O S E XC LU Í D O S CONTRIBUIÇÃO À HISTÓRIA DA POBREZA NO BRASIL
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UNIVERSIDADE DE S‹O PAULO
Reitora Vice-reitor
Suely Vilela Franco Maria Lajolo
EDITORA DA UNIVERSIDADE DE S‹O PAULO
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JOSÉ ROBERTO DO AMARAL LAPA
O S E XC LU Í D O S CONTRIBUIÇÃO À HISTÓRIA DA POBREZA NO BRASIL
(1850-1930)
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ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação
L31e
Lapa, José Roberto do Amaral, 1929-2000 Os excluídos: contribuição à história da pobreza no Brasil (1850-1930) / José Roberto do Amaral Lapa. – Campinas, SP: Editora da Unicamp; São Paulo, SP: Editora da USP, 2008. 1. Pobreza. 2. Escravidão. 3. Inclusão social. 4. Campinas (SP) – História. I. Título. CDD 339.46 380.144 361.61 981.61
isbn 978-85-268-0793-8 (Editora da Unicamp) isbn 978-85-314-1095-6 (Edusp) Índices para catálogo sistemático: 1. 2. 3. 4.
Pobreza Escravidão Inclusão social Campinas (SP) – História
339.46 380.144 361.61 981.61
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Ao meu netinho Gabriel, pelos momentos tantos que este livro subtraiu do nosso convĂvio.
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Sumário
Apresentação 9 Introdução 15 Os miseráveis 23 A administração da pobreza 45 A criança pobre 95 O mercado urbano de escravos 139 O cotidiano do escravo na cidade 189 Retrato falado (O escravo e seu corpo) 207 Bibliografia 235
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Vista panorâmica de Campinas — 1878
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Apresentação *
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ampinas é uma cidade que, desde muito cedo, possuiu um conjunto de estudiosos voltados para sua história que revelou, além de um sincero desejo de desvendar os caminhos de sua formação e desenvolvimento, também uma inegável paixão por seu torrão natal. Fossem eles campineiros de nascimento ou por adoção, devido a esse amor irrestrito pela cidade que os viu nascer ou que os acolheu, durante muito tempo foram incapazes de escolher, como tema de estudo, os aspectos negativos da vida urbana campineira. Eram historiadores leigos, muitos deles jornalistas de profissão ou mesmo profissionais liberais que se interessavam pelo fazer histórico, que prestaram um inegável serviço à cidade e aos pesquisadores atuais ao levantar e registrar dados sobre a vida passada da urbe que, de outra forma, certamente se teriam perdido. Mas, em sua grande maioria, estavam também interessados em fazer a apologia da cidade, que crescia e se desenvolvia, a partir da segunda metade do XIX, competindo mesmo com a capital do estado. *
Para a elaboração desta Apresentação, além do privilégio da convivência cotidiana, por mais de uma década, com o mestre Lapa, no Centro de Memória da UNICAMP, muito contribuíram as informações dos bolsistas de aperfeiçoamento e de iniciação científica, que gentilmente gravaram um depoimento conjunto para o Laboratório de História Oral do Centro de Memória, no dia 7/7/2006: Eliana Camargo Correia, Alexandre Zarias e Gustavo Henrique Tuna, a quem agradeço a inestimável colaboração.
