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O QUADRANTE DE PASTEUR A CIÊNCIA BÁSICA E A INOVAÇÃO TECNOLÓGICA


UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Reitor JOSÉ TADEU JORGE Coordenador Geral da Universidade FERNANDO FERREIRA COSTA

Conselho Editorial Presidente PAULO FRANCHETTI ALCIR PÉCORA – ARLEY RAMOS MORENO – EDUARDO DELGADO ASSAD JOSÉ A. R. GONTIJO – JOSÉ ROBERTO ZAN – MARCELO KNOBEL SEDI HIRANO – YARO BURIAN JUNIOR

Comissão Editorial da Coleção Clássicos da Inovação CARLOS H. DE BRITO CRUZ – SÉRGIO QUEIROZ AMÉRICO MARTINS CRAVEIRO – TAMÁS SZMRECSÁNYI – MARCELO KNOBEL Conselho Consultivo da Coleção Clássicos da Inovação TAMÁS SZMRECSÁNYI (coordenador) – ADRIANO DIAS BATISTA – EDUARDO ALBUQUERQUE ELIANE BAHRUTH – FÁBIO ERBER – GUILHERME ARY PLONSKI – JAIR DO AMARAL FILHO – JOÃO CARLOS FERRAZ JOSÉ CARLOS CAVALCANTI – JOSÉ MIGUEL CHADDAD – LUIZ MARTINS – MÁRIO POSSAS – MONICA TEIXEIRA PAOLO SAVIOTTI – ROBERTO VERMULM – RUY QUADROS DE CARVALHO – SERGIO BAMPI

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Donald E. Stokes

O QUADRANTE DE PASTEUR A CIÊNCIA BÁSICA E A INOVAÇÃO TECNOLÓGICA


Leia os outros lançamentos da coleção: Trajetórias da Inovação Tecnologia, Aprendizado e Inovação

ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação St67q

Stokes, Donald E. O quadrante de Pasteur: a ciência básica e a inovação tecnológica / Donald E. Stokes; tradutor: José Emílio Maiorino. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2005. (Clássicos da Inovação) Tradução de: Pasteur’s quadrant: basic science and technological innovation. 1. Pasteur, Louis, 1822-1895. 2. Inovações tecnológicas. 3. Ciência e Estado – Estados Unidos. 4. Ciência – pesquisa. 5. Tecnologia e Estado – Estados Unidos. 6. Ciência – história. I. Título cdd 338.476 338.973 507.2 509

isbn 85-268-0702-1 Índices para catálogo sistemático: 1. Inovações tecnológicas 2. Ciência e Estado – Estados Unidos 3. Ciência – pesquisa 4. Tecnologia e Estado – Estados Unidos 5. Ciência – história

338.476 338.973 507.2 338.973 509

Pasteur’s quadrant Licensed by The Brookings Institution Press,Washington, DC, USA Copyright © 1997 by The Brookings Institution Copyright da tradução © 2005 by Editora da Unicamp 2a reimpressão, 2009 Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em sistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.

Editora da Unicamp Rua Caio Graco Prado, 50 – Campus Unicamp Caixa Postal 6074 – Barão Geraldo CEP 13083-892 – Campinas – SP – Brasil Tel./Fax: (19) 3521-7718/7728 www.editora.unicamp.br – vendas@editora.unicamp.br

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APRESENTAÇÃO

Faz mais de cinqüenta anos que Vannevar Bush apresentou seu imensamente influente relatório Science, the Endless Frontier, o qual afirmava a existência de uma dicotomia entre a ciência básica e a ciência aplicada. Essa visão encontrava-se no centro do pacto estabelecido entre o governo e a ciência, que levou à idade de ouro da pesquisa científica que se seguiu à Segunda Guerra Mundial – um pacto atualmente submetido a fortes tensões. Neste livro, Donald E. Stokes desafia a visão de Bush e sustenta que só conseguiremos restabelecer o relacionamento entre o governo e a comunidade científica quando compreendermos o que está errado com aquela visão. Stokes começa com uma análise dos objetivos de entendimento e uso envolvidos na pesquisa científica. Citando como caso-modelo os estudos fundamentais, mas ao mesmo tempo inspirados pelo uso, por meio dos quais Louis Pasteur estabeleceu as bases da microbiologia um século atrás, Stokes reformula a visão amplamente aceita sobre a tensão entre entendimento e uso. Pasteur trabalhou na época da “segunda revolução industrial”, durante a qual a relação entre a ciência básica e a inovação tecnológica assumiu sua forma moderna.

