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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Reitor JOSÉ TADEU JORGE Coordenador Geral da Universidade FERNANDO FERREIRA COSTA
Conselho Editorial Presidente PAULO FRANCHETTI ALCIR PÉCORA – ARLEY RAMOS MORENO JOSÉ A. R. GONTIJO – JOSÉ ROBERTO ZAN LUIS FERNANDO CERIBELLI MADI – MARCELO KNOBEL SEDI HIRANO – WILSON CANO
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Contos
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ficha catalográfica elaborada pela biblioteca centr al da unicamp
C768
Contos, Unicamp ano 40. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007. 1. Ensaios brasileiros. 2. Prosa brasileira. 3. Literatura brasileira. I. Título. CDD B869.45 B869
ISBN 978-85-268-0781-5 Índices para catálogo sistemático: 1. Ensaios brasileiros 2. Prosa brasileira 3. Literatura brasileira
B869.45 B869.45 B869
Copyright © by Unicamp Copyright © 2007 by Editora da Unicamp Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em sistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.
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Sumário
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Prefácio E G
Fernando Pessoa, meu caro Watson... M L
O jogo de caxangá J. T
Moacir encostado na parede C C
A criada A T F
Cacholetas M C
Cama da boa esperança D A C
Centenário de nascimento de um escritor desconhecido J. A. P. A
Como um poeta L M M
Desarranco R C G
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Destino J M S
Dois fragmentos exemplares de uma tópica satânica J. M. B
Eco da Madrugada J V R
Embustation ou O homem que não sabia contar histórias W C
Fim de tarde W O
Foie gras em preto-e-branco R R N
Geometria analítica plana M A
Insônia blues M S
Intervalo D A
João Ninguém A D F
Madrugada de abril R A F
Messe N V
O abrigo A L R
O concurso C C
O filósofo L V
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O funil J B N
O menino e a virgem H B.
O pássaro mágico M T
Os corvos E M
O suicídio de um obsessivo-compulsivo C A M
O veleiro na parede R F
“Porque hoje é sábado” M J S
Porró do Beco das Almas B T
Romæ similiter romanibus L F. M. L
Rosário de Maria — O Tadinho G A S — B, P
Sabor artificial N O
Separação C A S
Tudo W D G
Tudo tem seu tempo G B
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Prefácio
V- G R, poderia dizer que o escritor transita sempre pela terceira margem de tudo. É desse lugar móvel e indefinido que ele precisa encontrar o inencontrável, remar contra a corrente, voltar sempre ao mesmo ponto, fugindo insistentemente da simples repetição. O contista é um desses personagens. E o conto sempre teve na literatura em geral — e na brasileira, em particular — enorme relevância. Todos somos capazes de nomear um bom número de contistas importantes que já nos envolveram com sua escrita e suas histórias. Muitos são aqueles que tiveram na leitura de contos fundamentais sua iniciação na literatura. Na história brasileira recente, deparamo-nos com alguns desses importantes contistas. Eles dão continuidade a uma tradição reconhecidamente rica, que inclui autores do porte de Machado de Assis, Lima Barreto, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Clarice Lispector. Foi dentro desse espírito que a U, por intermédio da comissão encarregada da comemoração dos anos da Universidade, planejou a realização de um concurso de contos aberto aos interessados e envolvidos nas formas ficcionais da literatura. O concurso de contos, cujo resultado aparece pela publicação de Contos: U ano , foi também promovido com o intuito de propiciar novas condições para novos contistas, e não deixa de ter a pretensão de fazer chegar ao público escritores que possam vir a dar continuidade à rica história do conto brasileiro.
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Este livro inclui os três contos premiados (o lugar: “Fernando Pessoa, meu caro Watson...”, de Marisa Lajolo; o lugar: “O jogo de caxangá”, de J. Toledo; e o lugar: “Moacir encostado na parede”, de Cássio Corrêa) e mais contos escolhidos pelo júri do concurso. Com isso se espera que os leitores possam ter uma amostra bastante ampla da qualidade dos textos inscritos. Por outro lado, com esta publicação, a U e sua Editora esperam atestar a necessidade de repetir a experiência. No conjunto daqueles que participaram desta primeira edição do concurso estão pessoas de diversas regiões do Brasil e isso pode ser visto no resultado que aqui se registra. Esta obra inclui textos de autores de oito estados do Brasil (Pará, Tocantins, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul). O leitor poderá percorrer estas páginas certo de que encontrará o esforço bem-sucedido da busca daquilo que é passível de se tornar história, que estava ali à espera de um olhar cuidadoso e específico capaz de dar sentido ao que poderia parecer mera paisagem.
