TRADUÇÃO
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UNIVERSIDADE ESTADUAL
DE
CAMPINAS
Reitor FERNANDO FERREIRA COSTA Coordenador Geral da Universidade EDGAR SALVADORI DE DECCA
Conselho Editorial Presidente PAULO FRANCHETTI ALCIR PÉCORA – ARLEY RAMOS MORENO EDUARDO DELGADO ASSAD – JOSÉ A. R. GONTIJO JOSÉ ROBERTO ZAN – MARCELO KNOBEL SEDI HIRANO – YARO BURIAN JUNIOR
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ORGANIZAÇÃO
PAULO OTTONI
TRADUÇÃO A PRÁTICA DA DIFERENÇA 2 a EDIÇÃO REVISTA
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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELO SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNICAMP DIRETORIA DE TRATAMENTO DA INFORMAÇÃO
T675
Tradução: a prática da diferença / organizador: Paulo Ottoni. – 2a ed. rev. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2005. 1. Tradução e interpretação. 2. Psicanálise. I. Ottoni, Paulo. II. Título. CDD 418.02 150.195
ISBN 85-268-0720-X
Índices para catálogo sistemático: 1. Tradução e interpretação 2. Psicanálise
418.02 150.195
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Nunca se escreve nem na própria língua nem numa língua estrangeira. JACQUES DERRIDA, Sobreviver
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SUMÁRIO
PREFÁCIO
As tradutoras ...........................................................................................
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INTRODUÇÃO
A PRÁTICA DA DIFERENÇA
Paulo Ottoni .............................................................................................
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CARTA A UM AMIGO JAPONÊS
Jacques Derrida .............................................................................................
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A FIDELIDADE CONSIDERADA FILOSOFICAMENTE
Barbara Johnson ............................................................................................
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GÊNERO E A METAFÓRICA DA TRADUÇÃO
Lori Chamberlain ...........................................................................................
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A HISTÓRIA DE UM ERRO DE TRADUÇÃO E O MOVIMENTO PSICANALÍTICO
Alan Bass .......................................................................................................
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FREUD : N . DO T . OU AFETOS E FANTASMAS NOS TRADUTORES DE FREUD
Ginette Michaud ..............................................................................................
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VERNEINUNG , VERWERFUNG , AUSSTOSSUNG : UMA QUESTÃO DE INTERPRETAÇÃO EM FREUD
Martin Thom ................................................................................................... 125 TEOLOGIA DA TRADUÇÃO
Jacques Derrida .............................................................................................. 155
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PREFÁCIO
As tradutoras
Este volume se apresenta como uma reunião de textos sobre tradução. Cada um deles articula a tradução, à sua maneira, com diferentes tendências do pensamento contemporâneo, como a desconstrução, a psicanálise e a questão do gênero. Estes textos estiveram e estão presentes em nosso próprio percurso acadêmico, auxiliando nossas reflexões como alunas do programa de pós-graduação da UNICAMP, na área de tradução. Daí o interesse em traduzi-los, possibilitando que mais pessoas interessadas no assunto possam ter acesso a eles. Neste livro, numa atitude deslocada em relação à típica posição ocupada pelo tradutor, não pediremos desculpas por possíveis “perdas” ou “infidelidades” inescapáveis, mas apenas convidaremos os leitores a uma reflexão que desloque também a tradução de seu lugar de atividade de segunda linha, de arremedo, de simulacro. Agradecemos ao professor Paulo Roberto Ottoni pelo estímulo e oportunidade.
