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LUTA PELA TERRA, REFORMA AGRÁRIA E GESTÃO DE CONFLITOS NO BRASIL
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UNIVERSIDADE ESTADUAL
DE
CAMPINAS
Reitor JOSÉ TADEU JORGE Coordenador Geral da Universidade FERNANDO FERREIRA COSTA
Conselho Editorial Presidente PAULO FRANCHETTI ALCIR PÉCORA – ARLEY RAMOS MORENO JOSÉ A. R. GONTIJO – JOSÉ ROBERTO ZAN – LUIS FERNANDO CERIBELLI MADI MARCELO KNOBEL – SEDI HIRANO – WILSON CANO Comissão Editorial da coleção Agricultura, Instituições e Desenvolvimento Sustentável JOSÉ MARIA FERREIRA JARDIM DA SILVEIRA JOHN WILKINSON – AHMAD SAEED KHAN SÉRGIO LUIZ MONTEIRO SALLES FILHO – WILSON CANO
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AGRICULTURA, INSTITUIÇÕES E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
LUTA PELA TERRA, REFORMA AGRÁRIA E GESTÃO DE CONFLITOS NO BRASIL ANTÔNIO MÁRCIO BUAINAIN (COORDENADOR)
JOSÉ MARIA F. J. DA SILVEIRA (PREFÁCIO)
BERNARDO M. FERNANDES JEAN DAUDELIN MARCOS LINS SÉRGIO SAUER TÂNIA ANDRADE
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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA UNICAMP L976
Luta pela terra, reforma agrária e gestão de conflitos no Brasil / Antônio Márcio Buainain (coord.) et al. – Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2008.
1. Reforma agrária – Brasil. 2. Posse da terra. 3. Direito agrário. I. Buainain, Antônio Márcio. II. Título. CDD ISBN
978-85-268-0784-6
333.3181 333.13 343.0762
Índices para catálogo sistemático: 1. Reforma agrária – Brasil 2. Posse da terra 3. Direito agrário
333.3181 333.13 343.0762
Copyright © by Antônio Márcio Buainain et al. Copyright © 2008 by Editora da UNICAMP
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO (ANTÔNIO MÁRCIO BUAINAIN) ..............................
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PREFÁCIO (JOSÉ MARIA F. J. DA SILVEIRA) ........................................
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REFORMA AGRÁRIA POR CONFLITOS ..........................................
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I
(ANTÔNIO MÁRCIO BUAINAIN) 1 2 3 4 5 6 7
Introdução .............................................................................. Conflito agrário: dimensão e origem histórica ............................ Os conflitos agrários no período 1988-2002 .............................. Evolução e gestão dos conflitos no período recente .................... A gestão dos conflitos de terras: a experiência da ouvidoria agrária e da Justiça.............................................. Conclusões.............................................................................. Anexos ..................................................................................
II EXPERIÊNCIA CONCRETA DE MEDIAÇÃO DE CONFLITOS AGRÁRIOS
17 20 44 62 90 120 126 129
(TÂNIA ANDRADE)
Introdução .............................................................................. 2 Evolução das relações sociais no campo brasileiro .................... 3 Conclusão ..............................................................................
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III CONFLITUALIDADE E DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL....................
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(BERNARDO MANÇANO FERNANDES)
Introdução .............................................................................. 2 Questão agrária e conflitualidade ............................................ 1
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Paradigmas da questão agrária e do capitalismo agrário: conflitualidade em debate ........................................................ Conflitualidade: crítica e diálogo ............................................ Desenvolvimento territorial rural: a construção da multiterritorialidade ............................................................ Luta pela terra e desenvolvimento ............................................ Considerações finais – superar paradigmas e empatar ..............
IV CONFLITOS AGRÁRIOS NO BRASIL .............................................. (SÉRGIO SAUER)
Introdução .............................................................................. Conflito na sociedade e no meio rural brasileiro ........................ 3 A violência no meio rural brasileiro: causas e agentes .............. 4 A construção de identidade social no conflito ............................ 5 Conclusão ..............................................................................