Eduardo Guimarães Setembro de
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Fernando Pessoa, meu caro Watson... M L
O texto que segue constitui anexo da tese apresentada por Alexander Search à University of Cape Town com o título The construction of autorship in th century Portugal. Uma nota de rodapé informa que o texto foi encontrado no espólio do Barão de Teive, arquivado na Fundação Gulbenkian (proc. .: v), e que portava o selo Reservado.
... pois, meu rico senhor, sou, sim, Fátima Soares Caeiro, sua criada para o servir. Meu marido era o finado Alberto, de que me ficou o sobrenome Caeiro, que tomei quando o senhor vigário nos casou num meio-dia de fim de primavera. Meu Alberto morreu em . Morreu quebrando pedras nas terras do Barão de Teive para calçar a estrada do Solar. Sei, meu senhor, hoje me dizem que a estrada não é mais a mesma, nem mais bela, nem mais feia. Mas creio que por debaixo dela há ainda de haver as pedras que meu Alberto quebrava com marreta. Quebrava pedras e, de tanto quebrá-las, quebrou-se-lhe algo por dentro. Toldou-se-lhe o juízo para sempre. Ficava a repetir que era guardador de rebanhos sem rebanhos. Que a trovoada caía pelas encostas do céu como um pedregulho enorme e que não acreditava em Deus porque nunca O tinha visto. Este ofício de quebrar pedras foi a sua desgraça, meu senhor. Vivíamos na herdade do Senhor Barão, meu Alberto lidando nas cocheiras e arando a terra e eu, quando calhava, cuidando das videiras e da vindima. Era de ver-se a beleza da festa depois da colheita, antes de pisarem as uvas. Vinham
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elas num carro de bois a chiar, manhãzinha cedo pela estrada. Mas o menino do Senhor Barão veio com a idéia de calçar a estrada. Ele veio do estrangeiro, não sei bem de onde, sei apenas que não foi nem das colônias nem do Brasil. Desde miúdo vivia agarrado aos livros e noites havia — Cremilda, sua antiga ama o contava — que lia tanto, que pela manhã ainda lhe ardiam os olhos e tinham de fazer-lhe compressas de camomila. Veio cheio de novidades, e ficávamos todos aparvalhados ouvindo-o contar que havia casas empilhadas e carroças que se moviam a si mesmas. Automóveis, chamava-as ele. E dizia que comprara um lá no estrangeiro, que havia de trazê-lo para a terra do pai e que não havia o automóvel de transitar pela lama e pela poeira da estrada, que a velha estrada prestava apenas para passagem de animal que fica lembrada no chão. Como eu lhe dizia, meu senhor, meu Alberto não foi cavouqueiro a vida inteira, não senhor, que não foi pra isso que o trouxeram lá da terra dele. Como já lhe disse, eu cuidava das vinhas do Senhor Barão, e muito boas eram elas. E pela fama delas vinham amigos do filho do Senhor Barão. Lembro-me de dois deles: o Senhor Álvaro e outro rapaz, o Senhor Fernando. Moços distintos que ficavam a dar trela a meu Alberto. Mas isso foi depois... misturo os tempos nesta cabeça minha, meu senhor... parece que um vento muito leve passa e me desmancha as idéias. Meu Alberto vivia dizendo que nunca tinha guardado rebanhos, pois claro que não, pois que trabalhava era nas cocheiras e pisava o estrume que estercava as vinhas. Os moços vieram a ver as festas. Moços da cidade, diziam coisas que se não entendiam. E queriam nos fazer crer a nós que eram um de nós. E que éramos como eles. Como se o fôssemos, como se o pudéssemos ser... Pois os rapazes tomaram-se de graça com o meu Alberto, que no entardecer dos dias de verão púnhamos sentadito debaixo da figueira, aquela mesma que — dizem-me os netos — até hoje lá está ao pé do outeiro. À noite, o luar através de seus altos ramos punha sombras na relva. O meu Alberto gostava, e os rapazes pediam-lhe que contasse do tal rebanho que ele dizia ter guardado, das estrelas e das árvores. Umas vezes traziam papéis e tomavam notas enquanto meu Alberto desfiava suas histórias. Não, meu senhor, repare bem em mim, não tenho leitura nem escrita, que meu finado pai achava que estas coisas não eram para mulheres, então não sei o que os tais senhores escreviam nos papéis, só digo o que hoje me
