História e memória

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UNIVERSIDADE ESTADUAL JOSÉ

DE

CAMPINAS

Reitor TADEU JORGE

Coordenador Geral da Universidade FERNANDO F ERREIRA COSTA

Conselho Editorial Presidente P AULO F RANCHETTI A LCIR P ÉCORA – A RLEY R AMOS M ORENO EDUARDO D ELGADO A SSAD – J OSÉ A. R. G ONTIJO J OSÉ R OBERTO Z AN – M ARCELO K NOBEL SEDI H IRANO – Y ARO B URIAN J UNIOR

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Jacques Le Goff

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Tradução Irene Ferreira Bernardo Leitão Suzana Ferreira Borges

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELO SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNICAMP DIRETORIA DE TRATAMENTO DA INFORMAÇÃO

Le Goff, Jacques, 1924L525h

História e memória / Jacques Le Goff; tradução Bernardo Leitão... [et al.]. – 5 a ed. – Campinas, SP: Editora da U NICAMP , 2003. Tradução de: Storia e memoria 1. Historiografia. I. Título.

ISBN

85-268-0615-7

CDD – 907.2

Índice para catálogo sistemático: 1. Historiografia

907.2

Copyright © 1977, 1978, 1979, 1980, 1981 e 1982 by Giulio Einaudi editore s.p.a., Torino Copyright © 2003 by Editora da UNICAMP Os ensaios aqui reunidos foram originalmente publicados nos volumes I, II, IV, V, VIII, X, XI, XIII, XV da Enciclopédia Einaudi. 3a reimpressão, 2008 Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em sistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.

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SUMÁRIO

PREFÁCIO ................................................................................................................................................................ 7 HISTÓRIA ............................................................................................................................................................. 17 ANTIGO/MODERNO ................................................................................................................................ 173 PASSADO/PRESENTE .................................................................................................................................. 207 PROGRESSO/REAÇÃO ............................................................................................................................... 235 IDADES MÍTICAS ........................................................................................................................................... 283 ESCATOLOGIA ................................................................................................................................................ 323 DECADÊNCIA ................................................................................................................................................. 373 MEMÓRIA ......................................................................................................................................................... 419 CALENDÁRIO .................................................................................................................................................. 477 DOCUMENTO/MONUMENTO .......................................................................................................... 525

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PREFÁCIO*

O conceito de história parece colocar hoje seis tipos de problemas: 1) Que relações existem entre a história vivida, a história “natural”, se não “objetiva”, das sociedades humanas, e o esforço científico para descrever, pensar e explicar esta evolução, a ciência histórica? O afastamento de ambas tem, em especial, permitido a existência de uma disciplina ambígua: a filosofia da história. Desde o início do século XX e, sobretudo, nos últimos 20 anos, vem-se desenvolvendo um ramo da ciência histórica que estuda a evolução da própria ciência histórica no interior do desenvolvimento histórico global: a historiografia, ou história da história. 2) Que relações tem a história com o tempo, com a duração, tanto com o tempo “natural” e cíclico do clima e das estações quanto com o tempo vivido e naturalmente registrado dos indivíduos e das sociedades? Por um lado, para domesticar o tempo natural, as diversas sociedades e culturas inventaram um instrumento fundamental, que é também um dado essencial da história: o calendário; por outro, hoje os historiadores se interessam cada vez mais pelas relações entre história e memória. * Tradução de Nilson Moulin Louzada.