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José Roberto do Amaral Lapa, campineiro de velha cepa, pois descendente de família tradicional da cidade, não só foi profundo conhecedor da obra desses historiadores da velha guarda, como também conviveu com alguns deles, seja na intensa atuação que teve no Centro de Ciências, Letras e Artes ou na participação do cotidiano das redações de jornais da cidade, na época da juventude ou mesmo em outros espaços de convívio da intelectualidade local. Ele não só os respeitava, como reconhecia seu papel de pioneiros na elaboração do conhecimento histórico sobre a cidade. Tendo realizado sua formação científica em história e em direito na Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Amaral Lapa complementou essa trajetória formativa com um doutorado em história, defendido na UNESP, campus de Marília, onde ele então atuava, mas realizado sob a orientação do grande catedrático em história do Brasil da USP, o mestre Sérgio Buarque de Holanda. Dedicou-se, durante sua longa carreira de pesquisador, a temas e problemas de pesquisa que faziam explodir os limites de sua amada cidade. Assim, desenvolveu projetos que exigiam cuidadoso trabalho investigativo, seja em arquivos portugueses, como os da Torre do Tombo, seja em instituições-memória do Rio de Janeiro, construindo uma sólida carreira de pesquisador que abrangia desde temas do período colonial brasileiro, focalizados na Bahia ou no Grão-Pará, ou ainda enfocanado a economia cafeeira durante o século XIX. Foi só a partir da década de 1980 que o intelectual, já experimentado e reconhecido nacional e internacionalmente, se deu o direito de voltar aos instrumentos teóricometodológicos que bem dominava, para esmiuçar e penetrar a realidade campineira, produzindo um conjunto de duas obras que reputo fundamentais para qualquer pesquisador ou estudioso que deseje compreender a realidade histórica e sociocultural de Campinas e região. Pensada, de início, como uma pesquisa que geraria uma única obra, que seria de cunho fundamental para o conhecimento da realidade de Campinas no período escravocrata, Amaral Lapa, entretanto, logo se deu conta de que seu desejo de estudar a escravidão urbana e a pobreza livre no meio urbano campineiro exigiria um cuidadoso levantamento de dados primários, até então não realizado nos arquivos, ainda pouco organizados da cidade. Constituiu uma equipe de jovens pesquisadores e, ao colocar mãos à obra, percebeu que, “[...] para estudar estas categorias sociais, esse segmentos, eu tenho de evidentemente de estudar a cidade, onde eu vou agitar esses personagens históricos”. 1 Percebeu ele também que a enorme quantidade de dados que iam sendo levantados e analisados resultaria numa produção impossível de ser publicada em um único volume. Decidiu então biparti-la, construindo primeiro o cenário histórico sociológico, que permitiria entender a vida na cidade oitocentista (o que realizou na obra de 1996, já há muito esgotada, publicada pela E DUSP com o título A cidade: os cantos e os antros), para, em seguida, estudar a vida e a luta dos excluídos na sociedade escravocrata de então, objeto do livro que ora apresento. 1
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Depoimento gravado no Museu da Imagem e do Som em 20/8/1985 e publicado em Olga R. de Moraes von Simson (org.), O garimpeiro dos cantos e antros de Campinas. Campinas: CMU, IFCH, 2000, pp. 17, 18, 61.
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Mas, ao fazê-lo, embora o sentimento de amor a Campinas estivesse presente durante todo o tempo, a preocupação com o caráter científico desse esforço de pesquisa, que nada tinha de apologético, domina-o, fazendo-o afirmar no mesmo depoimento concedido ao Museu da Imagem e do Som de Campinas, em agosto de 1985: [...] houve uma primeira fase em que eu me voltei muito para a história econômica do período colonial, depois, o que eu consideraria uma segunda fase, em que procurei estudar o século XIX, em termos de sociedade e historiografia brasileiras, isto é, eu considero como historiografia o processo, a análise crítica do processo de produção do conhecimento histórico [...]. E eu estou vivendo agora uma terceira fase, na qual a história de Campinas ocupa um espaço cada vez maior e eu me sinto cada vez mais, eu diria até seduzido, pela história de Campinas, não só no sentido de uma preservação, de uma utilização o mais eficiente possível das fontes primárias, como também no sentido de transformar essas fontes primárias em conhecimento que possa contribuir, de alguma maneira, para a história da realidade de Campinas e da região, isto é, o que ela significa como uma realidade que pode ser representativa sob o ponto de vista histórico.
Mais adiante ele reconhece a profundidade desse envolvimento, ao relatar: Hoje, eu me sinto engolfado completamente pela história de Campinas, acho que de uma maneira quase sentimental, eu diria que me foi dado, a esta altura da vida, uma oportunidade de eu, de alguma maneira, retribuir a Campinas o que eu devo a ela, ao nível de formação, de carreira, de obra intelectual [...]. Então, é algo mais que o simples interesse de historiador, um simples interesse ligado a uma carreira universitária, um simples interesse de utilizar tudo aquilo que a U NICAMP pode oferecer, nesse sentido, para fazer um trabalho, quer dizer, é algo mais que tudo isso, é uma empatia também.