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INTRODUÇÃO
A PRÁTICA DA DIFERENÇA
Paulo Ottoni
Procurar uma definição de tradução que possa ser articulada de maneira ampla, permitindo aproximar os teóricos reunidos neste livro, é uma tarefa complexa, uma vez que suas reflexões articulam diferentes concepções de tradução. Como dar conta da ligação entre textos que discutem a própria questão da tradução? Como encontrar uma maneira de aproximá-los senão sobre o fundo de suas próprias diferenças? Como estratégia, pretendo destacar, em cada um deles, argumentos que possam servir para tecer uma ligação das concepções de tradução desta coletânea com a dimensão desconstrutivista da linguagem, mais especificamente com Jacques Derrida. Quero mostrar que, ao praticar a diferença entre as línguas, a tradução inevitavelmente evidencia também as suas semelhanças. É entre diferença e semelhança que a tradução tem o papel de deflagrar a língua. Na “Carta a um amigo japonês”, Derrida se propõe a explicar, a pedido desse amigo, quais as significações ou conotações da palavra desconstrução, para que ele possa traduzi-la para o japonês. Nessa explicação, o autor aproxima as questões da tradução e as da desconstrução ao afirmar que é preciso tentar ao menos uma determinação negativa das significações ou conotações que devem ser evitadas se possível. Então, a questão seria: o que a desconstrução não é? ou, melhor dizendo, o que deveria não ser? Sublinho essas palavras (“possível” e “deveria”). Pois, se podemos antecipar as dificuldades de tradução (e a questão da desconstrução é também de um lado a outro a questão da tradução e da língua dos conceitos, do corpus conceitual da metafísica dita “ocidental”), não se deveria começar por acreditar, o que seria
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ingênuo, que a palavra “desconstrução” é adequada, em francês, a alguma significação clara e unívoca.
Partindo dessa afirmação, não é mais possível desvincular tradução e desconstrução. E é justamente um dos objetivos desta coletânea: apresentar as diferentes reflexões que a tradução promove, redimensionando profundamente a questão da linguagem na produção de significados. Tradução e desconstrução caminham juntas e se (con)fundem em alguns momentos para revelar o mistério da sig nificação, e, se levarmos ao extremo, podemos fazer de uma o sinônimo da outra. A maneira como Derrida responde ao apelo de seu amigo japonês, apontando a impossibilidade de traduzir e traduzindo a palavra desconstrução, evidencia como uma palavra é substituível por outra numa mesma língua ou entre uma língua e outra, numa cadeia de substituições evidenciando e praticando a diferença. Ao amigo japonês, ele mostra como o tradutor inevitavelmente se envolve e se compromete com a língua que traduz. Alguns conselhos o autor pode dar, mas não é ele o tradutor. A tradução está na língua, neste caso, no texto em francês e no texto em japonês e é o tradutor o responsável por “mostrar a língua”. Derrida afirma: A possibilidade para (a) “desconstrução” seria que uma outra palavra (a mesma e uma outra) se encontrasse ou se inventasse em japonês para dizer a mesma coisa (a mesma e uma outra), para falar de desconstrução e para conduzila para um outro lugar, escrevê-la e transcrevê-la.
É na dimensão desconstrutivista da tradução que essa “carta” e os outros textos desta coletânea estão comprometidos com a produção e a transformação de significados. Em “A fidelidade considerada filosoficamente”, Barbara Johnson abre uma via fundamental para refletir sobre o papel do tradutor. Ele não é um “bígamo fiel com lealdade dividida entre uma língua nativa e uma estrangeira”, mas está dividido entre duas paixões, entre duas línguas. O tradutor não consegue amar uma só das línguas envolvidas, não consegue escolher, daí a importância da noção de fidelidade. Convocando o testemunho de Derrida, Johnson mostra como a tradução é, ao mesmo tempo, impossível e necessária, fiel e infiel, visto que é 12
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INTRODUÇÃO
um envolvimento com a língua no interior da qual o tradutor se perde de paixão. Qual delas ele trai? Por qual delas está apaixonado? Não importa explicitar ou procurar explicar a paixão ou a traição; o importante é que, sem elas, não há tradução. A questão da fidelidade é “filosófica”, mas não se trata aqui da filosofia tradicional, que tem como certa uma verdade universal e superior, que transcende todas as línguas. Johnson afirma que a rearticulação que Derrida faz da filosofia e da tradução obviamente não tem por intuito expulsar por completo o significado. Mas seu conceito de textualidade desloca a própria noção de como um texto significa. O que acontece em cada texto excede muito o que pode ser reduzido ao “pensamento” de alguém [...]. Em geral, é achando os pontos de pressão previamente perdidos numa tradução que Derrida rearticula a filosofia consigo mesma.