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3) A dialética da história parece resumir-se numa oposição — ou num diálogo — passado/presente (e/ou presente/passado). Em geral, essa oposição não é neutra, mas subentende, ou exprime, um sistema de atribuição de valores, como, por exemplo, nos pares antigo/moderno, progresso/reação. Da Antigüidade ao século XVIII desenvolveu-se ao redor do conceito de decadência uma visão pessimista da história, que voltou a apresentar-se em algumas ideologias da história no século XX. Já com o Iluminismo, afirmou-se uma visão otimista da história a partir da idéia de progresso, que agora, na segunda metade do século XX, experimenta uma crise. Tem, pois, a história um sentido? E existe um sentido da história? 4) A história é incapaz de prever e de predizer o futuro. Então, como ela se coloca em relação a uma nova “ciência”, a futurologia? Na realidade, deixa de ser científica quando se trata do início e do fim da história do mundo e da humanidade. Quanto à origem, ela tende ao mito: a Idade de Ouro, as épocas míticas ou, sob aparência científica, a recente teoria do big bang. Quanto ao final, ela cede o lugar à religião e, em particular, às religiões de salvação que construíram um “saber dos fins últimos” — a escatologia —, ou às utopias do progresso, sendo a principal o marxismo, que justapõe uma ideologia do sentido e do fim da história (o comunismo, a sociedade sem classes, o internacionalismo). Todavia, no nível da práxis dos historiadores, vem-se desenvolvendo uma crítica do conceito de origens, e a noção de gênese tende a substituir a idéia de origem. 5) Em contato com outras ciências sociais, o historiador tende hoje a distinguir diferentes durações históricas. Existe um renascer do interesse pelo evento, embora seduza mais a perspectiva da longa duração. Esta conduziu alguns historiadores, tanto através do uso da noção de estrutura quanto mediante o diálogo com a antropologia, a elaborar a hipótese da existência de uma história “quase imóvel”. Mas poderia existir uma história imóvel? Que relações tem a história com o estruturalismo (ou os estruturalismos)? Não existiria também um movimento mais amplo de “recusa da história”? 6) A idéia da história como história do homem foi substituída pela idéia da história como história dos homens em sociedade. Mas existiria, se é possível existir, somente uma história do homem? Já se de8

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senvolveu uma história do clima — não se deveria escrever também uma história da natureza? 1) Desde o seu nascimento nas sociedades ocidentais — nascimento tradicionalmente situado na Antigüidade grega (Heródoto, no século V a.C., seria, se não o primeiro historiador, pelo menos o “pai da história”), mas que remonta a um passado ainda mais remoto, nos impérios do Próximo e do Extremo Oriente —, a ciência histórica define-se em relação a uma realidade que não é nem construída nem observada como na matemática, nas ciências da natureza e nas ciências da vida, mas sobre a qual se “indaga”, “se testemunha”. Tal é o significado do termo grego e de sua raiz indo-européia wid-, weid-, “ver”. Assim, a história começou como um relato, a narração daquele que pode dizer “Eu vi, senti”. Esse aspecto da história-relato, da história-testemunho, jamais deixou de estar presente no desenvolvimento da ciência histórica. Paradoxalmente, hoje se assiste à crítica desse tipo de história, devido à vontade de colocar a explicação no lugar da narração; mas, também, ao mesmo tempo, presencia-se o renascimento da história-testemunho por intermédio do “retorno do evento” (Nora), ligado à nova mídia, ao surgimento de jornalistas entre os historiadores e ao desenvolvimento da “história imediata”. Contudo, desde a Antigüidade, a ciência histórica, reunindo documentos escritos e fazendo deles testemunhos, superou o limite do meio século ou do século abrangido pelos historiadores que dele foram testemunhas oculares e auriculares. Ela ultrapassou também as limitações impostas pela transmissão oral do passado. A constituição de bibliotecas e de arquivos forneceu, assim, os materiais da história. Foram elaborados métodos de crítica científica, conferindo à história um de seus aspectos de ciência em sentido técnico, a partir dos primeiros e incertos passos da Idade Média (Guenée), mas sobretudo depois do final do século XVII, com Du Cange, Mabillon e os beneditinos de SaintMaur, Muratori etc. Portanto não se tem história sem erudição. Mas, do mesmo modo que se fez no século XX a crítica da noção de fato histórico, que não é um objeto dado e acabado, pois resulta da construção do historiador, também se faz hoje a crítica da noção de documento, que não é um material bruto, objetivo e inocente, mas expri9

