos, no português, como «lesbianismo», constitui um exemplo raro. E entre Safo e os * poetas arcaicos, no que toca à referência amoAinda assim, em termos gerais, «Ἔρως» é rosa, não há distinção: compõe, à semelhança uma força que une um corpo ao outro. Não pre- dos homens, poemas de amor que são, antes de cisam tratar-se necessariamente de corpos huma- qualquer coisa e unicamente, poemas de amor. A destinatária nos. Drummond põe ao lado do salvo um dano. “Me salvo e me dano: amor”. Sempre acreditei que a palavra ficava algures entre um e outro. Fixa isto: falar de amor nunca será fácil. Vivê-lo menos ainda.

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ensaio de grande percentagem desses textos é Átis, sobre a qual, por falta de registos históricos, não poderemos dizer muito. Aprendi, contudo, que a qualidade dos textos se sobrepõe à infelicidade bibliográfica. * Colocaram os homens o nome de Safo junto dos de Álcman, Alceu, Estesícoro, Íbico, Anacreonte, Simónides, Píndaro e Baquílides: pois que diferença havia entre as palavras dela e as palavras deles? Colocou Platão o nome de Safo junto dos de Clio, Euterpe, Tália, Melpômene, Terpsícore, Érato, Polímnia, Calíope e Uránia: pois que diferença havia entre as palavras dela e as palavras delas?

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Continuando: no âmbito amoroso, para referir-me à ausência de regras, preciso de retornar a Platão, até ao século V, e destacar, entre os seus diálogos, o Banquete. Se as personagens de Platão já tinham chamado a minha atenção quando nomearam o amor de Aquiles e Pátroclo como o mais nobre entre os mortais, prenderam a minha atenção os momentos em que, ao tentar definir-se o amor, se acaba explicando o por quê de necessitarmos tanto de um. No início do Banquete, o diálogo encaminha-se para o facto de o amor revelar-se, na vida da maioria dos mortais, essencial. Nesse sentido, é-nos contado um mito que procura esclarecê-lo. No início do mundo, quando deuses e seres humanos viviam juntos, os seres humanos eram compostos em dois. Um dia, os deuses decidiram cortá-los ao meio e, por essa razão, todos os seres humanos, em algum momento, procuram a sua metade. Ora isto corresponde corriqueiramente à nossa bastante moderna expressão “carametade” (dicionário priberam: “a esposa”). Mas o que há de mais curioso no mito chega logo depois: o objetivo dessa procura é independente dos

géneros, quero dizer, há homens que procuram uma mulher; outros que procuram um homem; e mulheres que procuram homens; e outras que procuram mulheres. Platão vai mais longe: há homens que, por terem dentro de si uma mulher, procuram um homem; homens que, por dentro de si apenas um homem, procuram uma mulher; e o raciocínio repete-se para as mulheres. O que Platão quer dizer corresponde, cientificamente, àquilo que está na base da atração física: homens que produzem mais testosterona procuram uma mulher; homens que produzem menos, procuram um homem; mulheres que... E o raciocínio repete-se. A naturalidade com que isto nos é explicado pode revelar-se entusiasmante quando, no fim, percebemos que a importância do tema não reside no género que procura ou é procurado, mas no facto de a metade, que nos inícios do mundo de nós se separou, poder, enfim, encontrar-se . Ainda sobre o tema da homossexualidade em Platão, existe, claro está, a outra questão mais óbvia: com base em passagens tão explícitas quanto as que acima citei, Sócrates nutre claramente uma atração sexual por homens, nomeadamente por jovens mais novos. Embora, neste ponto, não me pareça necessário contradizer os críticos modernos, pois não existe, de facto, uma concordância plena entre várias passagens – umas em que Sócrates é homossexual e outras em que já não é –, há que reconhecer o facto de ele ter tido, como nota George Steiner, mais de um amante; e um que vale a pena destacar: Alcíbiades. Existe também um conjunto de registos sobre o casamento de Sócrates com Xantipa e, em geral, esse conjunto leva-nos a crer que, infeliz no casamento, Sócrates procurava o prazer e a felicidade junto dos discípulos. Ainda assim, difícil explorar esta questão. Hélas, difícil explorar qualquer outro assunto em Platão. E é precisamente esse o encanto de lê-lo. *