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V RESOLUÇÃO ALTERNATIVA DE DISPUTAS EM CONFLITOS DE TERRA .... (JEAN DAUDELIN)
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Introdução .............................................................................. Regimes de propriedade fundiária ............................................ Os conflitos de terra ................................................................ Resolução de disputas, alternativa ou não: marco analítico .......... Estudos de caso ...................................................................... Parâmetros para a resolução de conflitos de terra: conclusões preliminares .......................................................... Conclusões..............................................................................
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VI UMA AGENDA ATUAL DAS POLÍTICAS PÚBLICAS .......................... (MARCOS LINS)
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Introdução .............................................................................. A dimensão do programa e o ritmo de implementação .............. As possibilidades de aumentar o número de assentamentos nas várias regiões .................................................................. O público-meta do programa: critérios de qualificação .............. Os limites do programa: Ação fundiária somente, ou terra, crédito e assistência técnica, agroindustrialização e estruturação produtiva? ........................................................ Observações com vistas à continuação do debate sobre a reforma agrária ..................................................................
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APRESENTAÇÃO
Ao amigo Marcos Lins, lutador agrário, que entendeu as razões dos conflitos e principalmente o valor da pacificação do campo.
ANTÔNIO MÁRCIO BUAINAIN
Este livro nasceu do desejo de promover o encontro de idéias divergentes sobre um tema intrinsecamente polêmico: conflitos agrários. Uma passada de olhos nas principais revistas acadêmicas dedicadas ao assunto, em publicações patrocinadas por instituições públicas ou de organizações não-governamentais, e no material disponível em páginas da web de grupos de pesquisa ou do movimento social, revela uma profusão de textos que abordam o assunto desde vários ângulos, indicando um intenso debate sobre a questão agrária. Uma olhada mais cuidadosa pode revelar que, apesar da vasta produção de material, a intensidade e riqueza do debate não corresponde à disponibilidade de títulos. Ao longo dos últimos anos tenho observado o “fechamento” dos debates sobre alguns temas que têm relação direta com as políticas públicas adotadas no Brasil. Observo um fenômeno que tenho denominado de “igrejização ou partidarização acadêmica”, não circunscrito aos temas agrários. Nesse processo, os seminários e revistas deixam de buscar o confronto de idéias contrárias e divergentes, o intercâmbio de experiências, a polêmica vigorosa e saudável, pautada pelo rigor metodológico e respeito ao contraditório, para se transformar em reuniões ou publicações de “igreja”, que reúnem os “fiéis” para uma reflexão que tem como limite o dogma, o engajamento a uma ou outra corrente política; reuniões que no fundo têm como objetivo reafirmar e reavivar a fé dos iniciados. Nessas reuniões há pouco espaço para divergências maiores, e aqueles que ousam levantar a voz para questionar o senso comum dominante são 7
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varridos de cena como infiéis e marcados com algum rótulo que se crê depreciativo. A sensação que tenho é que até hoje muitos não entenderam que na democracia um cidadão não é melhor que o outro porque pensa a ou b, ou por ser progressista ou conservador, e sim pelos padrões éticos que marcam seu comportamento cotidiano e prática social. O livro, que não foi planejado, nasceu por acaso de um artigo preparado a pedido da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e da Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), para uma reunião de trabalho sobre Gestão de Conflitos Agrários, realizada em Quito, Equador, em 2003. Estimulado pelos acalorados debates durante o seminário, o artigo evoluiu para um texto mais longo, que circulou entre um pequeno grupo de pessoas para comentários, suscitando questões e pontos de vista interessantes sobre o assunto e que sequer haviam sido tocados em meu trabalho. O dilema era continuar trabalhando sozinho ou convidar outros para ajudar na reflexão. Optei pela ampliação do debate. O livro foi concebido com o objetivo explícito de romper com o igrejismo agrário e reunir, em um só volume, reflexões de pessoas que pensam de modo diferente e que nem por isso são inimigos ou se atacam pessoalmente nos intervalos de café nas reuniões acadêmicas. Devo esclarecer que, à exceção de Marcos Lins, amigo de muitos anos e de infinitas conversas, com quem aprendi o valor da divergência honesta e transparente, não tive o prazer da convivência com os demais colegas convidados para preparar os capítulos. Procurei autores que assumem posição diferente da minha, e que estivessem abertos ao debate e à convivência intelectual. Enviei meu artigo e proposta editorial a vários autores que “militam” na área agrária e recebi entusiasmada acolhida dos que me acompanham neste volume; outros sequer responderam; outros se negaram, com a justificativa educada de que não estavam de acordo com meus pontos de vista. Nem chegaram a entender que a proposta era exatamente esta: explicitar diferentes pontos de vista sobre o tema dos conflitos agrários em um mesmo volume. Deixo aos leitores a tarefa de avaliar a validade do debate.