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me o poder da sociedade do passado sobre a memória e o futuro: o documento é monumento (Foucault e Le Goff ). Ao mesmo tempo, ampliou-se a área dos documentos, que a história tradicional reduzia aos textos e aos produtos da arqueologia, de uma arqueologia muitas vezes separada da história. Hoje os documentos chegam a abranger a palavra, o gesto. Constituem-se arquivos orais; são coletados etnotextos. Enfim, o próprio processo de arquivar os documentos foi revolucionado pelo computador. A história quantitativa, da demografia à economia até o cultural, está ligada aos progressos dos métodos estatísticos e da informática aplicada às ciências sociais. O afastamento existente entre a “realidade histórica” e a ciência histórica permitiu a filósofos e historiadores propor — da Antigüidade até hoje — sistemas de explicação global da história (para o século XX, e em sentidos extremamente diferentes, podem ser lembrados Spengler, Weber, Croce, Gramsci, Toynbee, Aron etc.). A maior parte dos historiadores manifesta uma desconfiança mais ou menos marcada em relação à filosofia da história; porém, não obstante isso, eles não se voltam para o positivismo, triunfante na historiografia alemã (Ranke) ou na francesa (Langlois e Seignobos), no final do século XIX e início do XX. Entre a ideologia e o pagamento, eles são os defensores de uma históriaproblema (Febvre). Para captar o desenrolar da história e fazer dela o objeto de uma verdadeira ciência, historiadores e filósofos, desde a Antigüidade, esforçaram-se por encontrar e definir as leis da história. As tentativas mais estimulantes, que sofreram uma falência estrondosa, são as velhas teorias cristãs do providencialismo (Bossuet) e o marxismo vulgar, que insiste — embora Marx não fale em leis da história (como acontece com Lênin) — em fazer do materialismo histórico uma pseudociência do determinismo histórico, cada vez mais desmentida pelos fatos e pela reflexão histórica. Em compensação, a possibilidade de uma leitura racional a posteriori da história, o reconhecimento de certas regularidades em seu decurso (fundamento de um comparatismo da história das diversas sociedades e das diferentes estruturas), a elaboração de modelos que excluem a existência de um modelo único (o alargamento da história do mundo no seu conjunto, a influência da etnologia, a sensibilidade para as di10

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ferenças e em relação ao outro, caminham neste sentido) permitem excluir o retorno da história a um mero relato. As condições nas quais trabalha o historiador explicam, ademais, por que foi e continua sendo sempre colocado o problema da objetividade do historiador. A tomada de consciência da construção do fato histórico, da não-inocência do documento, lançou uma luz reveladora sobre os processos de manipulação que se manifestam em todos os níveis da constituição do saber histórico. Mas esta constatação não deve desembocar num ceticismo de fundo a propósito da objetividade histórica e num abandono da noção de verdade em história; ao contrário, os contínuos êxitos no desmascaramento e na denúncia das mistificações e das falsificações da história permitem um relativo otimismo a esse respeito. Isso não impede que o horizonte da objetividade, que deve ser o do historiador, não deva ocultar o fato de que a história é também uma prática social (Certeau) e de que, se devem ser condenadas as posições que, na linha de um marxismo vulgar ou de um reacionarismo igualmente vulgar, confundem ciência histórica e empenho político, é legítimo observar que a leitura da história do mundo se articula sobre uma vontade de transformá-lo (por exemplo, na tradição revolucionária marxista, mas também em outras perspectivas, como aquelas dos herdeiros de Tocqueville e de Weber, que associam estreitamente análise histórica e liberalismo político). A crítica da noção de fato histórico tem, além disso, provocado o reconhecimento de “realidades” históricas negligenciadas por muito tempo pelos historiadores. Junto à história política, à história econômica e social, à história cultural, nasceu uma história das representações. Esta assumiu formas diversas: história das concepções globais da sociedade ou história das ideologias; história das estruturas mentais comuns a uma categoria social, a uma sociedade, a uma época, ou história das mentalidades; história das produções do espírito ligadas não ao texto, à palavra, ao gesto, mas à imagem, ou história do imaginário, que permite tratar os documentos literário e artístico como plenamente históricos, sob condição de ser respeitada sua especificidade; história das condutas, das práticas, dos rituais, que remete a uma realidade oculta, subjacente, ou história do simbólico, que talvez um dia conduza a uma história psicanalítica, cujas provas de estatuto científico não parecem ainda reunidas. 11