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Sócrates era o único homem, entre os ho- nada tem de brilhante: serve-se então Petrónio mens, capaz de envergonhar Alcibíades. da relação homossexual para aumentar a comiAnota isto: se tu e eu andamos de mão dada, cidade? o amor e a vergonha também andam. Ora para contrariar o que nada tem de brilhante não é preciso ser-se brilhante, apenas * prático: o que faz do Satyricon um livro perturCom algum destaque, recordo ainda Har- bador corresponde à efemeridade com que tudo módio e Aristogíton, personagens históricas do se processa, porque tão falível e vazio. E em boa séc. VI, com suma importância no século de verdade, nada dura, a não ser a relação amorosa Platão, que, enquanto tema literário, ocuparam de Gíton e Encólpio que, submetida a peripécias não só autores da época como também autores de toda a ordem, mantém-se, no final, como era modernos que vão desde Byron até Edgar Allan nas primeiras páginas. Poe. E que, criticamente, não geraram, em rela* ção ao seu envolvimento amoroso, discordância Nihil est hominum inepta persuasione falentre os teóricos. Harmódio e Aristogíton foram sius nec ficta severitate ineptius dois amantes atenienses que, unindo-se a outros (Petrónio, Satyricon, 132.16: Nada é mais cidadãos, derrotaram Hiparco, filho do introdufalso do que as tolas convicções dos homens tor da tirania em Atenas. nem tão irrisório como a austeridade finSão igualmente centrais, no sentido da natgida). uralidade com que se aborda a validade de vários Coloca assim a questão: talvez a homosstipos de relação amorosa, passagens como as de exualidade nunca tenha existido nem exista. Heródoto em Histórias (1.135) ou Xenofonte, Existe, sim, o objeto de desejo. em Memorabilia (2.6.28) ou Simpósio. E o que tem a ver a genitália do teu objeto Um exemplo de abordagem crítica menos de desejo com a tua integridade? feliz é, porém, aquela que se faz de Satyricon de * Petrónio, um romance romano do séc. I d. C., que, além de parodiar intertextualmente a OdisTrata-se de uma tendência em muito semelseia ou até mesmo passagens emblemáticas do hante a esta aquela que tolda a interpretação de teatro grego, pretende criticar, de forma acesa, a algumas passagens dos textos bíblicos. E não se Roma Imperial. No Satyricon ou Satyrica, a so- trata já de uma questão de discutir se neles há ciedade, que vai dos que enganam na rua até aos ou não passagens que indiquem que, numa conque pertencem à corte do Imperador, não recon- ceção diferente da dos gregos, o amor não possa hece mais quaisquer tipo de valores para além acontecer entre sujeitos do mesmo sexo. Porque, daqueles que, já não dizendo respeito à conduta precisamente como o concebiam os gregos, ele moral, se centram na vigarice, no abuso sexual, acontecerá. A esta tendência junta-se ainda a na pedofilia e num conhecimento que, além de ideia tradicional de que o amor deve educar-se. superficial, nada retém do passado. Esta abor- E a educação do amor pressupõe, em primeiro dagem crítica tende a propor que, já que tudo lugar, a divisão entre sexos – feminino e mascué paródia, paródia também é a relação amorosa lino – e, para lá de altamente castradora e preque sustenta o fio narrativo: a de Gíton e Encól- conceituosa, elimina a possibilidade de sequer pio, dois jovens amantes e os protagonistas de Sa- poderem considerar-se orientações homossextyricon. Na verdade, a extensão do pensamento uais ou bissexuais. O que tem de mais grave esta

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sequência de pensamento é que, além de encabeçar o rumo intelectual de algumas linhas críticas, insurge-se igualmente em âmbitos de caráter aparentemente mais rigoroso, como é o caso de volumes como Educação do Amor, do médico René Biot, publicado em 1948. Ironicamente, é nesse mesmo ano que Alfred Kinsey publica Comportamento Sexual no Homem seguido, em 1953, de Comportamento Sexual na Mulher. Os estudos de Kinsey, além de porem em causa a teoria de Biot, exploram, entre outros assuntos, questões como a homossexualidade e a bissexualidade. E é com visões como as de Kinsey que volta a reclamar-se, desta vez academicamente, que o humano é complexo de mais para que o amor – e a ele preso o desejo sexual – possam educar-se.