O professor Amaral Lapa, para desenvolver esse projeto de pesquisa em equipe sobre a realidade histórico-social campineira, selecionou alunos da U NICAMP , que, na condição de bolsistas de iniciação científica ou de aperfeiçoamento, muito contribuíram para a produção do conhecimento sobre a cidade. Mas ele tinha também alguns objetivos muito mais amplos, que envolviam a formação de novos talentos para o exercício do fazer histórico, através de diversas táticas e estratégias muito bem desenvolvidas pelo experimentado mestre. Assim, ele se preocupou em desenvolver nesses jovens a disciplina necessária ao trabalho intelectual, fazendo-os participar conscientemente de todas as fases do processo de pesquisa. Fazia com que começassem pelas tarefas mais simples, que ele trazia descritas em linguagem informal e carinhosa em bilhetinhos datilografados, os quais iam sendo distribuídos entre os membros da equipe, sempre acompanhados de cuidadosa explicação. Uma cópia do bilhete ficava devidamente arquivada, permitindo, assim, ao mestre saber o que cobrar de quem, na seguinte reunião quinzenal. Nessas reuniões periódicas, Lapa dividia com seu grupo de bolsistas todas as descobertas e conquistas que a pesquisa ia fazendo, apontando os insights que havia tido e mostrando quais os pontos que ainda necessitavam de uma comprovação mais con-
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creta, orientando dessa forma a busca que realizavam nos arquivos. Quando um deles trazia, numa das reuniões, a comprovação documental esperada, era uma ocasião de regozijo, compartilhada por todos. Ao ensiná-los a trabalhar em pesquisa histórica, o professor Lapa era capaz de transmitir entusiasmo, desde a fase de aprovação do projeto (pelo CNPq ou pela F APESP , ou mesmo por ambas as instituições), passando pela finalização de cada uma das etapas, todas intensamente vivenciadas, até se chegar à aprovação final do relatório. Mas ele vivia, com especial ênfase, a conquista definitiva da publicação do artigo ou do livro, o que permitiria a divulgação mais ampla dos resultados da pesquisa. Lapa acreditava e batalhava pela pronta divulgação dos frutos do trabalho científico — num sentido mais amplo, que incluísse a sociedade em geral —, pois sabia que só ela é que faria com que essas descobertas fossem incorporadas ao viver cotidiano e às lutas sociais dos grupos estudados, como também faria com que a própria ciência ganhasse em prestígio e crescimento, no sentido de conquistar novos cultores e mais subsídios para seu desenvolvimento. A cada uma das reuniões quinzenais da equipe do projeto de pesquisa, Lapa fazia questão de trazer todas as novidades recebidas, tanto em livros como em periódicos, fossem eles os recém-chegados à Biblioteca do Centro de Memória ou aqueles por ele recebidos por meio dos contatos freqüentes que mantinha com colegas, ex-alunos, editoras e instituições de pesquisa nacionais e internacionais. Fazia-os, assim, conhecer o que de mais recente e inovador estava circulando na área da história e das ciências sociais, principalmente o que estava sendo produzido referente à temática então em pesquisa ou sobre temas a ela relacionados. O mestre também incentivava seus pupilos a publicar resenhas das obras mais recentemente editadas ou mesmo pequenos artigos, no sentido de já se irem formando como jovens escritores e construindo um início de currículo no campo profissional escolhido. Criava entre eles uma espécie de competição pela busca de documentos originais que viessem enriquecer a pesquisa. Assim, os arquivos, nem sempre bem organizados, passavam a ser vasculhados pelos jovens pesquisadores, no intuito de buscar as pistas fundamentais para a reconstrução do passado, sendo tais vestígios objeto de cuidadosa leitura e devida transcrição, seguida da análise competente, que permitia, pela crítica abalizada, sua inserção na trama do tecido que a pesquisa ia produzindo. Uma