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Enfim, a própria ciência histórica é colocada numa perspectiva histórica com o desenvolvimento da historiografia, ou história da história. Todos estes novos setores da história representam um enriquecimento notável, desde que sejam evitados dois erros: antes de mais nada, subordinar a história das representações a outras realidades, as únicas às quais caberia um status de causas primeiras (realidades materiais, econômicas) — renunciar, portanto, à falsa problemática da infraestrutura e da superestrutura. Mas também não privilegiar as novas realidades, não lhes conferir, por sua vez, um papel exclusivo de motor da história. Uma explicação histórica eficaz deve reconhecer a existência do simbólico no interior de toda realidade histórica (incluída a econômica), mas também confrontar as representações históricas com as realidades que elas representam e que o historiador apreende mediante outros documentos e métodos — por exemplo, confrontar a ideologia política com a práxis e os eventos políticos. E toda história deve ser uma história social. Por fim, o caráter “único” dos eventos históricos, a necessidade do historiador de misturar relato e explicação fizeram da história um gênero literário, uma arte ao mesmo tempo que uma ciência. Se isso foi válido da Antigüidade até o século XIX, de Tucídides a Michelet, é menos verdadeiro para o século XX. O crescente tecnicismo da ciência histórica tornou mais difícil para o historiador parecer também escritor. Mas sempre existirá uma escritura da história. 2) Matéria fundamental da história é o tempo; portanto, não é de hoje que a cronologia desempenha um papel essencial como fio condutor e ciência auxiliar da história. O instrumento principal da cronologia é o calendário, que vai muito além do âmbito do histórico, sendo antes de mais nada o quadro temporal do funcionamento da sociedade. O calendário revela o esforço realizado pelas sociedades humanas para domesticar o tempo natural, utilizar o movimento natural da lua ou do sol, do ciclo das estações, da alternância do dia e da noite. Porém suas articulações mais eficazes — a hora e a semana — estão ligadas à cultura e não à natureza. O calendário é produto e expressão da história: está ligado às origens míticas e religiosas da humanidade (fes12

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tas), aos progressos tecnológicos e científicos (medida do tempo), à evolução econômica, social e cultural (tempo do trabalho e tempo do lazer). Ele manifesta o esforço das sociedades humanas para transformar o tempo cíclico da natureza e dos mitos, do eterno retorno, num tempo linear escandido por grupos de anos: lustro, olimpíadas, século, eras etc. À história estão intimamente conectados dois progressos essenciais: a definição de pontos de partida cronológicos (fundação de Roma, Era Cristã, Hégira e assim por diante) e a busca de uma periodização, a criação de unidades iguais, mensuráveis, de tempo: dia de vinte e quatro horas, século etc. Hoje, a aplicação à história dos dados da filosofia, da ciência, da experiência individual e coletiva tende a introduzir, junto destes quadros mensuráveis do tempo histórico, a noção de duração, de tempo vivido, de tempos múltiplos e relativos, de tempos subjetivos ou simbólicos. O tempo histórico encontra, num nível muito sofisticado, o velho tempo da memória, que atravessa a história e a alimenta. 3-4) A oposição passado/presente é essencial na aquisição da consciência do tempo. Para a criança, “compreender o tempo significa libertar-se do presente” (Piaget), mas o tempo da história não é nem o do psicólogo nem o do lingüista. Todavia o exame da temporalidade nestas duas ciências reforça o fato de que a oposição presente/passado não é um dado natural, mas uma construção. Por outro lado, a constatação de que a visão de um mesmo passado muda segundo as épocas e o historiador está submetido ao tempo em que vive conduziu tanto ao ceticismo sobre a possibilidade de conhecer o passado como a um esforço para eliminar qualquer referência ao presente (ilusão da história romântica à maneira de Michelet — “a ressurreição integral do passado” —, ou da história positivista, à Ranke — “aquilo que realmente aconteceu”). Com efeito, o interesse no passado está em esclarecer o presente; o passado é atingido a partir do presente (método regressivo de Bloch). Até o Renascimento e, mesmo, até o final do século XVIII, as sociedades ocidentais valorizaram o passado, o tempo das origens e dos ancestrais surgindo para eles como uma época de inocência e felicidade. Imaginaram-se eras míticas: idades do Ouro, o paraíso terrestre... a história do mundo e da humanidade assemelhava-se a uma longa 13