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Nas décadas que se seguiram, a tecnologia tornou-se cada vez mais baseada na ciência – com a escolha de problemas e a condução da pesquisa freqüentemente inspiradas pelas necessidades da sociedade. Sobre essa sua nova visão interativa da ciência e da tecnologia Stokes constrói uma argumentação convincente, segundo a qual se reconhecermos a importância da pesquisa básica inspirada pelo uso conseguiremos estruturar um novo pacto entre a ciência e o governo. Suas conclusões têm implicações capitais tanto para a comunidade científica como para a política, e serão de grande interesse para um público maior que se sente perturbado com o papel atual da ciência básica na democracia norte-americana. Após ter dado os retoques finais a seu manuscrito, Donald E. Stokes morreu de leucemia aguda em 26 de janeiro de 1997. À época de sua morte, Stokes era professor de Política e Assuntos Governamentais na Woodrow Wilson School of Public and International Affairs, da Universidade de Princeton. Stokes foi diretor dessa escola entre 1974 e 1992. Na Brookings Press,Theresa Walker editou o manuscrito, Matthew Atlas e Tara Adams Ragone revisaram-no, Inge Lockwood corrigiu as provas e Julia Petrakis preparou o índice remissivo. Os pontos de vista expressos neste livro são exclusivamente do Autor e não devem ser atribuídos aos curadores, dirigentes ou outros membros do corpo de funcionários da Brookings Institution. Michael H. Armacost Presidente Julho 1997 Washington, D.C.

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PREFÁCIO

O problema tratado por mim neste livro atraiu minha atenção pela primeira vez quando era diretor de pós-graduação na Universidade de Michigan, uma função, entre outras coisas, semelhante a uma assinatura andante da Scientific American. Enquanto fazia minha ronda pelos vários campos da ciência, sentia-me perplexo com a freqüência com que cientistas talentosos falavam sobre os objetivos da pesquisa – e em especial sobre a relação entre a busca de entendimento fundamental, de um lado, e as considerações de uso, de outro – de uma forma que me parecia estranha. Estranha e inútil, na medida em que a visão de meus preceptores a respeito dessa relação, e da relação entre as categorias da pesquisa básica e da pesquisa aplicada derivada desses objetivos, impedia-os de ver coisas que eu sentia que precisavam ver. Essa sensação tornou-se ainda mais forte quando participei por vários anos de um comitê consultivo diretor da National Science Foundation, ouvindo essa mesma formulação repetida inúmeras vezes. Uma manhã, quando um eminente cientista mais uma vez enunciava essas crenças, surpreendi tanto o conselho com uma visão

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alternativa que minhas idéias foram projetadas na parede com um slide, no início da reunião da tarde. Uma versão atualizada desse slide aparece em algumas das figuras do Capítulo 3. A Fundação aumentou sua cumplicidade publicando uma elaboração do argumento que apresentei a seu diretor.1 Tive ainda a oportunidade de explorar outras partes do problema quando presidi uma comissão do National Research Council (NRC) que estudava o apoio do governo federal à pesquisa sobre problemas sociais.2 Meu interesse no problema foi mantido vivo por meu trabalho, durante alguns anos, como diretor da Woodrow Wilson School, em Princeton. Os esforços de pesquisa dessa escola envolviam de forma tão clara a interação entre entendimento e uso nas ciências sociais que ninguém seria capaz de dirigir uma unidade como essa sem refletir muito profundamente sobre esse relacionamento, e eu aqui utilizo com liberalidade a experiência do Office of Population Research e do Research Program in Development Studies daquela escola.Acabei finalmente acreditando que essas questões mereciam ser exploradas em um trabalho com as dimensões de um livro. Demorou um pouco mais até convencer-me de que deveria escrevê-lo, visto que os primeiros capítulos trabalham com elementos da história da ciência e da história intelectual sobre os quais eu não trazia nenhuma novidade. Mas os pontos que levanto trazem implicações para três questões com as quais estive diretamente envolvido – a elaboração de agendas de pesquisa, a criação de quadros institucionais para a pesquisa e o direcionamento do apoio à pesquisa. Os capítulos finais deste livro traçam as implicações, para cada uma dessas áreas da política científica, de uma visão reformulada do relacionamento entre a ciência básica e a inovação tecnológica. 1 Donald E. Stokes, “Making Sense of the Basic/Applied Distinction: Lessons for Public Policy Pro-

grams”, in Categories of Scientific Research, trabalhos apresentados no seminário de 1979 da National Science Foundation,Washington. 2 O principal relatório desse estudo é National Research Council,The Federal Investment in Knowledge

of Social Problems (National Academy of Sciences, 1978).