Assim, a autora explora a questão da intraduzibilidade a partir da língua, ou seja, não só na transformação de uma língua para outra há a problemática da significação, mas também no interior de uma mesma língua, qualquer texto original é uma tradução. Segundo ela, “o exemplo mais notável é o termo platônico phármakon, que pode ao mesmo tempo significar ‘veneno’ e ‘antídoto’, e assim torna problemática qualquer frase em que ocorre”. O entrelaçamento das línguas revela que a questão da fidelidade ao texto passa a ser agora uma questão filosófica. Johnson confirma, deste modo, que toda essa pai xão pela linguagem proporciona um redimensionamento das re fle xões sobre a tradução a partir da filosofia e da desconstrução. Lori Chamberlain discute também a questão da fidelidade como uma das preocupações centrais do seu texto e chama a atenção para o fato de que o significado da palavra “fidelidade”, no contexto de tradução, muda de acordo com o propósito a que a tradução deve servir num contexto estético e cultural mais amplo. Pela vertente do gênero, a fidelidade algumas vezes define a relação da tradução (feminino) com o original (masculino), destituído e substituído pelo autor (masculino) da tradução.
No seu texto “Gênero e a metafórica da tradução”, a autora mostra como as metáforas da tradução e a questão do gênero compõem e ex13
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pressam uma visão da tradução associada ao sexo feminino; aquele que não é criativo, já que não cria ao escrever, somente traduz. Chamberlain tira dessa postura uma série de conseqüências, que poderíamos chamar de éticas, para o desenvolvimento da tradução nos meios acadêmicos, envolvendo questões relacionadas aos direitos autorais, curriculares e publicações. Ela analisa uma série de metáforas pelas quais a tradução se constitui e é constituída por elas. A metafórica que envolve a tradução, diz a autora, serve para eternizar uma posição que se, por um lado, dá uma explicação histórica, por outro, deixa imóvel todo um processo de mudança, impedindo uma “igualdade” de poder entre os dois sexos, deixando a tradução prisioneira e numa posição inferior. Esse círculo vicioso deve, segundo a autora, ser quebrado e não mantido, como tem ocorrido na grande maioria das reflexões sobre a tradução. O fato de se associar e se definir a tradução como um problema de fidelidade à “língua-mãe” já aparece, segundo Chamberlain, em Schleiermacher, numa exaltação às be le zas da língua materna, “porque a língua-mãe é concebida como natural, qualquer desen tendi mento — qualquer infidelidade a ela — será tido como artificial, impuro, monstruoso e imoral”. Pela via do gênero, a fidelidade evidencia a relação do feminino (a tradução) com o masculi no (o original) então a língua (feminina) deve ser protegida contra a difamação. Chamberlain nos traz à cena Derrida afirmando que, ao “traçar muitos dos seus termos a partir do léxico da diferença sexual — disseminação, invaginação, hímen” —, esse autor, “expõe o gênero como um esboço conceitual para definir mímesis e fidelidade, definições cen trais na concepção ‘clássica’ da tradução”. Apropriadas de outra maneira, tais metáforas podem ainda ser redimensionadas a partir de uma nova concepção de tradução. Mantendo o femi nino, Derrida inver te este papel e afirma, segundo ela, o vínculo da tradução com um hímem, sinal tanto da virgindade como da consumação do casamento — um vínculo duplo: double bind —, um texto tanto requer como proíbe a tradução. Este texto e todos os outros desta coletânea mostram e discutem, cada um a sua maneira, como a tradução ao deflagrar a língua manifesta o double bind, tornando a tradução necessária e impossível. 14
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INTRODUÇÃO
Em “A história de um erro de tradução e o movimento psicanalítico”, Alan Bass analisa um “erro de tradução” que encena o double bind — traduzir e não traduzir Freud — e o modo como influenciou o destino do movimento psicanalítico de maneira irreversível. Através da explicitação das diferenças entre milhafre, abutre e águia, Bass reflete sobre a participação da tradução no questionamento da psicanálise a partir de Freud, ou melhor, como a tradução produziu um questionamento singular que interferiu na propagação da psicanálise. A questão da tradução, a partir de Derrida, aparece na seguinte preocupação de Bass: “Como psicanalista e tradutor, fre qüen te mente me pergunto em que medida as observações de Derrida sobre a tradução como transformação poderiam afetar as comparações de Freud entre a psicanálise e a tradução”. O autor levanta cinco questões que vão permear toda sua reflexão ao procurar respondê-las ao longo do texto. São elas: Não visam as traduções psicanalíticas (interpretações) à transformação? Não sabe todo analista que nunca faz uma tradução pura? Que, ao utilizar o inconsciente como “instrumento de significação”, não apenas não deixa o material que traduz “virgem e intocado”, como também não é deixado virgem e intocado por ele? Que traduzir também transforma o analista? O que é, então, um “erro de tradução” em psicanálise?