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decadência. Esta idéia de decadência foi retomada para exprimir a fase final da história das sociedades e das civilizações; ela se insere num pensamento mais ou menos cíclico da história (Vico, Montesquieu, Gibbon, Spengler, Toynbee) e é, em geral, produto de uma filosofia reacionária da história, um conceito de escassa utilidade para a ciência histórica. Na Europa do final do século XVII e primeira metade do XVIII, a polêmica sobre a oposição antigo/moderno, surgida a propósito da ciência, da literatura e da arte, manifestou uma tendência à reviravolta da valorização do passado: antigo tornou-se sinônimo de superado, e moderno, de progressista. Na realidade, a idéia de progresso triunfou com o Iluminismo e desenvolveu-se no século XIX e início do XX, considerando sobretudo os progressos científicos e tecnológicos. Depois da Revolução Francesa, à ideologia do progresso foi contraposto um esforço de reação, cuja expressão foi sobretudo política, mas que se baseou numa leitura “reacionária” da história. Em meados do século XX, os fracassos do marxismo e a revelação do mundo stalinista e do gulag, os horrores do fascismo e, principalmente, do nazismo e dos campos de concentração, os mortos e as destruições da Segunda Guerra Mundial, a bomba atômica — primeira encarnação histórica “objetiva” de um possível apocalipse —, a descoberta de culturas diversas do Ocidente conduziram a uma crítica à idéia de progresso (recorde-se La crise du progrès, de Friedmann, de 1936). A crença num progresso linear, contínuo, irreversível, que se desenvolve segundo um modelo em todas as sociedades, já quase não existe. A história que não domina o futuro passa a defrontar-se com crenças que conhecem hoje um grande revival: profecias, visões em geral catastróficas do fim do mundo ou, ao contrário, revoluções iluminadas, como as invocadas pelos milenarismos, tanto nas seitas das sociedades ocidentais como em certas sociedades do Terceiro Mundo. É o retorno da escatologia. Mas a ciência da natureza e, em particular, a biologia mantêm uma concepção positiva, ainda que atenuada, do desenvolvimento enquanto progresso. Estas perspectivas podem aplicar-se às ciências sociais e à história. Assim, a genética tende a recuperar a idéia de evolução e progresso, porém dando mais espaço ao evento e às catástrofes (Thom): a história tem todo o interesse em inserir na sua problemática a idéia 14