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Ninguém deveria escrever um livro assim, ainda menos um livro que corta transversalmente diversas áreas, sem ter uma idéia clara de quem poderia lê-lo. A argumentação que apresento interessará naturalmente aos que trabalham com política científica dentro e fora do governo, e também aos membros da comunidade científica nas universidades, no governo e nos institutos e empresas de pesquisa independentes.Visto que me baseio na experiência de vários países do mundo industrializado, minha argumentação pode também ser de interesse para as comunidades científicas e de políticas desses países. E como faço passar uma luz conhecida através de prismas novos, pode ser que esses argumentos interessem também aos historiadores da ciência e das idéias, ainda que meu conhecimento de tais áreas seja bastante sintético. Os cientistas sociais reconhecerão aqui um trabalho de ciências sociais. De fato, meus colegas da ciência política não terão dificuldade em vê-lo como um trabalho de análise política e institucional. Mas minha argumentação se aplica à pesquisa em todos os campos da ciência – incluindo as ciências físicas e a engenharia, as ciências biológicas e biomédicas, e as ciências sociais –, pois existe uma unidade na ciência com respeito aos aspectos relevantes para essa argumentação. Mas isso não implica, de forma alguma, que as ciências sejam idênticas em todos os aspectos, nem, com certeza, que as ciências sociais estejam tão próximas das ciências naturais quanto, por exemplo, a biologia está próxima da física. Eu não teria conseguido aperfeiçoar minha argumentação sem a ajuda de muitos amigos e colegas. O número dos que me propiciaram seus conhecimentos e incentivos é grande demais para que eu agradeça a todos. Meu reconhecimento especial vai para vários de meus colegas de Princeton, entre eles Clinton Andrews, Peter Eisenberger, Harold Feiveson, Charles Gillispie, Frank von Hippel, Daniel Kammen,Walter Kauzmann, Michael Mahoney, Harold Shapiro, Robert Socolow, Thomas Spiro, Thomas Stix e Norton Wise; este livro é um tributo ao intercâmbio intelectual dentro dessa universidade.

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Dos muitos membros da “faculdade invisível” que de longe me auxiliaram com seu discernimento e incentivo, tenho uma dívida especial com o notável Harvey Brooks, que leu o manuscrito com cuidado e em profundidade. Também merecem menção especial Max Kaase, Richard Nelson, Stephen Nelson, Albert Teich e John Servos. Contei ainda com a ajuda de várias pessoas no governo, entre elas Jennifer Sue Bond, Patricia Garfinkel e Carlos Krytbosch. Carolyn North, minha assistente de pesquisa por dois períodos, reuniu os materiais para este trabalho com inteligência, discernimento e cuidado. Mary Huber preparou o terreno para essa empreitada, e Betsy Shalley-Jensen, Robert Sprinkle, Frank Hoke, Chris Thompson, Michael McGovern e Esra Diker seguraram o bastão com destreza quando este lhes foi passado.Tenho uma grande dívida com cada um deles. Desejo reconhecer minha dívida com quatro organizações de pesquisa que me prestaram assistência valiosa. No outono e inverno de 1992–1993, o Research Institute of International Trade and Industry, de Tóquio, ajudou-me a abrir uma janela sobre a experiência do Japão com a política científica e tecnológica. Na primavera de 1993, a Royal Society de Londres e a Science Policy Research Unit da Universidade de Sussex aprofundaram minha visão da experiência da Grã-Bretanha e da Europa. Sou verdadeiramente muito agradecido a Peter Collins e Mike Ringe, da Royal Society, e a Christopher Freeman, Michael Gibbons, Diana Hicks, Ben Martin, Keith Pavitt, Margaret Sharp e seus colegas em Sussex. Finalmente, Bruce MacLaury, presidente da Brookings Institution, e Thomas Mann, diretor de seu Governmental Studies Program, concederam-me seu infalível apoio enquanto eu perseguia um projeto que explorou livremente todas as áreas da ciência e da tecnologia, os vários milênios da experiência ocidental com a ciência e a filosofia da ciência, e os enfoques contemporâneos sobre a política científica e tecnológica adotados pelos principais países do mundo industrializado. Sou agradecido a eles e a Paul Peterson, antecessor de

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Thomas Mann, e a meus outros colegas na Brookings nesse período. Como a própria missão da Brookings Institution envolve tão claramente ambos os objetivos de entendimento e uso, ela provou ser o local ideal para reduzir minha análise a um texto escrito. Donald E. Stokes Setembro de 1996

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SUMÁRIO

1 ENUNCIANDO O PROBLEMA.................................................

Forjando o paradigma do pós-guerra ................................... Os conceitos de pesquisa básica e de pesquisa aplicada .............................................. As formas estática e dinâmica do paradigma......................... A experiência da ciência...................................................... Ciência e tecnologia............................................................ Quem aufere a colheita tecnológica da ciência? ................... Um paradoxo na história das idéias...................................... 2 O SURGIMENTO DO PARADIGMA MODERNO ........................

