Poesia

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GUILHERME IX DE AQUITÂNIA

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Reitor FERNANDO FERREIRA COSTA Coordenador Geral da Universidade EDGAR SALVADORI DE DECCA

Conselho Editorial Presidente PAULO FRANCHETTI ALCIR PÉCORA – ARLEY RAMOS MORENO EDUARDO DELGADO ASSAD – JOSÉ A. R. GONTIJO JOSÉ ROBERTO ZAN – MARCELO KNOBEL SEDI HIRANO – YARO BURIAN JUNIOR


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GUILHERME IX DE AQUITÂNIA

POESIA

tradução e introdução

A r n a l d o S a r a i va


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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELO SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNICAMP DIRETORIA DE TRATAMENTO DA INFORMAÇÃO G945p

Guilherme IX, Duque de Aquitânia, 1071-1127. Poesia / Guilherme IX de Aquitânia; tradução e introdução: Arnaldo Saraiva. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009. 1. Poesia provençal. 2. Trovadores. 3. Amor cortês. I. Saraiva, Arnaldo. II. Título. CDD

ISBN

978-85-268-0839-3

849.14 808.814 809.93354

Índice para catálogo sistemático: 1. Poesia provençal 2. Trovadores 3. Amor cortês

849.14 808.814 809.93354

The economics of industrial innovation Published in the United States by Oxford University Press Inc., New York Copyright © by Arnaldo Saraiva Copyright © 2009 by Editora da Unicamp

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ÍNDICE Esta edição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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I. Companho, farai un vers [tot] covinen . . . . . . . . . . . . . . Companheiros, farei um poema excelente. . . . . . . . . . . II. Compaigno, non puosc mudar qu’eo no m’effrei . . . . . . . . Companheiros, não direi que aborrecido . . . . . . . . . . . III. Companho, tant ai agutz d’avols conres. . . . . . . . . . . . . . Companheiros, dão-me tão mau tratamento . . . . . . . . IV. Farai un vers de dreit nien . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Farei versos de puro nada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . V. Farai un vers, pos mi sonelh . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Farei um poema, tenho sono . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . VI. Ben vuelh que sapchon li pluzor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Quero que saibam com rigor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . VII. Pus vezem de novel florir . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Pois vemos que já refloresce . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . VIII. Farai chansoneta nueva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Farei cançoneta nova . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IX. Mout jauzens me prenc en amar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Cheio de gozo estou a amar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . X. Ab la dolchor del temps novel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Com tempo doce e renovado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XI. Pos de chantar m’es pres talenz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Pois de cantar estou carente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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E S TA E D I Ç Ã O

O meu fascínio pela poesia trovadoresca nasceu quando, ainda menino, li alguns dos primeiros poemas que se escreveram em língua portuguesa, e que, de Martin Codax, Pero Meogo, D. Dinis, Joan Zorro, Joan Airas de Santiago, Martin Moya etc., ainda hoje tenho por joias poéticas. Mas só quando frequentava o primeiro ano da Faculdade de Letras de Lisboa senti necessidade de aprofundar o seu estudo, ao mesmo tempo em que aprofundava o da língua portuguesa medieval (e não esqueço que tive então Serafim da Silva Neto como professor). Foi nessa altura que descobri os trovadores occitânicos e outros, das áreas da Itália e da Alemanha, também com a ajuda preciosa da obra de Segismundo Spina Apresentação da lírica trovadoresca, que saíra três ou quatro anos antes — em 1956 — pela Livraria Acadêmica do Rio de Janeiro (curiosamente, a 2ª- edição, publicada em 1972 pela Grifo carioca e pela Edusp, seria dedicada “à memória de Serafim da Silva Neto”). Antologia crítica, com introdução, comentários e glossário, a obra do esquecido professor de São Paulo só não me pareceu modelar nas traduções prosaicas dos poemas, de que aliás dava a versão original. Mas devo dizer que também me desgostavam as traduções francesas dos trovadores, incluindo as da grande antologia Les Troubadours, que em 1966 publicaram René Nelli e René Lavaud.