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de gênese — dinâmica —, no lugar daquela, passiva, das origens, que Bloch já criticava. 5) Na atual renovação da ciência histórica — que se acelera, ao menos na sua difusão (o incremento essencial veio com a revista Annales, fundada por Bloch e Febvre em 1929) —, uma nova concepção do tempo histórico desempenha um papel importante. A história seria feita segundo ritmos diferentes e a tarefa do historiador seria, primordialmente, reconhecer tais ritmos. Em vez do estrato superficial, o tempo rápido dos eventos, mais importante seria o nível mais profundo das realidades que mudam devagar (geografia, cultura material, mentalidades: em linhas gerais, as estruturas) — trata-se do nível das “longas durações” (Braudel). O diálogo dos historiadores da longa duração com as outras ciências sociais e com as ciências da natureza e da vida — a economia e a geografia, ontem; a antropologia, a demografia e a biologia, hoje — conduziu alguns deles à idéia de uma história “quase imóvel” (Braudel, Le Roy Ladurie). Colocou-se então a hipótese de uma história imóvel. Mas a antropologia histórica caminha no sentido contrário à idéia de que o movimento, a evolução se encontrem em todos os objetos de todas as ciências sociais, pois seu objeto comum são as sociedades humanas (sociologia, economia, mas também antropologia). Quanto à história, ela só pode ser uma ciência da mutação e da explicação da mudança. Com os diversos estruturalismos, a história pode ter relações frutíferas sob duas condições: a) não esquecer que as estruturas por ela estudadas são dinâmicas; b) aplicar certos métodos estruturalistas ao estudo dos documentos históricos, à análise dos textos (em sentido amplo), não à explicação histórica propriamente dita. Todavia podemos perguntar-nos se a moda do estruturalismo não está ligada a uma certa recusa da história concebida como ditadura do passado, justificativa da “reprodução” (Bourdieu), poder de repressão. Mas também na extrema esquerda reconheceu-se que seria perigoso fazer “tábula rasa do passado” (Chesneaux). O “fardo da história”, 15

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no sentido “objetivo” do termo (Hegel), pode e deve encontrar o seu contrapeso na ciência histórica como “meio de libertação do passado” (Arnaldi). 6) Ao fazer a história de suas cidades, povos, impérios, os historiadores da Antigüidade pensavam fazer a história da humanidade. Os historiadores cristãos, os historiadores do Renascimento e do Iluminismo (não obstante reconhecessem a diversidade dos “costumes”) pensavam estar fazendo a história do homem. Os historiadores modernos observam que a história é a ciência da evolução das sociedades humanas. Mas a evolução das ciências levou a pôr-se o problema de saber se não poderia existir uma história diferente daquela do homem. Já se desenvolveu uma história do clima; contudo, ela apresenta um certo interesse para a história apenas na medida em que esclarece certos fenômenos da história das sociedades humanas (modificação das culturas, do habitat etc.). Agora se pensa numa história da natureza (Romano), mas ela reforçará sem dúvida o caráter “cultural” — portanto histórico — da noção de natureza. Assim, por meio das ampliações de seu âmbito, a história se torna sempre co-extensiva em relação ao homem. Hoje, o paradoxo da ciência histórica é que, justamente quando, sob suas diversas formas (incluindo o romance histórico), ela conhece uma popularidade sem par nas sociedades ocidentais, e logo quando as nações do Terceiro Mundo se preocupam, antes de mais nada, com dotar-se de uma história — o que, de resto, talvez permita tipos de história extremamente diferentes daqueles que os ocidentais definem como tal —, se a história se tornou, portanto, um elemento essencial da necessidade de identidade individual e coletiva, logo agora a ciência histórica sofre uma crise (de crescimento?): no diálogo com as outras ciências sociais, na expansão considerável de seus problemas, métodos, objetos, ela pergunta se não começa a perder-se.

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HISTÓRIA*

Estamos quase todos convencidos de que a história não é uma ciência como as outras — sem contar aqueles que não a consideram uma ciência. Falar de história não é fácil, mas estas dificuldades de linguagem introduzem-nos ao próprio âmago das ambigüidades da história. Neste ensaio, tentaremos centrar a reflexão sobre a história na temporalidade, situar a própria ciência histórica nas periodizações da história e não reduzi-la à visão européia, ocidental, mesmo que, por ignorância e em virtude de deficiências importantes de documentação, sejamos levados a falar sobretudo da ciência histórica européia. * A história está sempre no centro das controvérsias. De que assuntos deve tratar? Os acontecimentos (cf. acontecimento) apenas, ou também os desígnios da providência (cf. divino, escatologia, milênio), os progressos da humanidade (cf. progresso/reação), os fenômenos (cf. fenômeno) repetitivos (cf. ciclo, recursividade, repetição), as estruturas (cf. estrutura)? Deve pôr a tônica na continuidade (cf. contínuo/discreto) ou, pelo contrário, nas revoluções (cf. revoluções), nas rupturas, nas catástrofes? Deve ocupar-se prioritariamente dos indivíduos (cf. pessoa) promovidos ao papel de heróis ou de massa? De quem tem poder e autoridade (cf. poder/autoridade) no Estado ou na Igreja ou, ao contrário, dos camponeses, do proletariado, dos burgueses (cf. burgueses/burguesia), da população no seu conjunto e de todas as classes que a compõem? Estas questões, que incidem sobre os objetos (cf. objeto) da história, remetem-nos a outras, que incidem sobre o seu estatuto e os seus métodos (cf. método). Trata-se de uma projeção, talvez inconsciente (cf. inconsciente), de preocupações ideológicas (cf. ideologia) contemporâneas no passado (passado/presente) ou de um conhecimento, através de documentos e monumentos (cf. documento/monumento), de economias (cf. economia), de