O ideal de investigação pura na Antigüidade Clássica ........... O ideal do controle da natureza nos primórdios da ciência moderna ................................... Institucionalizando a separação entre o puro e o aplicado na Europa.................................. Institucionalizando a separação entre o puro e o aplicado nos Estados Unidos.............................

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Reforçando a separação: as conseqüências da Segunda Guerra Mundial .............................................. 78 A resposta ao plano de Bush ................................................ 86 3 TRANSFORMANDO O PARADIGMA .......................................

Primeiras dissensões ............................................................. As categorias nos relatórios oficiais ...................................... Expandindo a imagem dimensional ..................................... Testando a estrutura............................................................. Repensando o paradigma dinâmico ..................................... Implicações para a política ...................................................

97 98 105 113 121 133 139

4 RENOVANDO O PACTO ENTRE CIÊNCIA E GOVERNO ............ 141 O colapso do acordo do pós-guerra..................................... 142 A abertura à renovação ........................................................ 149 Fortalecendo a argumentação em favor da pesquisa pura...... 154 Capturando o benefício tecnológico.................................... 161 Institucionalizando um novo pacto ...................................... 164 5 A CIÊNCIA BÁSICA E A DEMOCRACIA NORTE-AMERICANA .... 171

Reconhecendo a promessa científica e o valor social no nível dos projetos ................................. Vinculando as promessas científicas ao valor social no nível do atacado..................................... Avaliando o modelo dos NIH ............................................... Ligando o julgamento científico à autoridade política..........

174 185 208 214

LISTA DE SIGLAS ....................................................................... 229 ÍNDICE REMISSIVO ................................................................... 231

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1 ENUNCIANDO

O PROBLEMA

As forças liberadas pela Revolução Científica do século XVII e pela Revolução Industrial do século XIX ajudaram a criar o mundo moderno. Mas, conforme o século XX se aproxima de seu fim, as medidas adotadas pelos principais países industrializados para manter sob controle essa parelha de motores da modernização encontram-se em considerável desordem. Meio século atrás, as principais potências científicas, lideradas pelos Estados Unidos, emergiram da Segunda Guerra Mundial com políticas baseadas em uma visão amplamente aceita do papel da ciência básica na inovação tecnológica, e essas políticas apresentaram, ao longo de várias décadas, uma notável estabilidade. Mas essa estrutura do pós-guerra tem sido submetida a intensa pressão durante os últimos anos, e rigorosas revisões das políticas científicas e tecnológicas têm sido encetadas nos Estados Unidos e em outros países industrializados, como a Grã-Bretanha, a França, a Alemanha e o Japão. Nos Estados Unidos, a razão mais citada para tal mudança tem sido o fim da guerra fria. Embora tal razão se aplique de maneira específica aos Estados Unidos, era inevitável que a liberação dos bilhões

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de dólares empatados em pesquisa e desenvolvimento por conta do confronto com a União Soviética fosse dar origem a questionamentos sobre os investimentos federais em ciência e tecnologia. O pacto entre a ciência e o governo selado nos primórdios da guerra fria naufragou, e as comunidades acadêmica e de políticas científicas vêm procurando ativamente os termos de um novo acordo. Ainda assim, seria um erro, mesmo nos Estados Unidos, atribuir o desconcerto atual apenas ao desaparecimento da ameaça soviética.1 Em um nível mais profundo, o ajuste do pós-guerra foi solapado pela fragilidade das crenças da época com respeito às relações entre a ciência e a tecnologia. Bem antes do final da guerra fria, tais limitações haviam inspirado um considerável ceticismo com relação às políticas vigentes, as quais de forma alguma atravessaram sem questionamentos as décadas de ameaça soviética. Precisamos de uma visão mais realista do relacionamento entre a ciência básica e a inovação tecnológica para podermos estruturar políticas científicas e tecnológicas para um novo século. Antes que a argumentação dos próximos capítulos se tenha desenvolvido completamente, a busca de um novo entendimento irá suscitar as questões mais profundas acerca do papel da ciência básica em um sistema político democrático.

