História d'As mil e uma noites

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Universidade Estadual de Campinas Reitor Fernando Ferreira Costa Coordenador Geral da Universidade Edgar Salvadori de Decca

Conselho Editorial Presidente Paulo Franchetti Alcir Pécora – Arley Ramos Moreno Eduardo Delgado Assad – José A. R. Gontijo José Roberto Zan – Marcelo Knobel Sedi Hirano – Yaro Burian Junior

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Cláudio Giordano

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ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação Giordano, Cláudio. G437h História d’As mil e uma noites/Cláudio Giordano. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes, 2009. 1. Ficção árabe. I. Título. cdd 892.735

isbn 978-85-268-0834-8 Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção árabe

892.735

Copyright © by Cláudio Giordano Copyright © 2009 by Editora da Unicamp Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em sistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor. Apoio da Biblioteca Paulo Masuti Levy

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Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes Caixa Postal 19022 cep 04505-970 São Paulo-sp claudioliber@yahoo.com.br.

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Aos amigos Alberto Augusto JĂşnior Paulo Masuti Levy

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Sumário

Explicação ..............................................................................................  Pórtico .....................................................................................................  Apresentação das Noites ................................................................  Origem das Noites ...............................................................................  As Noites no Ocidente ....................................................................  Antoine Galland, o descobridor d’As mil e uma noites ............................................................................................  Os tradutores eruditos das Noites ................................................  Gustavo Weil .....................................................................................  Edward W. Lane ...............................................................................  John Payne .........................................................................................  Richard Francis Burton....................................................................  Joseph Charles Mardrus ..................................................................  Tradução italiana ..............................................................................  Rafael Cansinos Assens ...................................................................  Outras traduções francesas..............................................................  Edições em português ...................................................................... 

Referências bibliográficas..............................................................  Adendos Prefácio de Richard F. Burton a sua tradução das Noites ............................................................................. 

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A edição de Burton por subscrição .......................................  Abertura das Noites de Burton ................................................  Palavras de Galland sobre as Noites .......................................  As mil e uma noites e os escritores ..........................................  “Novo entretenimento d’As mil e uma noites”, Horace Walpole ..................................................................................  “O milésimo segundo conto de Sherazade”, Edgar Allan Poe ................................................................................. 

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Explicação

Não carece repetir-se a história de minha introdução no mundo de As mil e uma noites, já relatada noutra parte*, graças à erudição do primeiro amigo da dedicatória; basta aqui explicar que este opúsculo é decorrência dela. A primeira redação, fruto do entusiasmo nascido então, ficou esquecida por muito tempo, com esporádica tentativa de retomada mais tarde. A ressurreição de agora se deve também a outro entusiasmo — do segundo amigo da dedicatória. Em curta viagem a Buenos Aires, consumimos a maior parte do tempo visitando os sebos (isto é, meia dúzia das dezenas deles) e lá o amigo comprou a coleção das Noites árabes na tradução de Mardrus:  belíssimos volumes in-fólio, ricamente encadernados e ilustrados; adquiriu também os três profusos volumes da tradução de Cansinos. Claro que de volta à rotina brasileira prosseguimos discorrendo sobre a saga oriental. Lembrou-me então o que eu escrevera e dei a ler ao amigo, que, achando-o de interesse, sugeriu que *

Revista Bibliográfica & Cultural, São Paulo, no , maio, , pp. -. Vejam-se também o no  da mesma revista, pp. -, e o no  do boletim Nanico, São Paulo, março, .

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talvez valesse a pena, dando-lhe acabamento, publicá-lo. Acresce que nos últimos anos têm ocorrido (re)edições brasileiras de traduções das Noites, merecendo destaque a que foi publicada pela Editora Globo, feita diretamente dos originais árabes por Mamede Mustafa Jarouche. Entenda-se, pois, que estas anotações se originaram nos primeiros anos de , sendo complementadas para a presente publicação. Sirvam as ilustrações de colorido, e de moldura as peças agregadas em apêndice com o propósito de realçar esta discreta resenha histórica que oxalá sirva de proveito e estímulo aos já leitores (e aos novos) do fabuloso universo d’As mil e uma noites. C. Giordano