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PREFÁCIO
JOSÉ MARIA F. J.
DA
SILVEIRA
O presente livro discute a questão dos conflitos no campo e do acesso a terra, problema que ainda hoje caracteriza o meio rural brasileiro. Para alguns, os conflitos persistem, em que pesem a modernização da agricultura e das relações sociais no campo e o considerável esforço recente de reordenamento fundiário; para outros, a persistência dos conflitos deve-se exatamente à própria modernização, dita conservadora e excludente, e ao fracasso da reforma agrária como política pública de promoção de acesso a terra. Tem-se, portanto, uma clara idéia do grau de controvérsia provocado pelo tema fundiário, objeto central do livro, cujo debate é muitas vezes mais orientado pela paixão que pela razão, e marcado por posicionamentos políticos prévios, fechados, que por isso mesmo assumem uma dinâmica mais próxima do diálogo entre surdos do que da dialética socrática. O mérito primeiro do livro é tentar promover um intercâmbio entre autores com visões e pensamentos diferentes sobre o papel dos conflitos de terras no Brasil contemporâneo, e que não escondem as diferenças e nem por isso se recusam a compartir os mesmos espaços e proporcionar aos leitores a possibilidade de refletir sobre a questão sob diversos ângulos e pontos de vista. As principais razões que justificam a permanência do conflito têm forte ligação com as raízes históricas da formação do Brasil e com questões de economia institucional: a concentração da propriedade fundiária; a precariedade do sistema de registro e titulação de terras em amplas áreas das regiões de ocupação recente (em particular no Centro-Oeste e Norte, mas também em áreas como a própria Zona da Mata de Pernambuco, ocupada 9
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há 500 anos); a lentidão dos procedimentos de identificação de terras e desapropriação para fins de reordenamento fundiários; a falta de mecanismos de promoção de acesso a terra pelos mais pobres; a reduzida reputação da justiça local; a captura dos poderes por interesses de líderes tradicionais. Todavia, os conflitos também estão relacionados ao protagonismo dos movimentos sociais e à crise social e de emprego de um país que há pouco sofreu um boom demográfico e ainda sofre uma crise quase permanente das finanças públicas, com efeitos sobre atividades urbanas geradoras de emprego para trabalhadores não-qualificados, principalmente a construção civil. Não é exagero dizer que pelo menos parte dos conflitos, embora impulsionados pela “esperança” de acesso a terra, refletem, na verdade, a falta de esperança e de perspectiva para um grande contingente populacional que, em pouco tempo, perdeu os meios de vida pelos quais tradicionalmente conseguiu, bem ou mal, reproduzir-se no próprio meio rural e no meio urbano. Como em vários outros assuntos debatidos no Brasil, adicione-se à multideterminação das causas dos conflitos as diferenças de visão de mundo. Estas, muitas vezes, refletem posições necessariamente excludentes: para uns, os conflitos revelam e indicam a emancipação e conquista de cidadania dos pobres, que vão à luta por seus direitos; para outros, a insuficiência institucional – que não logra nem proteger os direitos de propriedade e nem assegurar os direitos básicos dos que terminam sendo obrigados a aderir ao conflito, seja como meio de conquista ou de defesa de direitos. Em ambas as visões, o conflito revela a vigência da democracia, ainda que imperfeita e em um estágio “infantil” – como caracterizou Buainain em seu artigo de abertura ao livro. É preciso ter claro que os conflitos nem são produtos do que no passado se chamava de “condições objetivas”, nem tampouco de vontades, mas sim do processo de consolidação do capitalismo brasileiro em bases pouco sustentáveis. Os conflitos agrários nos séculos XVIII e XIX, superados nos países hoje desenvolvidos, revelam a espantosa capacidade das elites brasileiras de superar conflitos sem, de fato, resolvê-los. Estrutura econômico-social, grupos de interesse, movimentos sociais e visões de mundo se misturam, gerando manifestações que por vezes resul10