FORJANDO

O PARADIGMA DO PÓS-GUERRA

No final de 1944, um ano antes do término da Segunda Guerra Mundial, Franklin D. Roosevelt pediu a Vannevar Bush, seu diretor do Office of Scientific Research and Development (OSRD), criado durante a guerra, que tentasse prever o papel da ciência em tempo de paz. Mas, antes que Bush tivesse podido apresentar seu relatório, Roosevelt estava morto e o país ultimando o horrível arremate com 1 Vejam-se os capítulos 2 e 4 para uma descrição dos ataques contra o consenso do pós-guerra duran-

te a Guerra do Vietnã e no período subseqüente.

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que coroaria seu sucesso científico na guerra, explodindo um artefato atômico no deserto do Novo México. Contudo, o relatório de Bush, Science, the Endless Frontier, realizou o que Roosevelt havia pedido, estabelecendo uma visão de como os Estados Unidos poderiam manter seu investimento em pesquisa científica quando a guerra tivesse acabado. Meia década mais tarde, a visão da ciência básica e de sua relação com a inovação tecnológica apresentada por Bush tornou-se o alicerce da política científica nacional para as décadas posteriores à guerra.2 As razões para a profunda influência desse relatório estão menos em seu detalhado projeto de política científica do que no seu esquema conceitual para pensar a ciência e a tecnologia, visto que Bush e seus colegas procuraram estender o apoio governamental à ciência básica até os tempos de paz e, ao mesmo tempo, reduzir drasticamente o controle do governo sobre a realização das pesquisas. Na verdade, essa estrutura conceitual veio a ter uma importância maior do que Bush havia pretendido, pois o seu plano de uma National Research Foundation tão ampla quanto o Office of Scientific Research da época da guerra soçobrou nos anos subseqüentes ao conflito, levando a comunidade científica a recorrer às premissas conceituais de Bush para poder atingir seus objetivos. Num estilo que lembra Francis Bacon, Bush resumiu suas premissas em duas máximas, cada uma delas modelada na forma de uma afirmação a respeito da pesquisa básica – um termo que ele criou. A primeira era de que “a pesquisa básica é realizada sem se pensar em fins práticos”. Embora isso soe como uma definição, e freqüentemente tenha sido assim considerada,3 Bush ainda acrescentava que a característica definidora da pesquisa básica reside na sua contribuição 2 Vannevar Bush, Science, The Endless Frontier: A Report to the President on a Program for Postwar

Scientific Research (Washington: National Science Foundation, 1990). 3 Veja-se, por exemplo, o Livro Branco do governo britânico, Realising Our Potential: A Strategy for

Science, Engineering and Technology, Cm 2250 (London: Her Majesty’s Stationery Office, 1993, p.15), o qual declara que “pesquisa básica é, por definição, a pesquisa sem um fim específico em vista”.

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“ao conhecimento em geral e ao entendimento da natureza e de suas leis”.4 Seu primeiro cânone sobre a pesquisa básica ainda exprimia a crença de que a criatividade da ciência básica seria perdida se fosse constrangida por um pensamento prematuro sobre sua utilidade prática. Bush via uma tensão inerente entre o entendimento e o uso como metas da pesquisa e, por extensão, uma separação natural entre as categorias da pesquisa básica e da pesquisa aplicada, derivadas de tais metas. Com efeito, ele chegou até a endossar uma espécie de Lei de Gresham da pesquisa, segundo a qual “a pesquisa aplicada invariavelmente expulsa a pesquisa pura” se as duas forem misturadas.5 Essa tensão é bem ilustrada pela idéia familiar de um espectro entre pesquisa básica e aplicada, do gráfico unidimensional que acabou por representar a versão estática do paradigma do pós-guerra; a pesquisa não pode estar mais próxima de um dos extremos desse contínuo sem estar mais distante do outro. Enquanto a primeira máxima de Bush fundamentou a versão estática do paradigma do pós-guerra, a segunda lançou as bases para a versão dinâmica.“A pesquisa básica,” escreveu ele,“é precursora do progresso tecnológico.”6 Com isso, expressou a crença de que, se a pesquisa básica for apropriadamente isolada de curto-circuitos decorrentes de considerações prematuras sobre sua utilidade, ela provará ser uma remota, porém poderosa, geradora de progresso tecnológico, à medida que a pesquisa aplicada e o desenvolvimento forem convertendo as descobertas da ciência básica em inovações tecnológicas capazes de satisfazer toda a gama de necessidades da sociedade: econômicas, de defesa, de saúde e outras. A imagem, igualmente unidimensional, que veio a representar essa versão dinâmica da visão do pós-guerra é a do conhecido “modelo linear,” com a pesquisa básica levando à pesquisa aplicada e ao desenvolvimento, e em seguida 4 Bush, Science, op. cit., p.18. 5 Ibidem, p.83. Grifo no original. 6 Ibidem, p.19.