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Nesse mesmo ano publicou Augusto de Campos no Correio da Manhã carioca o estudo “Amor & humor nas canções de Guilherme IX”, que recolheria no livro Traduzir & Trovar (1968), onde vem acompanhado dos dois poemas que traduzira daquele poeta (distintos dos três que traduzira Spina), e a que deu os sugestivos títulos “O teste do gato” e “O lance de dados” (mais tarde, em Verso Reverso Controverso, de 1978, acrescentar-lhes-ia “Canção”). Essas duas traduções fizeram-me ver melhor a modernidade da poesia de Guilherme IX de Aquitânia e alertaram-me para a possibilidade da sua boa “mutação” para o português (tanto na modalidade mais “inventiva”, como a quis — de acordo com uma sólida teoria — Augusto de Campos, quanto na modalidade mais “literal”, como eu, que admiro a “invenção” de Augusto, a quero). Assim, facilmente se compreenderão a expressão da minha gratidão e também a da minha alegria por ver editada na terra de Segismundo Spina e de Augusto de Campos a tradução completa dos poemas do primeiro trovador que publiquei há um ano em Portugal. Porto, 11 de fevereiro de 2009. Arnaldo Saraiva

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I N T RO D U Ç Ã O Arnaldo Saraiva


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A Aquitânia de Guilherme IX (1086-1126)

OCEANO ATLÂNTICO

In Gerald A. Bond, The Poetry of William VII, Count of Poitiers, IX Duke of Aquitaine (1982).


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GRANDE GUILHERME A Herberto Helder A Augusto de Campos

Por incrível que pareça, só com este volume se editam pela primeira vez em português ou se traduzem pela primeira vez em português os 11 poemas que nos chegaram de Guilherme IX de Aquitânia. De alguns deles já havia traduções avulsas, de que adiante falaremos; mas espanta que nem nas últimas décadas, em que se traduziram e celebraram em português, de Portugal ou do Brasil, tantos poetas menores de várias línguas, tenha suscitado grande atenção (a tradutores como a historiadores e a ensaístas) a produção preservada do “fundador” da poesia ocidental, do inventor do “amor cortês”, do fabuloso criador de poemas emblemáticos sobre a arte de viver, de amar e de poetar, criador que Ezra Pound considerou tão moderno naquela época como na nossa1. O espanto é ainda maior quando se pensa que a literatura em português começou pela poesia trovadoresca, que muito deveu aos trovadores occitânicos2, não por acaso louvados e imitados por D. Dinis3; e é no primeiro deles, por sinal também o primeiro a usar o verbo “trovar”, que está a fonte de alguns tópicos dessa poesia, desde o elogio e o medo da amada à “joi” amorosa, desde o autoencarecimento poético ao desconcerto do mundo ou do sujeito. Esta edição corresponde a um desejo que eu próprio alimentava desde que pude ler na língua original, não já em degradadas traduções Esprit des Littératures Romanes, Paris, Christian Bourgois, 1966, p. 56. V. Maria da Conceição Vilhena, Rapports entre le Portugal et la Provence, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1984; Jean-Marie d’Heur,Troubadours d’Oc et Troubadours Galiciens-Portugais, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1973. 3 “Quer’eu en maneira de proençal / fazer agora um cantar d’amor”; “Proençaes soen mui ben trobar / e dizen eles que é con amor” (V. Álvaro J. da Costa Pimpão, Cancioneiro d’el-Rei D. Dinis, Coimbra, Atlântida, 1960, p. 43 e p. 46; podemos encontrar ligeiras variantes ortográficas nas edições D. Dinis — Cancioneiro, Lisboa, Editorial Teorema, 1988, da responsabilidade de Nuno Júdice, e Do Cancioneiro de D. Dinis, São Paulo, FTD, 1995). 1 2