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tam em violência. A solução de disputas pelo uso de armas, tradição de certas regiões – ainda que sejam hoje menos importantes –, tem sido certamente uma fonte de acirramento de conflitos. De igual maneira não se pode esquecer a ação de aventureiros que utilizam a fragilidade institucional para justificar o uso da força; assim, a forma e a intensidade dos conflitos variam, portanto, de região para região, de situação para situação. A história de grilagem e a tentativa de institucionalizar os frutos de ações que hoje podem ser consideradas criminosas – mas que foram vistas como normais no passado – estão relacionadas com a identificação de áreasproblema, alvos de reforma agrária. De qualquer forma, localizados ou de caráter amplo, os focos de violência podem ser atenuados e mesmo eliminados com a implantação de uma institucionalidade construída na discussão entre os atores e pela mobilização de inovações procedimentais que agilizem o reordenamento fundiário. O desafio está em como promover um processo de discussão em um ambiente de conflito, em que os principais atores não conversam para valer; ou pior, em situações em que a solução do conflito é identificada, de lado a lado, como a eliminação da outra parte. Pode-se dizer que não se trata apenas de um livro sobre um assunto especializado. Este trabalho se localiza no vértice de uma questão central no atual estágio de desenvolvimento econômico e social do Brasil: a existência de uma tensão permanente entre participação e eficiência, um desafio de titãs, que desautoriza milagres. A facilidade com que alguns “representantes” dos interesses das parcelas mais pobres da população defendem a forma conflituosa de participação se choca com as demandas por eficiência, que na atualidade envolvem o chamado “agronegócio da produção familiar”, aquele que busca multiplicar nichos de mercado para o talento e engenho das famílias, potencializando suas tradições e inventividade. Entre os adeptos de tal procedimento são incluídos aqueles que, usando argumentos de autoridade, descartam a busca de melhores condições de comercialização e de criação de novos segmentos de mercado como instrumento de redução da pobreza no meio rural e mesmo no meio urbano ligado às atividades agrícolas. De outro lado, chega a soar como falta de sensibilidade social a forma com que são apresentados certos “estudos” que calculam o baixo retor11
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no do crédito direcionado (leia-se Pronaf), apontando alternativas de investimento em áreas técnicas (como em defesa sanitária, vegetal e animal), necessários, claro, mas não excludentes do apoio à propriedade familiar. O auxílio “voluntarioso” e discricionário ao grande agronegócio, com base em seu desempenho recente, gerador de renda e emprego, só se justifica quando, em compensação, se considera o fato de que os “atores sociais” estão ativos e que são capazes de legitimar suas ações, mesmo quando enquadradas na rubrica “conflitos”. Assim, no amplo espectro de visões que vão desde a quase santificação dos conflitos como instrumento de transformação social até a apologia da eficiência de nosso setor mais importante da economia, há um longo caminho de construção das instituições, que é mediado por condicionantes da técnica e do interesse econômico, mas também pela visão dos interesses e pela consideração da representatividade do movimento social. À primeira vista, parece fácil utilizar estatísticas de forma precária e dizer que o PIB per capita de qualquer estado dos EUA é maior que o de qualquer país nórdico, para defender reformas liberalizantes. Quando se analisam os desdobramentos dessas políticas, percebe-se que mesmo nos países centrais existem polêmicas relacionadas a medidas que antes eram tidas como de sucesso garantido. Por exemplo, foi notável o fracasso das políticas de promoção de transparência nas corporações ou de redução de custos de agência, pagando pequenas fortunas aos chamados “executivos chefes”. Por outro lado, quando o polemista defende o “assalto ao fundo público” por qualquer força social organizada, pode fazê-lo sem a mínima preocupação com as conseqüências desse ato, caso fosse concretizado? Basta declarar de forma enfática que os defensores da focalização lhe causam repulsa, para conquistar a simpatia da platéia? Seria verdade que políticas focalizadas e de alívio à pobreza extrema seriam os sustentáculos do coronelismo nos grotões, ou elas evitariam o recebimento de benefícios por pessoas não necessitadas? O fato é que a construção de instituições adequadas e a promoção da eficiência do sistema – mais que a eficiência de suas partes individuais – é uma tarefa complexa, procedimental e que exige uma racionalidade atenta. A participação inteligente do Estado – com clara atribuição de funções a 12