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contam os filhos de minha Catarina, que me fazem a graça de pagar este convento onde vivo minha velhice, à espera de reunir-me com meu Alberto e com os filhos que a guerra nas colônias levou. Bons filhos eram eles e eles se foram. Bom homem era o Alberto e ele se foi. Mas meus netos, filhos de minha Catarina, hoje aqui me trouxeram perante o senhor, senhor notário, para que eu lhe conte a história de meu Alberto que comigo viveu e morreu e de quem ouvi as sandices que hoje meus netos me contam — estão escritas em livro, onde também está escrito que elas vieram da cabeça dos amigos do filho do Senhor Barão, aqueles rapazes, creio que um deles era um senhor engenheiro, que ficavam de graça com meu Alberto. Os meus netos me dizem, senhor notário, desculpe, senhor, no meu tempo era notário que se dizia, não me parece justo que se diga que meu Alberto — que os inventou de sua própria cabeça — não existiu e passem, ele e seus dizeres, por invenção desse senhor Fernando, que ao lado do outro amigo do filho do Senhor Barão, tiravam graça a meu Alberto, enquanto comiam figos e bebiam vinho. Sim, senhor notário, ouvi tantas vezes meu Alberto a delirar, que decorei muito do que dizia. Dizia e repetia que o Sol era um grande borrão de fogo sujo, que as coisas não tinham nome e outras sandices que — meus netos me contam — estão em letra impressa nos livros do senhor Fernando. Posso jurar pelas chagas de Cristo que tudo o que neles me disseram lá estar escrito eu ouvi sair da boca de meu finado Alberto, que Deus o tenha em sua santa Glória, e se esses moços puseram em escrito o que meu Alberto dizia não é justo que digam que eles o inventaram, pois que isto não é verdade. Já é ruim roubarem-lhe as palavras, meu senhor, mas muito pior é roubarem-lhe a existência. Meu Alberto existiu, sim, mas nada tinha do que me dizem dizer o livro do senhor Fernando a respeito dele. Não, senhor notário, não se trata de dinheiro. Nada me falta aqui entre as bondosas irmãs redentoristas que agasalham meus anos avançados, sabe Deus que quase todos já cumpridos. É que não me parece justo saírem moços por aí a desfazer dos velhos. Menos ainda dos velhos enfermos como ficou meu Alberto depois que, ao levantar uma pedra de certo superior a sua força, quebrou alguma coisa dentro de si e deu-lhe de dizer coisas como ser sua aldeia tão grande como uma terra qualquer ou que seu olhar era azul como o céu. Olhar azul o dele, senhor no-
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tário... A mim me parecia que era por caridade que o senhor engenheiro, amigo do filho do Senhor Barão, trouxe o senhor Fernando, e que também por caridade ambos davam trela a meu Alberto, mas hoje meus netos me dizem que não era caridade. Que escreveram em livro tudo que meu Alberto engrolava em sua meia-língua de cabeça lesada. E que inventaram a história de que eles é que tinham inventado tudo aquilo e também inventado o meu Alberto. Diz o senhor notário que eu deveria sentir-me honrada? Mas repare o senhor notário que a história só desfaz de meu pobre Alberto, como se fosse ele criatura criada no juízo alheio e não homem de carne e osso, como — com o perdão da palavra — Vossa mesma Excelência. Quero apenas justiça, senhor notário. Que se saiba que meu Alberto foi homem verdadeiro. Que não era nem loiro nem pálido nem tinha os olhos azuis. Era negro. E sua cor, ainda que desbotada pelo sangue de seu pai, aparece na pele deste meu neto Bernardo que aqui me acompanha hoje para desenhar as letras de meu nome no papel em que aquele outro senhor está escrevendo tudo o que aqui digo em nome da verdade.