As concepções de tradução de Freud e Derrida são as diretrizes principais para a reflexão de Bass, buscando responder às questões le vantadas, através de uma análise bastante minuciosa e criteriosa de um “erro de tradução”, um erro aparentemente banal, não fosse ele um erro de Freud. Freud não percebe que nas traduções em alemão que utilizou das anotações de Leonardo da Vinci, o termo italiano nibbio (mi lhafre) foi traduzido incor reta mente pela palavra alemã Geier (abutre). Por que Freud teria cometido tal equívoco? No início, Bass busca as “origens” desse erro, mas, ao longo do texto, constatamos que esse erro já existiu desde sempre. Não há uma explicação, porque o erro não foi percebido de imediato. Freud quer desvendar Leonardo e este erro é o lugar desse encontro. Por meio da análise dos escritos e do dese nho de Leonardo, Freud vai construir a questão da sexualidade de Leo nardo. Através dessa análise, Freud deseja e comete o seu erro. A discussão de Bass se funde com a história das relações de 15
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Freud e Leonardo da Vinci. Numa dimensão desconstrutivista, Bass está comprometido, juntamente com Derrida, com a questão da relação entre sig nificante e significado. É a tradução que pratica essa diferença, mas se tal diferença nunca é pura, segundo Derrida, a tradução também não o é. Bass explora esse postulado de maneira magistral, levando suas reflexões às últimas conse qüências. Ginette Michaud, em “Freud: N. do T. ou afetos e fantasmas nos tradutores de Freud”, vai flagrar o tradutor num empreendimento ambicioso: traduzir Freud. As notas do tradutor (N. do T.) são vistas como uma maneira de intervenção do tradutor através de uma falha, derrota, ou resistência na qual aflora, mais claramente que em outra parte, a sua angústia. Angústia da busca da fidelidade, da identificação com o mestre. Essa postura confirma sua posição diante da tradução do texto sagrado: Como dizia Jacques Derrida, a propósito de todo texto sagrado — texto que é sagrado quando nele se manifesta o particular, o intraduzível — um texto “só sobrevive se é, ao mesmo tempo, traduzível e intraduzível [...]. Totalmente traduzível, ele desaparece como texto, como escritura, como corpo de língua. Totalmente intraduzível, mesmo no interior do que acreditamos ser uma língua, ele morre logo”.
A tarefa de traduzir Freud desencadeia no tradutor uma série de questionamentos, talvez porque, hoje, a relação psicanálise–tradução constitui um dos lugares mais densos de reflexões sobre a tradução. Michaud tem como epígrafe de seu texto uma afirmação de Rudolph Pannwitz (citado por Walter Benjamin em A tarefa do tradutor) sobre a relação entre as línguas envolvidas numa tradução. O tradutor, diz Pannwitz, deve deixar que sua língua seja afetada, e mesmo transformada, pela língua estrangeira. Ora, podemos nos perguntar então: é a lín gua materna ou a estrangeira que se transforma? Entre as línguas envolvidas na tradução o que ocorre é uma es pécie de tradução recíproca. Considerando, como o faz Derrida, na mesa-redonda sobre a tradução em L’oreille de l’autre, que há não só diferenças e semelhanças entre as línguas, mas que há, numa só língua, diferentes siste mas lin güísticos. Não há uma língua que deva ser privile giada — a es trangeira ou a materna —, há língua; elas não mais se constituem como pólos opostos e antagônicos, mas sim complementares. 16
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INTRODUÇÃO
Só há tradução por que há língua. Relembrando Johnson, perguntamo-nos: que língua o tradutor trai ou por qual delas se perde de paixão? Mi chaud questio na o modo como o alemão de Freud, sua língua ma terna, é discutido; já na busca de uma fidelidade incondicional, os tradutores procuram identificar o que Freud disse verdadeira mente em alemão, para ser dito verdadeiramente em outra língua, no caso o francês, como quer Laplanche. A autora discute e critica então essa posição que vê nas N. do T. um lugar de redenção, já que é impossível traduzir do alemão o que Freud quis exatamente dizer. Em “Verneinung, Verwerfung, Ausstossung: uma questão de interpretação em Freud”, Martin Thom analisa esses três termos do alemão e, a partir de uma abordagem psicanalítica, discute