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seus distintos poderes – nos grupos de interesse organizados em espaços qualificados de discussão e decisão cria caminhos alternativos importantes para a construção de instituições e políticas sociais em curso. Com isso, gera-se espaço para políticas discricionárias de apoio aos mais necessitados e excluídos, com base na visão comum de que ganhos de eficiência do sistema ocorrerão. Se famílias vivem abandonadas em uma vila rural, sem educação e saúde, ao lado de uma ampla e desocupada propriedade, quem poderá invocar direitos de propriedade para negar uma ação redistributiva? Todavia, qual a melhor forma de proceder? Quem deve ser envolvido? Como é possível prever resultados que tornem essas famílias potenciais empreendedores e seus filhos pessoas com perspectivas de futuro? O presente livro trata dessas questões sob o foco privilegiado da transformação social em um espaço que se está redefinindo fortemente de agrário, rural, agrícola para rururbano, espaço dos territórios, da indústria rural e mesmo do artesanato industrializado. Nesse espaço convivem visões ideológicas, ações práticas – que em parte incluem ações que levam aos conflitos – e um rol de políticas que se materializam de forma imperfeita, refletindo a ambigüidade de objetivos e ações que se manifestam no comportamento das instituições, em suas distintas naturezas. A importância deste trabalho é notável por deslocar o debate do campo da retórica para o estudo dos processos que envolvem os conflitos. Sua influência será maior caso sua leitura seja feita não só por formadores amplos de opinião, mas também por aqueles que de alguma forma se comunicam com os distintos grupos envolvidos no processo de redefinição fundiária. Cabe aqui uma breve discussão dos textos que compõem esta obra. A defesa de uma “terceira via” entre a visão dita “keynesiana” de fundo público – e da pretensa universalização dos gastos sociais como empalmando a verdadeira política social – e a visão de transformação pelo mercado não tem encontrado muitos adeptos; em parte por não ser uma posição fácil. O texto de Antônio Márcio Buainain se insere nessa perspectiva, ao aceitar tanto a importância do conflito quanto da solução eficiente que o atenua. O que ocorre no “Pontal do Paranapanema”? A pesquisadora e ao mesmo tempo executora de políticas de reordenamento fundiário, Tânia Andrade, deixa claro seu propósito já no título do trabalho: “experiência 13
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concreta de mediação de conflitos agrários”. Trata-se de um olhar enviesado, de burocrata ou, ao contrário, de um relato que mostra claramente a importância do Estado em um processo altamente conflituoso? Evitar “mortes e grandes tragédias” reduz o potencial redentor das revoltas, constituindo um plano conservador? Ao fortalecer os assentados da região, dando-lhes potencial e aprendizado de negociação ao longo de novos conflitos, o Estado logra um tento. Ele não amordaça o movimento social, mas aumenta a eficiência de suas ações, ainda que isso seja visto como algo que pode conduzir, em um espaço de tempo não muito longo, ao arrefecimento do quadro reivindicativo. Para aqueles que pensam dessa maneira (que soluções eficientes levam ao conformismo), basta constatar que a insatisfação com os governantes é sempre maior nos centros urbanos, em que se procura ampliar o alcance de saúde e educação àqueles que não tiveram acesso a esses benefícios em seus locais de origem. A insatisfação e o conflito são um processo permanente, que pode alterar a qualidade e a eficiência dos resultados obtidos, dependendo