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francesas, esses 11 poemas antológicos, ou pelo menos desde que traduzi o primeiro, em 1970, embora só o tenha publicado em 1988. Sempre solicitado por muitas tarefas, ou sempre empenhado no percurso de vários territórios culturais, não fui tão rápido como queria, também porque, no meu propósito de traduzir com um máximo de literalidade e um máximo de poeticidade, me confrontei com dificuldades que chegaram a parecer-me insuperáveis, e que me paralisaram por anos. Porque a língua às vezes flutuante ou incerta, frequentemente monossilábica e quase sempre elíptica dos textos de Guilherme IX de Aquitânia, ou a sua versificação rigorosa e inventiva, em que sobressai a invulgar energia fonorrítmica, põem muitos problemas a um tradutor que, como eu, gosta de respeitar até os limites perigosos de outra língua — no caso, da mesma família — os esquemas métricos, rítmicos e rimáticos, e, se possível, não só a semântica mas também a sintaxe e a simbólica dos textos originais. Se nem sempre consegui chegar a soluções coerentes e satisfatórias, consola-me a ideia de ser o único tradutor de Guilherme IX de Aquitânia que quis seguir integralmente os seus esquemas versificatórios, recusando a tradução em prosa ou a tradução poética mais ou menos livre.

O nome Alguns problemas dos textos de Guilherme IX de Aquitânia podem ser logo figurados ou indiciados pelas variantes ou variações com que o seu nome aparece em manuscritos, em histórias, em histórias da literatura, em ensaios e em coleções de poesia:

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— Guilhem — Guilhelm — Guillaume (e naturalmente: — Guilherme — Guillermo — Guglielmo — William etc.)

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de Peytius de Peiteus de Peitieus de Peitieu de Peiteu de Peitau de Poitou de Poitiers VII de Poitiers Coms Cos Comte Conde Count Duc Duque Duke

de Aquitania /Aquitaine, Aquitânia IX de Aquitânia

IX Duque de Aquitânia, VII Conde de Poitiers VII Conde de Poitiers, IX Duque de Aquitânia Se no seu tempo foi mais conhecido como Coms de Peiteus (ou de Peitieu), se ao que parece o prénom mais autorizado deve ser o de Guilhem, na versão do seu “lemozi”, talvez a nomeação internacional hoje mais comum seja a de Guillaume de Poitiers, que devemos liminarmente recusar; trata-se da tradução do nome em francês, que começou por ser a “langue d’oïl” de que a “langue d’oc” do poeta se queria distinta e até oposta. Pela parte que me toca, optei pela tradução do nome em português, optando também pelo apelido mais importante ou de maior abrangência.

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A biografia Se o nome de Guilherme IX de Aquitânia é plural, a personalidade dele, essa é singular. Nascido em 1071, falecido aos 54 anos, em 1126 (não em 1127, como se lê frequentemente), foi célebre e admirado não só como poeta mas também como chefe político, malgrado alguns fracassos, e como homem invulgar. Conhece-se o que a seu respeito diz uma das 101 Vidas, biografias de trovadores que foram escritas por anônimos — salvo duas ou três — dos séculos XIII e XIV: O Conde de Peitieus foi um dos maiores homens corteses do mundo e um dos maiores sedutores de donas, e bom cavaleiro de armas e liberal em cortejar, e soube trovar e cantar bem. E andou longo tempo pelo mundo para enganar as donas. E teve um filho que tomou por mulher a duqueza de Normandia, de que teve uma filha que foi mulher do rei Henrique da Inglaterra, mãe do Rei Jovem [Henrique] e de Ricardo [Coração de Leão] e do Conde Jaufre da Bretanha4. As “vidas” dos primeiros trovadores não se livravam de lendas e até de erros, como o que há na referência ao casamento do “filho” (Guilherme VIII Conde de Poitiers) com a duquesa da Normandia. Mas a fama da relação de Guilherme IX com as mulheres, decerto ajudada por alguns dos seus poemas, seria bem assinalada por vários autores. O das Vidas dá-o como um dos maiores “trichadors de dompnas”, isto é, um sedutor, enganador e gozador de senhoras 4 Martín de Riquer, Los Trovadores, Historia Literaria y Textos, 2ª ed., t. I, Barcelona, Editorial Ariel, 1989, p. 112. As Vidas foram editadas com introdução e notas por Jean Boutière e A. H. Schutz, Biographies des Troubadours, Toulouse / Paris, Privat / Didier, 1950, edição que I.-M. Cluzel refundiu em 1964, com reimpressão em 1973.