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em que «o outro é um espelho sem o qual não nos vemos, não existimos», e «a única coisa que há para acreditar». E, uma vez mais, contra a tendência que venho atacando, «[É] o único contacto que temos com o sagrado. As igrejas apanharam o sagrado e fizeram dele uma coisa muito triste, quando não cruel. O amor é o que nos resta do sagrado». À referência da figura do espelho formado por duas caras e já não pelo vidro, encontro-a em Jorge Luís Borges, que a transcreve do latim: «Videmus nunc speculum in aenigmate: Tunc qutem facie ad faciem./ Nunc cognosco ex parte: tunc autem cognoscam sicut et cognitus sum» (Agora, vemos num espelho, obscuramente; mas então veremos face a face./ Agora, conheço parcialmente; então, conhecerei tal como sou conhecido).

* Não fosse o amor tão diverso, que graça teria isto? Repara: em Hesíodo, o amor é o interNão fosse o desejo tão diverso, que graça te- mediário entre caos e cosmos. ria então isto? Para os gregos, o caos era menos compliA linguagem viva, o desejo pelo desejo: a cado do que o cosmos. graça. O cosmos vem depois do caos. (Cosmética: tratamento da beleza humana. II. Leio: complicar os padrões da beleza huEntre o quarto e quinto cafés, um aponta- mana.) mento sobre Mário de Cesariny: ao contrário de Sem caos, não existiria a palavra cosmos. tratados como os de René Biot, a naturalidade Sem cosmos, não existiria a palavra caos. com que Platão esclarece a necessidade da proCaos e cosmos são os dois lados do mesmo cura do amor pode ser encontrada em versos espelho. que, além de a colocarem em evidência, lemO amor está no meio. bram a circularidade do percurso dos que andam * em busca de «Uma certa quantidade de gente à procura/ de gente à procura duma certa quantiE é precisamente por não só adaptar passadade». gens como esta ao registo falado como também A mesma ideia reflete-se em versos tão em- ao registo poético que ler Mário de Cesariny à blemáticos como «o amor é uma chave que deve luz do mito exposto por Platão me parece tão perder-se» ou em repetições como «o amor é um pertinente: «Vemos como num espelho, por sentido» ou até mesmo em declarações como «o enigma/ premimos outro corpo outros lábios amor é «um desmesurado desejo de amizade», idênticos/ mas do lado de lá como num espelho/


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nossa fiel imagem invertida». Claro também é que, por todas as circunstâncias temporais e sociais, a temática da homossexualidade, aqui como paródia à heteronímia, resulta enquanto elemento de provocação: «O Álvaro gosta muito de levar no cu/ O Alberto nem por isso/ O Ricardo dá-lhe mais para ir/ O Fernando emociona-se e não consegue acabar.// O Campos/ Em podendo fazia-o mais de uma vez por dia». * Por que ris quando lês «O Álvaro gosta muito de levar no cu»? Se repetires «O Álvaro gosta muito de levar no cu» mais do que uma vez, fazendo corresponder os sons da tua boca ao movimento que imaginas quando lês «O Álvaro gosta muito de levar no cu», continuarás a rir ?

* O teu corpo é fruto de uma amputação de que não tens memória. Quem será o primeiro a lembrar-se? Tu ou a tua metade?

* O amor começa quando tu começas. A linguagem, sabes disto, é o limite do teu cosmos. Se rebentares a linguagem, rebentas o cosmos. O que é o cosmos? Cosmos: totalidade do espaço e do tempo, da matéria e da energia. Extensão de quantas infinitas dimensões? Cada partícula do cosmos é o cosmos inteiro. O teu amor não tem como não ser feito de todos os outros amores.