de como evolui o processo de relacionamento das distintas organizações e instituições nele envolvidas. Os trabalhos de Antônio Márcio Buainain, Tânia Andrade e Jean Daudelin – este último traçando, de forma sintética, um importante panorama da questão das disputas em outros países – estão fortemente relacionados, portanto, à perspectiva de conceber os conflitos como parte de um processo mais amplo de evolução institucional. Cabe lembrar que essas considerações não excluem a importância de se ter um claro posicionamento chamado “crítico”, aquele que considera a existência de uma questão anterior à discussão sobre os conflitos, relacionada ao desenvolvimento capitalista no campo. Em outras palavras, da visão que busca na desigualdade (e também na pobreza) e exclusão as causas mais profundas da emergência de conflitos. Essa visão, apresentada no trabalho de Sérgio Sauer, serve de base para a aceitação do papel dos movimentos sociais, incluindo sua percepção de mundo: a ação crítica envolve a busca de alternativas de organização social de interesse da maioria da população, segundo a perspectiva deste trabalho. A contribuição da ação dos movimentos sociais seria a própria supe14
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ração de um “modelo de desenvolvimento agrícola” marcado pelo esgotamento. Tal ponto de vista também é partilhado por Bernardo Mançano Fernandes, interpretando detalhadamente a idéia e o papel do conflito. Bastante interessante é a visão tanto de Sauer quanto de Mançano sobre a importância do conflito como elemento reforçador da própria visão de mundo e do chamado espaço simbólico, que tão magistralmente marcou a ação do MST no final do governo FHC. Não seria injusto atribuir à perspectiva de ambos a idéia de que a luta é tão mais importante quanto o resultado, dado que o objetivo desses movimentos sociais é muito maior do que simplesmente a reordenação fundiária. Trata-se, portanto, de um livro rico em informação, experiências concretas e, muito importante, que conta com visões conflitantes. Nele, só não há espaço para aqueles que não dão ao assunto sua devida importância, apologistas, como já foi apontado, de soluções fáceis e definitivas. Finalmente, o livro é uma referência para os trabalhos que queiram analisar o fenômeno recente, que se iniciou no atual governo do presidente Lula, de perda – pelo menos no campo simbólico – do espaço ocupado, com grande destaque, pelos movimentos sociais de poucos anos atrás. Tão radical mudança ocorreu de fato ou trata-se de aparência? A mídia e o apoio de partidos influentes seriam fundamentais nesse processo de desvalorização do capital simbólico dos movimentos sociais no campo? Os avanços feitos no campo institucional, apresentados principalmente no trabalho de Buainain, explicariam o aparente arrefecimento dos movimentos sociais? Produtivo é o trabalho que termina em novas perguntas. O último capítulo, escrito em 1997 por Marcos Correia Lins, ex-presidente do Incra e ex-chefe do Serviço de Reforma Agrária e Colonização da FAO, revela não apenas a experiência profissional adquirida em longos anos como “executivo” da reforma agrária no Brasil e em outros países do mundo, mas principalmente enorme sensibilidade política e social para os problemas do campo. Marcos acreditava na reforma agrária como um passo indispensável para a reconfiguração social e econômica do Brasil e enxergava os nexos entre a distribuição de terras e a promoção de um modelo de desenvolvimento local mais vigoroso, menos concentrador de renda e de população em cidades sem condições para absorver o crescimento popu15
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lacional. Para ele, a reforma agrária criava oportunidades de desenvolvimento, para os assentados e para a sociedade brasileira. Sua reflexão revela compreensão das dificuldades e obstáculos enfrentados para realizar a reforma agrária massiva que considerava necessária. O texto é de extrema atualidade; aborda, e toma posição clara, em relação a todos os temas ainda hoje relevantes no debate agrário, desde a focalização até o papel do Estado. Podese dele discordar, em parte ou no todo, mas é impossível negar a relevância dos assuntos tratados.