primeira versão do texto de um determinado capítulo era então produzida por ele, sendo apresentada e discutida por todos nas reuniões quinzenais. Tendo sido o texto revisto nessa ocasião, ele algumas vezes o entregava para ser digitado por um dos bolsistas, de modo a fazê-lo apropriar-se do prazer de ver a versão definitiva de um capítulo nascer do trabalho de suas próprias mãos, versão esta que, no entanto, a cada leitura sofria acréscimos e correções, em um constante burilar. Lapa era um mestre no sentido próprio da palavra (homem sabedor e que ensina), pois com segurança introduzia e acompanhava seus pupilos nas várias fases da construção do conhecimento. Ele gostava de trabalhar com os graduandos e retirava energia desses contatos, que se repetiam no mínimo quinzenalmente. Estava sempre
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preocupado em ensiná-los a pesquisar e fazia com que aprendessem também a introduzir os colegas recém-chegados ao projeto. Incentivava-os a ensinar as técnicas do trabalho científico que já dominavam e a ajudar os colegas neófitos a compreender os emaranhados caminhos da pesquisa, servindo, assim, como jovens introdutores dos menos experientes nos projetos em andamento. Dessa forma, preparava-os para serem também futuros docentes, ao dominarem os vários talentos que a carreira universitária exige. Hoje, conversando com os jovens que participaram desse projeto, é possível perceber que, através dessas estratégias, Lapa ajudou todos eles a definir com muita clareza sua trajetória profissional futura. Todos se envolveram definitivamente com a atividade de pesquisa e estão continuando, na pós-graduação, o que haviam iniciado sob sua tutela, ainda na graduação. Alguns, que faziam paralelamente outros cursos de graduação, abandonaram essas outras opções para se concentrarem na pesquisa histórica, estando hoje já em fase de doutorado. Outros que cursavam carreiras próximas, como a de ciências sociais, por exemplo, se redirecionaram para a história social, tal a paixão que desenvolveram pela pesquisa em arquivos. Podemos dizer que o trabalho de alguns anos, necessário à elaboração do conjunto de dois livros que se complementam (pois dialogam por meio de temas que guardam muitas correlações diretas), que ora se completa com a publicação póstuma da segunda obra, constituiu um projeto construído pela junção de muitos talentos e esforços, magistralmente conjugados e orquestrados pelo maestro Lapa. Além de gerar essas duas obras, fundamentalmente necessárias para o conhecimento da história social de Campinas e região, Amaral Lapa, ao desvendar o vasto território da vivência dos excluídos na cidade escravocrata, formou também um grupo de pesquisadores movidos e alimentados pela mesma paixão que o movia: a construção do conhecimento histórico. Essa foi a melhor dádiva que o decano professor poderia deixar para seus orientandos e para a Universidade. Olga Rodrigues de Moraes von Simson Centro de Memória da U NICAMP
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Introdução
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origem deste livro está ligada a um projeto, com o qual pretendíamos estudar a prática da escravidão por parte das classes populares. Numa sociedade em que supostamente era fácil o acesso à propriedade do escravo e, em princípio, todos podiam e deviam ter escravos, uma vez que o trabalho braçal não era digno do homem livre, mas próprio do escravo, nossa expectativa então era a de conhecermos como se teciam as relações sociais de trabalho entre pequenos senhores e seus poucos escravos no meio urbano. Surpreende-nos verificar pessoas pobres — quitandeiras, velhas viúvas, aguadeiros humildes e até mendigos e escravos — tendo escravos! Como funcionava esse mercado? Que circuito contemplava? Como se processava o cotidiano, a vida privada, a intimidade entre esses senhores e seus escravos? Como se resolviam