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(pense-se no francês “tricher”). Outros deram-no como “veemente amador de mulheres” (Gofredo de Vigeois), perdido no “lamaçal dos vícios” (Guilherme de Malmesbury), “inimigo de todo o pudor e santidade” (Gofredo Grosso), ou como histrião, folgazão, faceto e libertino, e, obviamente, como “excomungado”. Mas também já foi dado como um homem ou um poeta “bifronte”5, defensor de virtudes corteses e cristãs, militante de duas cruzadas, fundador de um mosteiro, protetor de religiosos, pecador arrependido. Mais importante do que uma qualificação dicotômica, que até pode valer-se de textos fictivos ou paródicos como se o não fossem, é assinalar alguns acontecimentos da vida do poeta6. Filho de Gui-Geoffroi, conhecido como Guilherme VI conde de Poitiers e VIII duque de Aquitânia, e da filha de um duque da Borgonha, Audearda, com quem aquele casou em terceiras núpcias, Guilherme IX de Aquitânia só em 1076 foi reconhecido como filho legítimo, por o papa não ter aprovado o casamento dos seus pais, dado o grau de parentesco que havia entre eles. Guilherme teria uma irmã dois anos mais nova do que ele, Agnes, que viria a casar com Pedro, o futuro rei de Aragão, e um irmão, Hugo. Em 1086 morreu-lhe o pai, tornando-se por isso, aos 15 anos, senhor de vastos domínios, “mais extensos do que os do rei da França, de quem era nominalmente vassalo”. Três anos depois casaria com Hermengarda de Anjou, que era quase cinco anos mais velha do que ele, e de quem se separaria em 1091. Voltou a casar em 1094, com Filipa-Matilde de Toulouse, jovem viúva de Afonso I de Aragão, que lhe daria vários filhos, entre os quais Gui5 Pio Rajna, “Guglielmo, conte di Poitiers, trovatore bifronte”, in Mélanges de Linguistique et de Littérature Offerts à M. Alfred Jeanroy, Paris, 1928. 6 Correm várias biografias de Guilherme IX de Aquitânia. A última será a de Michel Dillange, Guillaume IX d’Aquitaine:le Duc Troubadour, La Crèche, Geste Éditions, 2003. A penúltima será a de Bernard Félix, Guillaume le Troubadour: Duc d’Aquitaine Fastueux et Scandaleux, Aubéron, 2002. Em várias outras obras de que nos valeremos encontra-se o essencial da biografia do poeta, nomeadamente na edição crítica de Gerald A. Bond, adiante referido, na de Jean-Charles Payen, também adiante referido, e na obra já referida de Martín de Riquer.

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lherme; este seria seu sucessor no condado e no ducado, e seria também o pai da célebre Leonor, Eleanor ou Aliénor, que foi grande protetora de trovadores e artistas, que casou com um príncipe, dias depois rei Luís VII de França, e que, repudiada, logo casou com o futuro rei da Inglaterra, Henrique II, de quem teve, entre outros, os filhos Ricardo Coração de Leão e João sem Terra. Ela viveria os seus últimos anos retirada na abadia de Fontevrault, onde em 1115 também entrara a sua avó Filipa-Matilde, ao que parece desgostosa com as relações do marido com outras mulheres, entre as quais a famosa Dangerosa-Maubergeonne, que era casada com Aimeric I, visconde de Châtellerault. Em 1095, o papa Urbano II anunciou em Clermont a realização da primeira cruzada para a conquista de Jerusalém. Guilherme IX de Aquitânia, que já se havia envolvido em lutas com Toulouse e com o rei Filipe I de França — por sinal alinhando com Guilherme Rufus, rei de Inglaterra —, parte em 1101 em cruzada, mas o seu exército foi derrotado em Heracleia (Turquia), escapando ele por pouco, o que não o impediu de chegar em peregrinação a Jerusalém. No regresso a Poitiers, cerca de ano e meio depois, escapou também por pouco a uma tempestade marítima. E ao longo dos anos entrou em diversos e às vezes violentos conflitos (num deles foi ferido numa perna) com vizinhos, vassalos e bispos, dois dos quais (Pedro II de Poitiers e Girard de Angoulême) por duas vezes o excomungaram, pelo menos na segunda vez, em 1114, por causa das relações adúlteras com a Dangerosa, que passara a ser sua companheira pública, e cuja filha Ainor casaria com o seu filho Guilherme. Mas a excomunhão foi-lhe levantada em 1117, e, três anos depois, Guilherme IX partia em cruzada contra os mouros de Espanha, apoiando com sucesso o rei Afonso de Aragão na batalha de Cutanda. Quase no fim da sua vida ainda se viu envolvido em disputas contra os inimigos do poder de Poitiers. Morreria nessa cidade que tanto valorizou e prestigiou no dia 10 de fevereiro de 1126, tendo sido enterrado na abadia de São João Evangelista de Montierneuf.