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GESTÃO DOS CONFLITOS DE TERRAS NO
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1 Introdução2 Na maioria dos países atualmente desenvolvidos, o processo de desenvolvimento deu-se por meio da superação de problemas que se manifestaram em vários momentos históricos e que, de alguma maneira, se colocavam como obstáculos à continuidade do processo. Uma das características mais marcantes do desenvolvimento brasileiro tem sido a capacidade de dar continuidade ao processo de acumulação, desviando-se dos obstáculos que se apresentaram ao longo do tempo, evitando assim um enfrentamento direto e sua superação. Justamente por isso que o processo de desenvolvimento no Brasil tem sido caracterizado como conservador. A questão agrária é um dos exemplos mais emblemáticos da natureza conservadora do processo de desenvolvimento brasileiro. Ao longo do tempo, a questão agrária tem sido apresentada em diversas formas e em intensidade variada; mesmo que seu significado nem sempre seja claro, ninguém ousa declará-la superada, como tantas vezes ocorre com a “decretação” do fim de problemas e/ou situações desagradáveis, seja para o governo, 1 Com a colaboração de Luana Pereira Buainain, estudante de direito da Pontifícia Univesidade Católica, e de Patrícia Almeida, doutoranda no Instituto de Economia da Unicamp. 2 O autor beneficiou-se de inúmeras entrevistas realizadas com funcionários do governo federal, de vários governos estaduais, juízes, procuradores do Estado, representantes do movimento social e dos produtores. Os nomes são omitidos para evitar que as opiniões do autor possam, de alguma forma, ser atribuídas a um ou outro dos entrevistados. O autor gostaria de registrar a colaboração especial que recebeu de Tarita Andrade, da Ouvidoria Agrária Nacional, e de Cássia, do Setor de Documentação da CPT.
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seja para as elites dominantes, contrariando todas as evidências de que eles continuam existindo. Apesar das profundas transformações sociais e econômicas do país, a raiz da questão e dos conflitos agrários no Brasil contemporâneo continua sendo a vigência de um padrão de propriedade de terras arcaico, que mantém e sustenta um sistema de distribuição e utilização de terras iníquo e ineficiente do ponto de vista social e econômico – e muitas vezes mascarado pelo dinamismo revelado pelo setor agropecuário no período mais recente. De fato, em que pese o vigor do agronegócio brasileiro – hoje responsável por milhões de empregos no meio rural e urbano, assim como pela geração de parte substantiva do superávit da balança comercial essencial para a estabilidade macroeconômica –, poucos discordariam que uma parte das terras é mal utilizada e que a concentração fundiária inibe o desenvolvimento local, contribui para a concentração de renda e para a criação de grandes vazios populacionais. É certo, no entanto, que a questão agrária atualmente não é a mesma que a do fim do século XIX ou dos anos 50 do século XX, quando os conflitos eclodiram com grande força e visibilidade. De um lado, o crescimento da economia brasileira nas últimas décadas tratou de questionar a idéia de que a estrutura agrária se colocava como um obstáculo absoluto ao crescimento econômico do país; e a ampliação do mercado interno3 e a globalização das economias aumentaram ainda mais o espaço para a expansão do padrão de acumulação excludente. A própria questão da segurança alimentar – outro dos argumentos históricos em favor da reforma agrária – é redefinida a partir dos processos de integração econômica e globalização: a identidade entre segurança alimentar e auto-suficiência que orientava algumas políticas agrícolas no passado é substituída pelo conceito de self reliance, que enfatiza a capacidade de obter, e não apenas de produzir, os alimentos. De outro lado, as estruturas agrárias modernizaram-se: o agribusiness é hoje responsável por parcela significativa do produto agropecuário do 3 O modelo de desenvolvimento brasileiro, especialmente a partir dos anos 70 do século passado, sustentou-se na expansão do mercado interno de bens de consumo duráveis, identificados na cesta de consumo de classe média e alta, e nos investimentos de base. Tal modelo tem sido caracterizado como excludente, já que, apesar da redução relativa da pobreza, marginalizou parte significativa da população em relação aos benefícios do progresso econômico. Ver, a esse respeito, Furtado (1972) e Mello (1982).