suas tensões, como se procedia a sua solidariedade? E os problemas de alimentação, alojamento e abrigo, de vestuário e costumes, de repouso e lazer, de mobilidade e controle, de resistência e rebelião? Nessa altura do nosso conhecimento, seria válido concluirmos pela generalização de que, afinal, o que ocorria com os grandes senhores e seus plantéis era o mesmo que marcava as relações entre os pequenos senhores de poucos escravos? Munidos de hipóteses e cheios de interrogações, lançamo-nos a esse projeto, para nos convencermos, afinal, de que, diante das limitações impostas pelas fontes, não 15
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conseguiríamos desvendar esse universo, mas antes vislumbramos dois universos, que então se confundiam — o da pobreza livre e o da escravidão urbanas —, sem se cruzarem, contudo, em relação ao que conseguimos em nossa pesquisa. Com essa conclusão, chegamos tanto ao homem pobre livre quanto ao escravo, ambos vivendo na cidade, resultando neste livro, que, num primeiro momento, aborda a pobreza e, num segundo, a escravidão. Quanto à primeira parte, que enfoca a pobreza, decidimos estender o tempo histórico estudado — de 1850 a 1930 —, a fim de acompanhar não apenas a liquidação do escravismo, mas a transformação de ambos os universos, graças às outras grandes mudanças, como a do regime político e do Estado e a da imigração e urbanização. Essa parte é dividida em três capítulos: “Os miseráveis”, “A administração da pobreza” e “A criança pobre”. No primeiro capítulo, procuramos dar os contornos do pauperismo urbano, definindo e conceituando as subcategorias no interior do segmento considerado pobre, detendo-nos no estudo da filantropia, das estratégias de sobrevivência e reprodução da classe. No segundo capítulo, é tratada a institucionalização do assistencialismo através da ação da Igreja e do Estado e da mobilização da sociedade, implicando o confinamento, a disciplina e a higienização dos pobres, enquanto no terceiro capítulo, graças a uma massa de informações oferecidas pelas fontes, representadas por séries documentais como o censo de órfãos e os processos de tutela e curatela, bem como de adoção, foi possível penetrar no mundo das crianças pobres e de seu valimento perante a Justiça e o aparato institucional que vai dos asilos às creches. Na verdade, essa primeira parte foi motivada por dois momentos da vida do autor. O primeiro, mais remoto, foi quando, por ocasião da realização do I Simpósio de Professores de História do Ensino Superior, em Marília (São Paulo), em 1961, tivemos a oportunidade de conhecer o professor Michel Mollat. Nossa aproximação e as longas conversas mantidas então foram motivadas pelo interesse comum pela história marítima, pois ele presidia a Comissão Internacional de História Marítima, enquanto nós preparávamos, sob a orientação de Sérgio Buarque de Holanda, nossa tese de doutorado, que resultou no livro A Bahia e a carreira da Índia. Contraímos com o professor Mollat uma dívida pelas atenções com que nos distinguiu nos anos que se seguiram, colocando-nos dentro do ativo circuito dos estudiosos que, em diferentes países, pesquisam sobre história marítima, realizando reuniões periódicas das quais resultam publicações significativas. Naqueles dias, em nossa sala, nos intervalos das sessões do simpósio, falou-nos também de um seminário de pesquisa que estava para iniciar na Sorbonne, do qual, anos depois, verificaríamos a ressonância pelos resultados alcançados, dos quais uma admirável mostra foi incluída nos Etudes sur l’histoire de la pauvreté, em dois volumes (1974), e no livro Les pauvres an Moyen Age (1978), este já traduzido para o português.1 Foi o bastante para motivar-nos a não perder de vista esse tema para uma futura abordagem em termos do Brasil. 1
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Michel Mollat, Os pobres na Idade Média. Rio de Janeiro: Campus, 1989.