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Os manuscritos De acordo com Martín de Riquer, “há uns 95 cancioneiros provençais”, que guardam as 2.542 composições de cerca de 350 trovadores, de nome conhecido ou “acidentalmente anônimos”7. Mais extensos ou menos extensos, mais ricos ou menos ricos, mais ordenados ou menos ordenados, devem-se a copistas de vários tempos e de várias origens ou formações, e foram em grande maioria elaborados nos séculos XIII e XIV, portanto em data tardia em relação à maior parte dos trovadores, sobretudo em relação ao primeiro deles. Por 10 desses cancioneiros se distribuem os 11 poemas (há quem diga 10, mas sem grande fundamento) de Guilherme IX de Aquitânia — que certamente compôs mais, perdidos como a música que os acompanhava, alguma também da sua autoria. Esses cancioneiros — às vezes designados pelo título, outras só pela letra que, em repertórios como o de C. Brunel8, os identifica — são os seguintes: C — Biblioteca Nacional de Paris copiado em Narbonne, século XIV D — Biblioteca Estense de Módena copiado em Itália, 1254 E — Biblioteca Nacional de Paris copiado no Languedoc, século XIV I —Biblioteca Nacional de Paris copiado em Itália, século XIII K — Biblioteca Nacional de Paris copiado em Itália, século XIII N — The Pierpont Morgan Library (de Nova Iorque) copiado em Itália, século XIV 7 8

Op. cit., p. 12 e p. 9. Bibliographie des Manuscrits Littéraires en Ancien Provençal, Paris, 1935.

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R — Biblioteca Nacional de Paris copiado no Languedoc, século XIV V — Biblioteca Nacional Marciana, Veneza copiado na Catalunha, em 1268 1 a — Biblioteca Estense de Módena copiado em 1589 de um cancioneiro dos séculos XIII-XIV, com duas cópias separadas α — citação no Breviari d’Amor de Matfre Ermengau O último poema (XI) de Guilherme IX de Aquitânia aparece em sete manuscritos, o poema VI em quatro, o V e o VII em três, o I, o IV, o IX e o X em dois, o II, o III e o VIII em um.

Problemas textuais Como acontece com a maioria dos textos manuscritos medievais (veja-se o que sucede com os cancioneiros portugueses), não é fácil chegar a uma lição unânime dos poemas de Guilherme IX de Aquitânia. Os manuscritos podem conter erros e falhas, ou variantes ortográficas, sintáticas, prosódicas, lexicais; variantes às vezes simples, às vezes complexas, que melhor justificariam o nome de variações. Vários fatores contribuíram para a existência dessas variantes ou variações: desconhecimento do manuscrito autoral, se o houve, reprodução escrita tardia ou em tempos distintos, problemas na passagem da oralidade à escrita, incompetência, descuido ou diversidade dos copistas e da sua letra, deficiente estado do suporte dos textos, má leitura da letra ou mau entendimento do significado das palavras. Mas não podemos esquecer que Guilherme e os trovadores usavam uma língua nova, o “roman” dito “d’oc”, que não estava codificada ou não tinha a relativa estabilidade de uma língua com uma gramática definida, antes se decompunha em dialetos, socioletos, idioletos.