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REFORMA AGRÁRIA POR CONFLITOS
país; parte do latifúndio “empresarializou-se” e os níveis de produtividade aumentaram de forma considerável; as relações “atrasadas” foram substituídas por relações “modernas”, embora ainda distantes dos padrões adotados pelos países desenvolvidos; o país transformou-se em produtor e exportador de produtos agroindustriais não-tradicionais. Apesar dos efeitos negativos da crise dos anos 80 e 90 do século passado, parte do setor agropecuário modernizou-se e pode ser hoje considerada eficiente e competitiva. No entanto, o sistema de propriedade da terra não se modificou; foi, ao contrário, reforçado com o fechamento das fronteiras, que funcionavam como válvulas de escape para pressões fundiárias, e pelo conhecido processo de concentração da riqueza durante períodos de instabilidade monetária e crise de acumulação. Nesse contexto, as transformações produtivas, longe de aliviar o problema agrário, contribuíram para sua reprodução, ainda que com nova roupagem e com maior ou menor intensidade, segundo a conjuntura econômica e um conjunto de fatores de natureza social, política e institucional – discussão essa que não cabe aqui. A modernização conservadora do latifúndio reforçou a concentração da propriedade da terra e o caráter excludente do modelo de desenvolvimento agropecuário; como regra geral, as “relações arcaicas” foram substituídas por relações de assalariamento temporário, embora, em muitas regiões, sem qualquer proteção legal. Em algumas áreas subsistem ainda hoje, de forma disfarçada, regimes de trabalho compulsório que se aproximam perigosamente da semi-escravidão, utilização de crianças e condições de trabalho totalmente condenáveis. A produção de subsistência foi em grande medida eliminada e os produtores, expulsos para os centros urbanos; parcela significativa dos atuais minifúndios são hoje mais “lugares de moradia” que unidades de produção; os excedentes populacionais são rapidamente “escoados” para os grandes e médios centros urbanos, onde são absorvidos de imediato, em condições de vida miseráveis. Mais recentemente, a magnitude e a visibilidade dos conflitos agrários foram amplificadas pela prolongada crise que afetou parte da agricultura brasileira desde o final dos anos 80 do século passado, assim como pela cada vez mais evidente falta de alternativas de sobrevivência para a população rural sem terra e sem trabalho. Nesse contexto, cresceram os conflitos e a violência no campo, 19
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ANTÔNIO MÁRCIO BUAINAIN
chamando a atenção de toda a sociedade para a necessidade de que finalmente esse problema fosse encarado de frente, sem meias medidas e artifícios que já não produziam sequer resultados tópicos e analgésicos. O desafio atual continua sendo superar o problema agrário em um contexto democrático.
2 Conflito agrário: dimensão e origem histórica Já se sabe que a concentração da propriedade da terra está profundamente enraizada na formação histórica do país (Furtado, 1989). Tais raízes remontam à natureza da colônia e das leis coloniais, que introduziram graves distorções na distribuição das terras e, a partir da segunda metade do século XIX, no funcionamento do mercado fundiário. Os conflitos agrários contemporâneos têm sua origem na natureza e na forma assumidas pelo processo de ocupação do território brasileiro desde o descobrimento. O modelo básico de ocupação da terra foi o recorte da costa em 12 capitanias, doadas a famílias de nobres com plenos poderes sobre o território. Os donatários, que não dispunham de recursos suficientes para explorar seus domínios, mas tinham poder para dispor das terras, doaram grandes áreas (sesmarias) a colonos, que se estabeleciam para explorar comercialmente a cultura do açúcar, cujo mercado se encontrava em grande expansão na Europa (Prado Júnior, 1976, p.33). As pequenas explorações, admitidas pelos sesmeiros, ocupavam as franjas da grande propriedade, constituindo-se em fonte de mão-de-obra livre para trabalhar na lavoura de cana em tarefas de supervisão e de produção de gêneros básicos para alimentar a mão-de-obra escrava. À medida que se expandia a monocultura da cana, a pequena exploração movia-se em busca de novas terras dentro dos vastos domínios da grande fazenda. Consolidou-se, portanto, ainda no período colonial, não apenas a concentração fundiária, mas também a relação latifúndio-minifúndio, que marcaria tanto a estrutura fundiária como a dinâmica agrária brasileira. Enquanto outros países, em momentos de ruptura histórica, adotaram legislação apropriada para corrigir as distorções decorrentes da concentração da propriedade da terra (Homestead Act de 1862 nos EUA, Corn Law na Inglaterra, Reformas Napoleônicas na França etc.), no Brasil, isso 20