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Compromissos e interesses outros de pesquisa distanciaram-nos, todavia, de um investimento mais firme e permanente naquela direção, sem prejuízo de algumas investidas ligeiras, das quais demos conta em pelo menos duas oportunidades. 2 O segundo momento deu-se muitos anos depois, na U NICAMP , ao fazermos uma leitura mais dirigida de O capital, quando nos ocorreu a idéia de que haveria uma especificidade a ser mais bem conhecida sobre as origens, evolução e administração da pobreza numa formação econômico-social, que na verdade não chegava a ser feudal e tampouco capitalista: o escravismo que avançou pelo Brasil desde a colônia e ao longo do século XIX. Esse objeto foi sendo definido em termos do espaço social de três cidades representativas no período a ser estudado nesse sentido: Rio de Janeiro, São Paulo e Campinas, no interior de São Paulo. Estávamos na década de 1980. Mas a vastidão da empresa intimidou-nos até que, com um projeto mais recente que havíamos terminado sobre a cidade de Campinas, 3 concluímos por restringir o antigo projeto de estudo a essa cidade, pólo de uma região que, supostamente, a emergência capitalista privilegiou, ainda em plena vigência do escravismo. Assim e por isso, acabamos por acoplar ao estudo do pauperismo alguns estudos da escravidão urbana, no mesmo espaço físico e tempo histórico. O roteiro de leituras que havíamos cumprido sobre o Rio de Janeiro e São Paulo não foi perdido, mas revelou-se útil sobretudo pela comparação possível de ser feita entre a sociedade campineira — que apresenta, na segunda metade do século XIX, uma população de escravos das maiores da província — e as sociedades da Corte e da capital da província de São Paulo, para o período considerado. Aproximações e identificações entre as três cidades serão encontradas, portanto, ao longo deste estudo. Não alcançamos, desse modo, a interseção de ambos os universos, o da escravidão e o da pobreza livre, no que se inclui a utilização da primeira pela segunda, deixando, assim, de mostrar em que condições se dão sua aproximação, identificação, solidariedade e pacto ou seu distanciamento, suas tensões e conflitos. Procuramos, ainda, acompanhar o que sucede com a pobreza na transição do escravismo para o capitalismo numa cidade que viveu intensamente essa passagem. São então acionados novos mecanismos de sustentação e controle dos pobres que a ordem social emergente impõe como pré-requisitos à sua viabilização. Nesse sentido, o discurso e a prática convergem para o enaltecimento do trabalho como recurso de superação da pobreza, o que significa dizer que o não-trabalho se identifica com a vadiagem, que é mãe do crime, da imoralidade, dos vícios, da preguiça. 4 Ora, essa proposição encontrava resistências num universo em que o trabalho, 2
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Fizemos exposições seguidas de debates sobre o projeto em 12 de setembro de 1976, quando da realização do III Encontro Regional dos Professores Universitários de História, realizado em Santos, e em 28 de setembro de 1977, na aula de encerramento do curso As Artes no Brasil do Século XIX, promovido pela Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia na Pinacoteca do Estado, em São Paulo. José Roberto do Amaral Lapa, A cidade: os cantos e os antros (Campinas 1850-1900). São Paulo: EDUSP, 1996. Maria Clara Tomaz Machado, “A institucionalização da pobreza no espaço urbano burguês”, Caderno de História, no 2, ano 2, Universidade Federal de Uberlândia, jan., 1991, p. 55.
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como dissemos, era próprio do escravo, e uma suposta ociosidade parecia, portanto, permear toda a sociedade. Motivar e impelir para o trabalho, dentro do controle social, disciplinar e reprimir, se necessário for, para que a pobreza seja útil, desde que mantida nos lugares que lhe são destinados, com o comportamento moral que os valores burgueses exigem. Esses são os códigos que parecem prevalecer nessa transição. Essa é a “pobreza necessária” à reprodução do sistema, que, sob controle, não é para gerar tensões nem constituir ameaça. Aí, na feliz expressão de Silviano Santiago, inventamos os pobres e admitimos a pobreza como problema social. Na produção acadêmica sobre a pobreza no Brasil, as abordagens no geral não conseguiram fugir de um viés que se define pelo sistema de produção, em cuja inserção os trabalhadores sinonimizam os pobres. Fora desse esquema, já se cai na marginalidade e, portanto, aí os pobres são identificados com o banditismo, o crime, a prostituição, a mendicância e outros fenômenos da patologia social, constituindo a classe perigosa. Neste estudo, procuramos seguir uma terceira via de abordagem: nem os trabalhadores (operariado) inseridos no sistema de produção ligado à grande lavoura de exportação e ao mercado de trabalho dela decorrente, portanto a força de trabalho organizada, nem os do lumpemproletariado, a marginalidade da qual, entretanto, não foram de todo excluídos, pois vagam também pelo universo que procuramos desvendar. Esse universo, no entanto, é povoado por legiões de