M L é paulistana, mas foi criada em Santos. Estudou letras na USP, onde defendeu seu mestrado e doutorado. É professora titular aposentada da U e professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie. É autora de vários livros e ensaios sobre literatura e de um romance: Destino em aberto.
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O jogo de caxangá J. T
Ainda que houvesse freqüentado a Britain School só para poder sentar-se em seu lar de Regent Street e ler com placidez os relatos de Melton Rose sobre a existência ou não de Oscar Wilde, era-lhe difícil. Não só porque houvesse ali aquelas inoportunas frases ditas no mais puro cockney como também — e sobretudo — questões que abrangiam complicados detalhes históricos da arte e da física, o que o fazia se confundir com efusões filosóficas e achar que a metafísica fosse simplesmente um detalhe proctológico da existência e que, metafisicamente falando, seria só meter a física onde quer que fosse e pronto! Estaria tudo resolvido. Mas não foi só. Quando Wilde intuiu O retrato de Dorian Gray, não eram ainda observados certos procedimentos, digamos, metodológicos, fazendo com que o leitor antevisse essas observações que provinham do Fantástico. Não, não, pensou ele. Claro, na Inglaterra extremamente afogada na era vitoriana e sem seu príncipe consorte que só deu azar à família real, tendo de reduzir a ilustre casa dos Saxe-Coburg-Gotha pelo recém-criado de Windsor (que significava mais ou menos nada), levou depois o neto-herdeiro, George V, a fumar como cobras desarvoradas, deixar-se morrer em Sandringham, doar seu posto a um irmão cretino que renunciou por uma americana mais cretina... e assim, retomando, voltou-se ao raciocínio inicial das leituras de Regent Street. Sim, ali, de posse das idéias de um retrato metamorfoseável, escamoteável e conversível como aquele, qualquer coisa poderia ocorrer, tanto a Dorian quanto a Gray.
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Sabe-se que isso tudo parece um tanto confuso aos neófitos, entretanto, não há outra forma de explicar a história, ou melhor, a verdadeira narrativa que se verá, principalmente, sabendo-se que seu vital protagonista fora Otto Fiegert, o homem que — apesar dos atavismos — escrevia torto por linhas retas, porém, achando-se sempre próximo à verdade, sob a qual haveria de estar o segredo, o extraordinário mistério de ver-se projetado numa extensa superfície, trazendo o pasmo total aos habitantes locais. Assim, voltando ao intrigante assunto das imagens, ainda que as coisas pareçam nublosas e aparentemente obscuras, relembra-se que estavam na Regent Street de Londres e que Otto, embora nascido numa Viena pré-hitlerista dos tempos de Dollfuss, era um homem simples, de hábitos arraigados, todavia, estranho algumas das vezes, sobretudo com as mulheres, às quais prudentemente evitava “por medo de contágio”, como ele próprio dizia sempre. Não que escondesse homossexualidades ocultas sob punhos de renda, não. Nem mesmo eventuais pudores ginofóbicos que o levassem a ostentar uma outra forma de vida que não fosse aquela, do solteirismo, da solidão ensimesmada nos trópicos de si mesmo, ou então enfiando os pés pelas mãos no convívio social obrigatório às suas funções de taxidermista sério e credenciado até pelo British Museum, embora houvesse estagiado até no Butantã que, como se sabe, esteve sempre lotado de cobras, porém, nenhuma necessitando taxidermias com tanta urgência. Parecia impressionante, todavia, logo após o suicídio de Stefan Sweig, Otto mandou comprar depressa o livro Brasil, país do futuro e, devorando-o entusiasmado como uma criança pretendendo embarcar no Titanic, releu-o inúmeras vezes, ficando mesmo encantado com o gênero “Heródoto” da descrição, em especial o do primeiro parágrafo, em que o conterrâneo então recém-defuntado afirmara em que “Algumas coisas singulares que tornam o Rio tão colorido e pitoresco já se acham ameaçadas de desaparecer. Sobretudo as favelas, as zonas pobres em plena cidade. Será que ainda as veremos daqui a alguns anos?”. Espantosa, essa prática futurológica de Stefan só poderia leválo mesmo onde levou, isto é, ao suicídio e à confirmação absoluta de que nem mesmo Hermann Khan, tendo ali estado também, falou tantas bobagens dignas de entrar para a história.