Patrícia Lino é licenciada em Estudos Clássicos pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes com a dissertação ‘E então é verdade: então a vida não passa disto. Manoel de Barros e o Círculo dos três movimentos com vista ao Homem-Árvore’, investigadora do CITCEM (Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória») e correntemente doutoranda no Departamento de Espanhol e Português da University of California at Santa Barbara.

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* Outra abordagem é a da referência explícita ao género masculino do endereçado, distante já de intenções provocatórias, e que pode também encontrar-se em livros tão categóricos como Pena Capital: «Belo tu és belo/ como um grande espaço cirúrgico// Porque tu não tens nome existes// A minha boca/ sabe à tua boca». Parece-me, porém, que a riqueza de Cesariny está em articular, e de modo muito sugestivo, a independência da beleza em relação aos géneros (conclusão a que já Safo, e.g., havia chegado) com aquilo que, em relação à natureza humana, Platão defendera: à poesia corresponde a eliminação dos géneros e não só; à poesia corresponde a eliminação dos géneros dos possíveis endereçados como os daqueles que os endereçam: «Haverá uma idade para nomes que não estes/ haverá uma idade para nomes/ puros».

Lembra-te: o ensinamento de Platão está na cisão de um corpo em dois. Lembra-te ainda: o poema deve ser lido à luz deste raciocínio. * O verbo não é mais o que veio no início – aquele a partir do qual se fez sangue e carne –, mas outro verbo que, partindo do primeiro («decorrerão muitos séculos antes de nós/ mas não te importes/ não te importes/ muito»), assente um espaço onde o envolvimento erótico do sujeito com a linguagem seja uma consequência direta da abertura a todos os tipos de relação amorosa ou sexual. A poesia é um exercício de sedução, quero dizer, o poema é um instrumento de sedução e resultado do facto primeiro: as palavras seduzindo os poetas.

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“o núcleo selvagem do dia”, de Madjer de Souza Pontes é o primeiro livro do autor. Com 31 poemas, dividido em três partes, o livro evidencia a circularidade da vida e os momentos frágeis que o homem possui diante dos acontecimentos externos e internos a si. As palavras rebuscadas do autor vão em confronto com a literatura pós-moderna atual. A forma é levada em consideração, sem versos brancos e com estrofes bem definidas. Valor: R$ 30,00 Páginas: 64 Tamanho: 14x21 cm Acabamento: Capa dura

“Três golpes d’água” é o primeiro livro de Talles Azigon, circunscrito dentro de um território mítico, que ora é um espaço, ora é o próprio fluxo de consciência do poeta. O verso conciso, ao mesmo tempo em que se aproxima de uma linguagem quase falada, está na divisa entre o doce e o amargo. Divido em três partes, ou golpes, os poemas do livro são ataques, reflexões e provocações do autor com as instâncias mais imprescindíveis da vida, o ser, o mundo e o outro. Valor: R$ 30,00 Páginas: 84 Tamanho: 14x21 cm Acabamento: Capa dura


“Cinecasulofilia” é uma coletânea de textos do blog homônimo, escrito por Marcelo Ikeda, reunidos em comemoração aos dez anos de sua criação. No blog, Ikeda desenvolve uma concepção muito particular da crítica de cinema, como uma relação afetiva que entrecruza cinema e vida. O livro abrange aspectos do cinema contemporâneo e do cinema contemporâneo brasileiro, com textos sobre realizadores e filmes de períodos diversos, combinando crítica cinematográfica, análise fílmica e história do cinema Valor: R$ 30,00 Páginas: 300 Tamanho: 13x18 cm Acabamento: Brochura

A Editora Substânsia foi criada com o intuito de publicar livros de autores contemporâneos, dos mais variados gêneros, e perspectivar novas condições de diálogo entre os criadores brasileiros das mais variadas artes; abrindo novas possibilidades no mercado editorial brasileiro. A exemplo de outras editoras independentes, o que nos move é a paixão pela literatura, o prazer de editar livros e criar elos que fortifiquem a intelectualidade dos novos escritores, reconhecendo a contribuição dos que buscam firmar conteúdos de qualidade, abertos para o debate colaborativo.




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