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A palavra “história” (em todas as línguas românicas e em inglês) vem do grego antigo historie, em dialeto jônico (Keuck, 1934). Esta forma deriva da raiz indo-européia wid-, weid-, “ver”. Daí o sânscrito vettas, “testemunha”, e o grego histor, testemunha no sentido de “aquele que vê”. Esta concepção da visão como fonte essencial de conhecimento leva-nos à idéia de que histor, aquele que vê, é também “aquele que sabe”; historein, em grego antigo, é “procurar saber”, “informar-se”. Historie significa, pois, “procurar”. É este o sentido da palavra em Heródoto, no início de suas Histórias, que são “investigações”, “procuras” (cf. Benveniste, 1969, t. II, pp. 173-74; Hartog, 1980). Ver, logo saber, é um primeiro problema. Mas, nas línguas românicas (e noutras), “história” exprime dois, se não três, conceitos diferentes. Significa: 1) esta “procura das ações realizadas pelos homens” (Heródoto) que se esforça por se constituir em ciência, a ciência histórica; 2) o objeto de procura é o que os homens realizaram. Como diz Paul Veyne, “a história é quer uma série de acontecimentos, quer a narração desta série de acontecimentos” (1968, p. 423). Mas a história pode ter ainda um terceiro sentido, o de narração. Uma história é uma narração, verdadeira ou falsa, com base na “realidade histórica” ou puramente imaginária — pode ser uma narração sociedades, de civilizações (cf. selvagem, bárbaro, civilizado), afastados de nós no tempo (cf. tempo/temporalidade)? Dever-se-ia ainda perguntar se a história constitui uma forma literária (cf. literatura), uma narração (cf. narração/narratividade) dos fatos, ou uma ciência que os estabelece, os descreve e os explica (cf. explicação). Quais são, finalmente, as relações com as outras disciplinas (cf. disciplina/disciplinas) que se interessam pelo homem (cf. também anthropos), em particular com a filologia e a crítica e também com a filosofia (cf. filosofia/filosofias)? Devem limitar-se à cultura (cf. cultura/culturas), nela integrando a cultura material, ou devem também incluir o ambiente, o clima e, finalmente, a evolução dos seres vivos (vida) e do universo? As teorias (cf. teoria/modelo) genéticas (gênese) que hoje se desenvolvem não irão, talvez, desembocar numa história da natureza? O debate sobre a história que promove todas estas interrogações e ainda outras procede da Antigüidade (cf. antigo/moderno) e tem todas as possibilidades de se prolongar no futuro (cf. futuro).