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Portanto, de posse de todas essas verdades, enfim, Otto optara por aquela maneira semimonástica de existir, deixou de lado as ambições de morar numa favela carioca e permaneceu em Londres, onde, lógico, jamais ostentara as cabotinices que sua índole e nobre aparência demonstravam. Não! Continuava celibatário e meio taciturno, esquivando-se sempre que possível do convívio social, sobremodo das mulheres, com quem se sentia completamente desprotegido e inerme, tornando a conversa que poderia ser agradável numa prática insossa e na maioria das vezes desastrada. Certa vez, durante importante simpósio internacional de empalhadores profissionais num clube em Picadilly Circus, foi deixado a sós com Melanie, duquesa de Brighton que, apesar de cultivar begônias Stigmatopteris caudata, charmosa e coquete como sempre, aguardou que Otto iniciasse o assunto, mas, para absoluto espanto da grande dama, aquele constrangido e tímido misantropo a fitou nos olhos e, atrapalhado como sempre, perguntou-lhe de chofre: — E os intestinos, como estão? Maravilhada e surpreendida com tal abordagem, Melanie pôs-se a rir tanto aquela sua majestosa gargalhada que os demais, empalidecidos pela mesmice de seus próprios diálogos sussurrados e monólogos ensurdecidos, simplesmente se reuniram à sua volta para obter mais e mais daquela bizarra criatura que não era nada mais, nada menos. Mas, apesar dos sustos e exclamações, encontrava-se presente uma, uma única figura que interessara a Otto e sua obstinação por aquelas leituras tão freqüentes em Regent Street: Helena Yansci, a beletrista húngara que havia publicado há anos uma importante biografia de Tiphaigne de la Roche, o Júlio Verne do século XVIII que, em seu soberbo relato Giphantie, já previra a existência das chamadas “imagens solares”, telefones, rádios, comidas desidratadas e outras obscenidades mercantis que viriam atulhar o século XX. Fantástico! Algo ali, naquele encontro tão aparentemente chinfrim, o encantara. E enquanto seus olhos giravam como ponteiros malucos procurando captar o que Helena narrava, luzidios garçons de libré passavam ao redor com bandejas repletas de iguarias de que todos se serviam, menos Otto e Helena, que estabeleceram um código de conversa tão coloquial que ambos, ela e ele, dominavam a cena, deixando os convivas estupefatos com a afabilidade da exótica autora de magiar
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e daquele até então ensimesmado empalhador que jamais fora visto sob tanto entusiasmo com uma fêmea. Dado momento e procurando obter um pouco mais de privacidade, Otto viu o pequeno elevador no fundo da sala no qual serviçais transportavam as iguarias do térreo aos convidados mais recatados que preferiam o solarium, existente no oitavo andar. Com surpreendente delicadeza, Otto fez pequena mesura aos circunstantes como a desculpar-se, segurou o extramacio braço de Helena com brandura e determinação tocando-lhe discretamente o seio esquerdo, porém sem nem mesmo notar tratar-se de um peito de borracha. Incrível! Um pouco ruborizada, ela acedeu e dirigiram-se os dois ao tal elevador, por cujo gradeado da porta pantográfica viram que a cabine estava parada lá embaixo, no subsolo, onde devia funcionar a cozinha. Sedutor e um tanto superficial, ele sorriu para ela, esticou o indicador e assim como o primeiro homem da Capela Sistina a tocar um Deus pantocrator cujos humores viviam subindo e descendo, seu dedo apertou o botão que, como jamais costuma ocorrer, se acendeu... Impressionante! Enquanto aguardavam, ele apagou o charuto e com um charme inusual mas certa afetação narrativa, iniciou expressivo diálogo num antigo tempo verbal comentando com ela: — Suponho que saibas esperar, pois estas coisas às vezes demoram... Ao que ela, fingindo-se de volúvel pseudo-recatada mas pouco natural também, respondeu em tom de galhofa e na mesma pessoa verbal: — Bem, se tu podes, também poderei. O máximo que deverá acorrer é fumares outro charuto a meu lado enquanto aguardamos... — Tens razão — disse ele abrindo um magnífico estojo revestido de autêntica pelica e dedilhando alguns bons Habanos que Pablito Garcia, El Charutero, lhe enviara de Las Tunas... Todavia, nesse preciso instante e como por encanto, o elevador fez alguns ruídos, começou a subir e chegou. Ele então, com calma, fechou o estojo entreaberto, sorriu para ela, abriu a porta pantográfica arrastando-a com a mão direita e, com a esquerda, foi fazer uma mesura do tipo ladys first, mas, ao fazê-lo, tocou suavemente no seio