desgraçados, excluídos, diríamos hoje, que, se não estão inseridos na economia formal e muitas vezes até na informal, não caíram também no submundo. Assim, a pobreza urbana livre que enfocamos sobrevive em seu próprio mundo, que consegue reproduzir-se nem sempre atrelado ao sistema ou contra este se insurgindo. Daí insistirmos que não nos assistiu uma preocupação central no estudo em associar a pobreza ao sistema de produção, no caso ligado, como dissemos, à grande lavoura cafeeira de exportação e ao mercado de trabalho dela decorrente, o que nos afastou, portanto, de um recorte específico em relação à massa operária enquanto tal. Embora no discurso e na prática social a alusão ao trabalho esteja presente, e até nas intenções e decisões, na verdade verificamos que os protagonistas que recolhemos nestas páginas, egressos ou não, dirigindo-se ou não para o mercado de trabalho, sobrevivem à sua margem, numa economia informal, e, na verdade, procuram em grande parte não exercê-lo ou estão impossibilitados de exercê-lo, vivendo muito mais da caridade pública. Fazem exceção apenas os órfãos, destinados, treinados e encaminhados para o mercado de trabalho. No mais, são os inválidos de toda ordem, os doentes, e entre eles os leprosos, os anciãos e mendigos em suas legiões. Constituem, portanto, uma população explícita, expressiva no conjunto da sociedade local, que logrou mobilizá-la em um movimento consciente, articulado, de arregimentação de vontades e recursos, de institucionalização de iniciativas, de socialização de esforços e sobre trabalhos daqueles que se destinaram a esse mister. Nativos que nasceram, viveram e morreram sem sequer tomar conhecimento do universo senhorial e, em seguida, burguês que a economia cafeeira nutriu; imigrantes que, cumprindo ou
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não o estágio agrícola, vêm sobreviver na cidade, entregues à economia informal ou à caridade pública; egressos da escravidão que conseguem o teto, a cama, a mesa e o pão a partir de uma rede intrincada de parentesco, vizinhança, agremiação, solidariedade que se auto-sustenta e dribla a morte, explorando a vida em seus interstícios. Já se verificou que os pobres urbanos no Brasil da época que tratamos, apesar de sua grande quantidade, estavam divididos e, por isso, enfraquecidos, e só conseguiram canalizar seu potencial de revolta a um nível mais organizado a partir das greves de 1917-1920, manifestações que não são, porém, nosso objeto de estudo. 5 No aparato filantrópico que se monta e com o qual se opera, conjugam-se o Estado, a Igreja e a escola, sem que, todavia, haja necessariamente uma articulação dessas frentes em relação à pobreza, embora os objetivos sejam comuns. Nesse sentido, não deixamos de chegar a praticar uma história institucional nos momentos em que foi necessário conhecer a prática assistencial de entidades voltadas para o amparo da pobreza. Nos enfoques em que o comportamento e as manifestações permitiram, os pobres foram objeto aqui de uma história social e cultural, sendo observados, portanto, exercitando ora o amor, a tolerância e a renúncia, ora o ódio e a violência espontânea. E aí foi possível mostrar identificação de atores e sua trajetória de vida, mas de muito poucos, que cumprem — ou até se insurgem contra — seu destino. As indagações sobre a origem e a evolução da pobreza sempre remontam a uma fatalidade da natureza e da condição humana, na qual a desigualdade entre os homens em termos de capacidade, aptidões, talento etc. pesaria para, através do trabalho, assegurar a sobrevivência e a reprodução numa economia natural de autoconsumo até acumular excedentes e, então, gerar o escambo e o comércio, produzindo nesse processo a desigualdade da riqueza e da pobreza. Elementar, portanto. Seria inerente à vida em sociedade, o que acompanharia o homem na complexidade, nas mutações e nas diversificações que a ordem social apresenta ao longo da história. Ideologias e utopias, filosofias e práticas políticas tentaram eliminar a pobreza, dado que ela significa carência, privação e, portanto, a não-satisfação das necessidades, a humilhação, a insegurança, a tensão social, o sofrimento, enfim. Se eliminá-la jamais se conseguiu, suas alternâncias em termos de redução ou recrudescimento marcam a história da humanidade, provocando naturalmente posicionamentos, opções e porfias, que têm como objeto a pobreza. No final do século XX, houve uma explícita globalização de sua presença nos dois hemisférios e nos regimes políticos os mais diversos, o que permite até mensurações universais que alertam para a fantástica cifra de um bilhão de mendigos no mundo, portanto sem moradia, vivendo da caridade pública, aos quais se acrescentam mais 500 milhões de miseráveis vivendo na linha de pobreza ou abaixo do que se considera miséria absoluta. 6
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June E. Hahner, Pobreza e política: os pobres urbanos no Brasil (1870-1920). Brasília: Editora UnB, 1996, pp. 318-19. Entrevista de Wally N’Dow, secretário-geral da Conferência Habitat 2, ao Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 11 fev., 1996.