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Problemas linguísticos Com a queda do Império Romano do Ocidente (no ano 476), a língua latina também entrou, na Gália como na Ibéria, numa fase de desestabilização, começando a fraturar-se em falares regionais e locais, e transformando-se mais tarde nas línguas românicas, em que hoje é possível distinguir o grupo galo-romano “d’oc” (occitânico, gascão, catalão), “d’oïl” (francês e franco-provençal) e cisalpino (galo-itálico e reto-friulano), o grupo ibero-romano (português e castelhano), o grupo ítalo-romano (italiano e sardo), assim como é possível distinguir a oriente o grupo balcano-romano (romeno e dálmata). Na Gália, por volta do século XI já se tornava notória a diferença entre o falar “lati” e o falar “roman” a que aludiria um poema (XI) do Duque de Aquitânia, assim como entre a língua dos “francigenae” do Norte e dos “provinciales” do Sul, a que no século XIII se daria o nome respectivamente de língua “d’oïl” e língua “d’oc”, por assim se dizer “sim” nessas línguas. Como advertiu Chabaneau e lembrou J. Anglade, o nome “provençal” não se devia a nenhuma superioridade literária sobre os outros dialetos; devia-se apenas ao fato de se chamar “Provença” ao antigo território da “Província Romana”, que portanto não coincidia com a região chamada “Provença”, e até da Aquitânia9. Daí a preferência atual pela referência à “língua d’oc”, a que parece ter aludido pela primeira vez Dante no seu De Vulgari Eloquentia. No tempo de Guilherme IX, o mais prestigiado dialeto da língua d’oc era o que ele, apesar de ser poitevin, usou10, e com ele outros trovaGrammaire de l’Ancien Provençal, Paris, C. Klincksieck, 1921, p. 7. Pierre Bec interrogou-se sobre as razões da opção de Guilherme IX: “Pourquoi a-t-il choisi cette langue et l’a-t-il efectivement choisie? Etait-elle pour lui langue usuelle et maternelle, ou simplement langue de culture?/ … / c’était la langue de ses états du sud et le Midi était son centre d’attraction naturel; pour des raisons littéraires ensuite: le limousin étant la langue par excellence de la poésie lyrique, comme le sera plus tard le galaico-portugais dans la péninsule ibérique” (Nouvelle Anthologie de la Lyrique Occitane du Moyen Age, 2 ª- ed., Avignon, Aubanel, 1972, p. 9). 9

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dores, o lemosi (ou lemozi). Essa palavra foi usada pela primeira vez pelo trovador catalão Raimon Vidal de Besalu na sua obra Razos de Trobar, onde escreveu: “La parladura Francesa val mais et /es / plus avinenz a far romanz e pasturellas; mas cella de Lemozin val mais per far vers e cansons et serventes; et per totas las terras de nostre lengage son de major autoritat li cantar de la lenga Lemosina que de negun’autra parladura”11. Língua dos trovadores, a língua d’oc, ou o seu dialeto lemosi, levanta ainda hoje, quando já se conhecem várias gramáticas e dicionários do antigo ou do moderno occitânico, delicados problemas à crítica textual e genética, e à leitura ou à tradução. Às vezes o mesmo manuscrito pode conter variantes do mesmo substantivo (homem: om, hom, ome) ou do mesmo verbo (sou: soi, sui, son, so; faço: fatz, fas, fau, fauc, fach). E quanto a versos, bastaria ver as diferenças assinaladas no verso nº- 38 do poema XI por Gerald A. Bond12: D — quei vengan tut e monren fort IK — queil vengan tuit e monren fort N — veignon tuh sai al meu conort a1 — veignon tuit zai al meu confort C — que sion metge mon cofort R — sian de mi e moron fort

As edições Compreendem-se assim as diversas tentativas que desde 1905, desde Alfred Jeanroy (primeiro na revista Annales du Midi, nº- 17, depois no livro Les Chansons de Guillaume IX, Duc d’Aquitaine, Paris, Champion,1913; revista e corrigida noutra edição do mesmo editor 11 12

Id., ibid. V. p. lxxxiii da obra citada na página seguinte.

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