efeitos da tradução desses termos no interior da própria construção da psicanálise. O autor recorre a Jacques Lacan para formular sua argumentação e confronta a postura freudiana e a do próprio Lacan que estão subjacentes às concepções desses conceitos no interior da psicanálise. Através das diferenças e semelhanças entre eles, constrói seu argumento para explicar a existência de fissuras que, presentes na trama desses três conceitos, podem explicar as traduções diferentes e influenciar o funcionamento da psicanálise. Ao articular o conceito de fissura, Thom abre uma brecha para pensarmos a tradução como algo não-fixo que a própria psicanálise, que ele analisa, tem dificuldades de assumir. Para o autor, é “evidente que o artigo de Freud, ‘Die Verneinung’, foi traduzido de várias formas distintas, não obs tante, é válido examinar os termos originais em alemão para ver o que se perdeu nas traduções inglesas e francesas”. Há por detrás des sa afirmação a preocupação com certa concepção de tradução. Na passagem do alemão para o inglês ou para o francês, a tradução produziu uma perda; essas línguas não deram conta de produzir, ou de reproduzir, os conceitos originais de Freud. Thom procura uma explicação para a “confusão” criada em torno desses termos, isto é, nessa “confusão conceitual”, quer mostrar que há inadequações e que através de Lacan se pode ir além de questionar o termo Verneinung [dénégation] e dar-lhe mais consistência, podendo servir de parâmetro para avaliar outras traduções. Thom discute esses termos e a importância deles para o funcionamento da psicaná17
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lise e propõe uma explicação para essas traduções, diferentes e conflitantes, através da fissura. Segundo ele, são as fissuras dentro da teoria psicanalítica que permitem uma explicação materialista, primeiro das condições históricas que preparam o caminho para a situação de transferência e, segundo, das condições históricas que produzem outros tipos de rituais e práticas terapêuticas.
Thom tem uma tarefa difícil, já que esbarra numa abordagem psicanalítica de tradução em parte diferente da dimensão desconstrutivista, mas influenciada por ela. É o próprio funcionamento da psicanálise que dá as condições, neste caso, para se fazer uma aproximação entre tradução e desconstrução. No último texto desta coletânea, “Teologia da tradução”, Derrida traz uma reflexão que diz respeito a todos os textos anteriores, na medida em que vai além da questão das línguas. Mas é através dessa questão que Derrida pode afirmar que a problemática da tradução surge na Europa, a partir da Bildung que vai dominar o pensamento sobre a tradução na Alemanha clássica. Podemos ler esse texto seguindo o próprio caminho proposto por Derrida, o de ver a tradução arquitetada e montada na e pela instituição uni versitária. Só assim podemos aproximar tradução e filosofia. Para a “formação” filosófica, para a Bildung como ensino, cultura e aprendizagem da filosofia, o autor afirma: É preciso pensar essa “formação” (Bildung) a partir da In-Eins-Bildung, da essência interna do absoluto, da uni-formação do uni-versal e do particular. Também é preciso pensar a universidade na lógica da uni-formação, que é também uma poética da tradução.
Derrida dá à tradução uma dimensão diferente daquela proposta na sua “Carta a um amigo japonês”. Aqui a universidade tem o papel de produzir um saber que a tradução garante que nunca será absoluto. Entretanto, comenta que não é isso o que ocorre, uma vez que a “comunidade filosófica, como a comunidade universitária [...], tende a participar desse saber originário que é um e do qual cada tipo de saber participa como membro de uma to talidade viva”. Para Derrida, a tradução enquanto acontecimento não partilha desse 18
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INTRODUÇÃO
sa ber originário; é partilhada com o humano que se manifesta no sentido. Afinal, a prática da diferença só se efetiva na tradução se pensarmos não só na multiplicidade das línguas, mas também no que essa multiplicidade encena: a tradução recíproca na produção e transformação infinita de significados. Universidade Estadual de Campinas Dezembro de 1996
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