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Pórtico* Nossa intenção única e esforço aqui foram no sentido de propiciar ao leitor brasileiro uma visão, o quanto possível consistente, do que é este repositório gigantesco e fascinante de contos e cultura orientais, entre nós conhecido por As mil e uma noites. Escorço histórico não erudito nem exaustivo, mas suficientemente informativo das origens e presença das Noites árabes (como gostam de chamá-las os ingleses) no Ocidente. Talvez fosse mais prático reproduzir o conhecido ensaio de J. L. Borges(), ou a retomada do tema feita por ele  anos mais tarde, e onde sua pena mágica consegue ainda escrever: “As Noites terão outros tradutores e cada tradutor dará uma versão diferente ao livro; de modo que poderíamos falar de muitos livros chamados As mil e uma noites”(). *

Os números entre parênteses ao longo do texto se reportam aos itens das “Referências bibliográficas”.

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Borges foi-nos inspiração; preferimos, porém, discreto afastamento dele, até para não roubar, àqueles que ainda não tiveram oportunidade de lê-lo, o prazer de um primeiro contato com sabor de novidade. Valemo-nos basicamente das informações constantes nos estudos dos conhecidos tradutores John Payne, Richard Francis Burton, estes do final do século passado, e Rafael Cansinos Assens, mais recente. Oxalá sirvam estas páginas para aumentar o interesse do leitor brasileiro por esse mundo maravilhoso e encantado da fantasia oriental e, quem sabe, para provocar os brios de nossos editores e homens de letras, a fim de que façam acontecer na língua portuguesa uma tradução direta dos originais árabes*. Afinal de contas, todas as demais línguas ocidentais já têm sua versão (em alguns casos, diversas) das histórias de Sherazade, feitas com base não em outras traduções, mas nas edições de manuscritos que nem Galland chegou a conhecer. Muitas razões nos levam a essa esperança; mencionamos somente esta, roubada de Georges May(): Outro indício que nos faz esperar o retorno do público de nosso tempo a esse livro é sua estrutura de modelo de uma literatura de prazer, que é ao mesmo tempo uma literatura de qualidade. Mesmo que [...] o prazer não baste de per si, e não seja um fim em si n’As mil e uma noites, é fora de dúvida que elas são

*

Lembre-se de que escrevíamos em meados de .

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seguramente uma das grandes obras-primas disso que chamamos literatura de prazer, ou, para retomar a fórmula de A. Miquel, “esse livro maior de nossa literatura do prazer absoluto”. [...] O prazer, como o riso, não alcança toda a sua força, senão quando partilhado. Tendo pessoalmente extraído um prazer de tão alta qualidade da leitura deste livro — tanto em nossa infância quanto no limiar da velhice — sonhamos aumentá-lo mais, atraindo para Galland todo o público que ele merece. Cumprindo ainda a boa ação de enfim dissipar a invisibilidade de sua obra-prima, esse numeroso público será com isso recompensado de imediato pelo enriquecimento que terá trazido a sua própria existência, pela satisfação de poder, uma vez terminada a leitura, sentir-se, como Shariar, mais civilizado do que antes, e pelo prazer de saber que se poderá daí em diante dizer dele, como do sultão da Pérsia e das Índias: “Seu espírito suavizou-se”.

Pórtico

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Apresentação das Noites Antoine Galland, a quem devemos a divulgação das Noites no Ocidente, diz na “Advertência” discreta aposta ao primeiro volume de sua tradução(): Desnecessário prevenir o leitor quanto ao mérito e à beleza dos contos reunidos nesta obra. Eles se recomendam por si mesmos. De fato, que há de mais engenhoso do que ter conseguido organizar um conjunto de quantidade tão prodigiosa de contos, cuja variedade é surpreendente e o encadeamento tão admirável, que parecem feitos para compor o arsenal imenso de onde estes foram extraídos? Digo arsenal imenso porque o original árabe, intitulado As mil e uma noites, tem  partes, sendo esta apenas a primeira que se publica. Ignora-se o nome do autor de tão grande obra-prima; mas, provavelmente, não é fruto de uma só mão, pois, como se poderia crer que um homem apenas tivesse a imaginação suficientemente fértil para suprir tanta ficção? [...] Devem ainda [os contos] agradar mais pelos usos e costumes dos orientais, pelas cerimônias de sua religião, tanto pagã quanto maometana;