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De 1990 a 1997, o número de pessoas que sofre fome crônica teve uma queda de 40 milhões, restando, entretanto, 790 milhões nessa condição. Juntam-se, ainda, dados fornecidos pela Organizações das Nações Unidas e pelo Banco Mundial, que apontam para uma aceleração do crescimento da pobreza no mundo em 400 milhões nos últimos cinco anos, o que dá uma média de 80 milhões de pessoas por ano! Dos seis bilhões de habitantes do planeta, metade sobrevive com menos de 2 dólares por dia! Há razões de sobra, portanto, para a ONU ter consagrado o ano de 1996 como Ano Internacional para a Erradicação da Pobreza e o dia 17 de outubro de cada ano como Dia Mundial contra a Miséria. Dos Estados Unidos à China, da Rússia ao México, da Suíça à Índia, sem falar na África, a pobreza apresenta-se em todas as suas gradações classificatórias com tendências crescentes que o discurso acadêmico e a prática política não conseguem deter. A Revolução Industrial, as novas versões do capitalismo, as mobilizações da Igreja católica e suas teologias optando pelos pobres se revelaram, se não fracassadas nesse sentido, muito distantes da solução substantiva para o fenômeno. No caso do Brasil, país que, ao longo de sua história, apresentou sempre indicadores muito altos de pobreza, no final do século XX as perspectivas eram inquietantes no tocante à miséria e aos miseráveis, que seriam cerca de 25 milhões, i.e., brasileiros com mais de 16 anos que se situam no piso da pirâmide social, abaixo da linha da pobreza, com nível de renda muito baixo, ocupação indefinida e alto percentual de analfabetismo e de desnutrição e doenças que comprometem sua produtividade, quando não sua própria vida. Os conceitos que definem e classificam a estratificação da pirâmide social no Brasil e em São Paulo com os recursos modernos que são operados para a obtenção desses resultados apontam que, para o nosso estado, teríamos a seguinte distribuição no total da população: 15% de destituídos pela elite e batalhadores, 19% de remediados, 16% de deslocados, 22% de pobres e, abaixo destes, 16% de despossuídos e 12% de miseráveis. 7 Na segunda parte do livro, detivemo-nos em mostrar, em três capítulos, situações da vida urbana da população escrava em Campinas: como funcionava seu mercado urbano de trabalho, momentos de seu cotidiano e uma leitura do corpo do escravo. Assim, no capítulo “O mercado urbano de escravos”, procuramos estudar os diferentes circuitos nos quais funciona esse mercado, o comércio clandestino de escravos no interior de São Paulo, depois da extinção do tráfico, a origem, a permanência e as negociações dos traficantes, quando de passagem pela cidade, bem como o comércio estabelecido. No capítulo “O cotidiano do escravo na cidade”, há reflexões sobre a disciplina que recai sobre os escravos, quer quando estejam no trabalho, quer quando estejam descansando ou se furtando em trabalhar; o capítulo reporta-se à presença do escravo na história de Campinas, desde a sua primeira hora, bem como ainda se registra, através de vários casos, como se expressavam os laços de amizade e solidariedade entre senhores e escravos ou as tensões, as pendências e os litígios que se estabeleciam entre ambos e os demais circunstantes. Nesse capítulo, temos ainda as formas através das quais os 7
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“Mapa da exclusão”, Folha de S. Paulo, 26 set., 1998.
Os excluídos
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