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histórica ou uma fábula. O inglês escapa a esta última confusão porque distingue entre history e story (história e conto). As outras línguas européias esforçam-se por evitar esta ambigüidade. O italiano tem tendência para designar, se não a ciência histórica, pelo menos as produções desta ciência, pela palavra storiografia; o alemão estabelece diferença entre a atividade “científica”, Geschichtschreibung, e a ciência histórica propriamente dita, Geschichtswissenschaft. Este jogo de espelhos e de equívocos manteve-se ao longo das épocas. O século XIX, século da história, inventa ao mesmo tempo as doutrinas que privilegiam a história dentro do saber — falando, como veremos, de “historismo” ou de “historicismo” — e uma função, ou melhor, uma categoria do real, a “historicidade” (a palavra aparece em 1872, em francês). Charles Morazé define-a assim: Devemos procurar para além da geopolítica, do comércio, das artes e da própria ciência, aquilo que justifica a atitude de obscura certeza dos homens que se unem, arrastados pelo enorme fluxo do progresso que os especifica, opondo-os. Sente-se que esta solidariedade está ligada à existência implícita, que cada um experimenta em si, duma certa função comum a todos. Chamamos a esta função historicidade (1967, p. 59).

O conceito de historicidade desligou-se das origens “históricas”, ligadas ao historicismo do século XIX, para desempenhar um papel de primeiro plano na renovação epistemológica da segunda metade do século XX. A “historicidade” permite, por exemplo, refutar no plano teórico a noção de “sociedade sem história”, refutada, por outro lado, pelo estudo empírico das sociedades estudadas pela etnologia (Lefort, 1952). Ela obriga a inserir a própria história numa perspectiva histórica: “Há uma historicidade da história que implica o movimento que liga uma prática interpretativa a uma práxis social” (Certeau, 1970, p. 484). Um filósofo como Paul Ricœur vê na supressão da historicidade através da história da filosofia o paradoxo do fundamento epistemológico da história. De fato, segundo Ricœur, o discurso filosófico faz desdobrar a história em dois modelos de inteligibilidade, um modelo de acontecimentos (événementiel ) e um modelo estrutural, o que leva ao desaparecimento da historicidade: “O sistema é o fim da história porque ela se anula na lógica; a singularidade é tam19

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bém o fim da história porque toda a história se nega nela. Chegamos a este resultado paradoxal: é sempre na fronteira da história, no fim da história que se compreendem os traços mais gerais da historicidade” (1961, pp. 224-25). Finalmente, Paul Veyne tira uma dupla lição do fundamento do conceito de historicidade. A historicidade permite a inclusão, no campo da ciência histórica, de novos objetos da história: o non-événementiel; trata-se de acontecimentos ainda não reconhecidos como tais — história rural, das mentalidades, da loucura, ou da procura de segurança através das épocas. Chamaremos non-événementiel a historicidade de que não temos consciência enquanto tal (1971, p. 31). Por outro lado, a historicidade exclui a idealização da história, a existência da História com H maiúsculo: “Tudo é histórico, logo a história não existe”. Temos porém de viver e pensar com este duplo ou triplo sentido de “história”. Lutar contra as confusões grosseiras e mistificadoras entre os diferentes significados, não confundir ciência histórica e filosofia da história. Partilho a desconfiança da maior parte dos historiadores de ofício perante essa filosofia da história “tenaz e insidiosa” (Lefebvre, 1945-1946), cuja tendência, nas suas diversas formas, é levar a explicação histórica à descoberta ou à aplicação de uma causa única e original, substituir o estudo pelas técnicas científicas de evolução das sociedades, sendo essa evolução concebida como abstração baseada no apriorismo ou num conhecimento muito sumário dos trabalhos científicos. A meu ver, é surpreendente a ressonância obtida — fora dos ambientes históricos, é certo — pelo panfleto de Karl Popper, The poverty of historicism (1966). Nem um só historiador profissional é nele citado. Esta desconfiança perante a filosofia da história não deve servir de justificação para recusar este tipo de reflexão. A própria ambigüidade do vocabulário revela que a fronteira entre as duas disciplinas, as duas orientações, não está estritamente traçada nem é passível de sê-lo (em última hipótese). O historiador não pode concluir que deve evitar uma reflexão teórica, necessária ao trabalho histórico. É fácil ver que os historiadores mais inclinados a reclamar dos fatos não só ignoram que um fato histórico resulta duma montagem e que estabelecê-lo exige um trabalho técnico e teórico, mas também estão, acima de tudo, cegos por uma filosofia da história inconsciente, muitas vezes sumária e in20

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