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macio e opulento de Helena, que, discreta mas rubificada, perscrutou o olhar de Otto e concluiu que outra vez ele não percebera seu seio direito como sintético. — És muito gentil — disse-lhe. — Fazes-me ser querida. Fazes-me ser... E entraram, notando tratar-se de um minúsculo, espremido e claustrofóbico ascensor com uma placa de acrílico ao fundo advertindo em vermelho: . Enfim, esfregando-se canhestramente e com certa dificuldade, acomodaram-se lá dentro, Otto espiou pelo salão como se fosse sua última viagem, puxou a porta pantográfica até o estalido da trava e apertou o botão para o roof, onde estava o solarium no qual supunham encontrar maior privacidade para suas enlevadas conversas sobre taxidermia. Contudo, passados uns segundos, nada aconteceu. Ambos se entreolharam estranhados, sorriram amarelo e ele, procurando aplainar o momentâneo desconforto da cena, franziu o cenho e, tête-à-tête com ela, notando-lhe o exagerado brilho da cútis, a delicada fragrância e um ligeiro hálito de champanhe misturado a poliamida e poliuretano distribuídos pela Monsanto, perturbou-se um pouco, é verdade, mas logo se aprumou, piscando marotamente um olho e dizendo: — Deixes comigo. Sempre resolvo estas coisas... Ao que, lépido, ela respondeu: — Sim, sim... Confio em ti. Porás já já esta coisa para subir. Claro que não havia nenhuma conotação sexual envolvendo o diálogo, contudo e contrariando algumas teses ascensionais de Teillard de Chardin, o elevador não obedecia à ordem para subir e levá-los ao roof onde ficava o solarium no qual, como foi dito, supunham encontrar maior privacidade para suas tertúlias sobre taxidermia. Friccionando-se suavemente nos voluptuosos quadris de Helena mas sem perceber tratar-se de látex puro, Otto insistiu, fazendo com que seu dedo parecesse um histérico pica-pau bicando o botão do elevador que, também perseverante, agora, além de não subir, também não descia. Impasse total!
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Ligeiramente contrariado e vendo através da porta que alguns maldizentes comensais já os espiavam trancados ali dentro demonstrando estranheza e até mesmo uma certa malícia, Otto então inspirou fundo, contou até três, optou pela mudança de dedo, usando agora o polegar e, com força, apertou outra vez o botão. Nada! A engenhoca definitivamente não se movia. Notando-o aborrecido e vendo em sua testa uma pequenina gota de suor, Helena foi abrir a bolsa para apanhar um lenço, mas, devido à exigüidade daquele asfixiante espaço, roçou de leve sobre a calça de Otto, sentindo-lhe volumoso, denso e roliço um membro adormecido mas vívido e pujante, prestes a despertar. Vendo-a ruborizar-se com isso mas involuntariamente esfregando-se nela, tentou ser gentil dizendo-lhe então: — Verás que isso logo se ajeita. Não te preocupes nem te desesperes. Sorrindo com polidez e agora já com seu lencinho de cambraia em punho, carinhosamente Helena Yansci, olhou-o com ternura enxugando aquelas gotículas de suor que, aos poucos e com a obstinação do elevador que não subia, foram se acumulando até escorrer de leve pelas sobrancelhas. — Não te apoquentes, tu e eu estamos a salvo aqui, disse ela procurando acalmá-lo. — Deixes comigo, só um instante e conseguirei levar-te às alturas. Quase imperceptível, naquele instante houve um delicado frisson entre os dois que se entreolharam com discrição. Mas nesse preciso momento e como interregno às inúmeras tentativas de fazer com que algo ocorresse, a placa onde se lia “ ” começou a piscar como um daqueles enlouquecidos luminosos chineses. Agora, parados ali dentro sem subir nem descer, ainda tinham sobre as cabeças aquela coisa medonha e estranha pulsando com perseverança: ... PERMITIDO SÓ PARA 2 PASSAGEIROS... ... PERMITIDO SÓ PARA 2 PASSAGEIROS...
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