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à produção ou a operações, segundo a inovação seja de produto ou de processo. A visão de Bush do relacionamento entre a ciência fundamental e a inovação tecnológica continha um elemento adicional, estreitamente ligado a seu segundo cânone da pesquisa básica – o de que aqueles que investirem em ciência básica obterão seu retorno em tecnologia à medida que os avanços da ciência forem convertidos em inovações tecnológicas pelos processos de transferência de tecnologia. Ele exprimiu essa crença de maneira tortuosa, dizendo que “uma nação que depende de outras para obter seu conhecimento científico básico novo será lenta em seu progresso industrial e fraca em sua situação competitiva no comércio mundial”.7 A uma distância de cinco décadas, resta-nos somente admirar o feito de Bush. Ele escolheu para seus dois cânones idéias que, como veremos, encontram uma profunda ressonância na tradição da ciência e da filosofia da ciência ocidentais, uma delas derivada da invenção da investigação científica na Antigüidade Clássica, e a outra remontando às crenças sobre a ciência formuladas por Francis Bacon e outros no início da Europa Moderna. Bush integrou essas idéias em um plano capaz de promover os objetivos do país ao mesmo tempo que permitia aos cientistas levar a pesquisa básica até onde quer que ela os conduzisse. E quando esse plano foi incorporado à política, nas décadas do pós-guerra, ele realmente possibilitou ao país promover seus objetivos, enquanto muitos de seus mais capazes e bem treinados cientistas levavam a pesquisa básica até onde quer que ela os conduzisse, às expensas do Estado. Da mesma forma, podemos apenas admirar quão bem Bush soube escolher o momento adequado para converter a energia cinética do êxito da ciência no tempo da guerra na energia potencial do continuado apoio do governo à ciência em tempos de paz. O mundo ficou estarrecido diante do poder da ciência em trazer a guerra no 7 Ibidem, p.19. Grifo no original.

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Pacífico a seu espantoso desfecho. A explosão da bomba atômica criou uma notável aceitação, na consciência nacional, de um relatório que mapeava o futuro papel da ciência na vida do país. Em vista disso, os cânones de Bush causaram uma profunda impressão e forneceram o paradigma dominante para a compreensão da ciência e de sua relação com a tecnologia durante todo o resto do século XX. Tais idéias ainda podem ser encontradas nas comunidades científica e de políticas científicas, nos meios de comunicação e entre o público bem informado. E a liderança norte-americana na ciência do pós-guerra propiciou-lhes uma ampla circulação na comunidade internacional. Mas a influência desse paradigma teve um custo, na medida em que ele tanto oculta quanto revela. O cânone de Bush sobre o objetivo essencial da pesquisa básica fornece uma visão demasiado restrita dos motivos que inspiram essa atividade. E seu cânone a respeito da importância da pesquisa básica para os avanços tecnológicos também dá uma visão muito estreita das reais fontes da inovação tecnológica. Como conseqüência, esse paradigma tornou mais difícil solucionar uma série de questões de política que requerem uma clara visão dos objetivos da pesquisa científica e da relação entre as descobertas científicas e a melhoria tecnológica. Essas limitações são mais problemáticas hoje do que o foram na época do pós-guerra, durante a qual a visão de Bush pareceu validada pela preeminência dos Estados Unidos em ciência e tecnologia. Vários países, incluindo os Estados Unidos, viam seus investimentos em ciência como um meio de se manterem competitivos na economia globalizada. Esse esquema suscita novas questões sobre se um país pode ganhar alguma vantagem competitiva transformando em novas tecnologias os frutos de sua pesquisa básica, ou se tais frutos se tornam parte de um fundo comum de conhecimento científico passível de ser explorado também por seus rivais. Na verdade, o contexto mutável da política científica e tecnológica tem colocado sob intensa pressão a idéia da pesquisa básica como um remoto gerador de progresso técnico. Embora uma crítica geral do paradigma predominante

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