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e essas coisas estão mais bem assinaladas neles do que nos autores que sobre elas escreveram e do que nos relatos dos viajantes. Todos os orientais, persas, tártaros e hindus aí se destacam e aparecem tais quais são, desde os soberanos até as pessoas da mais baixa condição. Assim, sem precisar sofrer a fadiga de ir procurar esses povos em seus países, terá aqui o leitor o prazer de vê-los agir e escutá-los falar*.

Pode-se buscar uma apresentação mais solene, como esta de Michel Gall(): As mil e uma noites são uma vulgarização de todas as idéias e de todos os “arquivos” do Oriente Médio e do Extremo Oriente, desde a pré-história até  anos atrás. Constituem, sem dúvida, a obra de vulgarização não-enciclopédica mais ambiciosa que jamais se realizou. Misturam e resumem, em estranha osmose, tudo o que o engenho humano recebeu e criou no curso de vários milênios. O campo geográfico a que se referem é uma gigantesca franja de terreno de uns  mil quilômetros de cumprimento e uns  mil de largura, que vai desde Toledo até Bornéu e os confins da China. As mil e uma noites são uma enorme coleção de contos, redigidos em árabe na sua forma definitiva entre os séculos XIII e XV. Os  contos que abrangem têm origem bem diversas. Procedem da Índia, Egito, Grécia, Arábia propriamente dita (fala-se do Corão, mas também dos deuses pré-islâmicos). Alguns têm um cenário histórico (Bagdá ou Cairo, no século VIII). Outros são mitos, cuja origem se perde na noite dos tempos.

*

Veja-se o texto completo nos Adendos.

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As considerações de Cansinos Assens() não são menos compreensivas: Na forma em que chegaram até nós, As mil e uma noites pertencem de corpo e alma à literatura árabe. As mil e uma noites são um livro árabe, ou melhor, são o livro árabe por antonomásia, a epopéia em prosa de um povo que não teve um Firdusi que a colocasse em versos. O Corão e As mil e uma noites são as duas grandes criações do gênio árabe, os dois retratos simbólicos que de si mesmo nos legou esse povo, inimigo, por terror ideológico, das imagens plásticas: o Corão, no religioso e eterno, e As mil e uma noites, no temporal e profano, completam a visão dessa raça sem pintores e quase sem espelhos. Assim como Maomé recolheu em seu Corão todas as tradições religiosas de seu tempo e alistou-as sob sua bandeira verde, pondo-as a serviço de Alá, sem reparar em sua procedência hebraica, cristã ou gnóstica — e para enriquecer seu livro, não teve escrúpulos em saquear a Bíblia e o Talmud —, assim também os compiladores do livro profano tomaram seus elementos de todas as partes, nele encerraram todo o folclore universal de seu tempo e o lançaram aos séculos futuros, marcado com o selo imparcial de seu califa máximo. E assim como Maomé encerra o ciclo da profecia e a revelação e é o último dos enviados — assim também As mil e uma noites clausuram o ciclo das tradições profanas e são o último grande livro que a imaginação poética dos homens produziu. Se o Corão anula todos os demais livros no conceito religioso dos árabes, As mil e uma noites eclipsam Apresentação das Noites

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com seu esplendor sideral todas as demais obras de fantasia [...]. Não há hipérbole excessiva ao dizer-se que As mil e uma noites são a epopéia racial dos árabes, já que nesse livro magno acomodaram seus anais e fastos, suas lendas e suas histórias, sua memória de raça tradicionalmente errática e rica, portanto em suas recordações de todo o tipo, e em tudo isso apuseram como selo o destino de Alá — do mesmo modo que na Ilíada grega o destino a tudo preside e de tudo dispõe [...].

Há os que dão uma interpretação esotérica às Noites. Roso de Luna, em O véu de Ísis, faz “uma interpretação teosófica de As mil e uma noites, usando como chave a Doutrina secreta, de Madame Blavatski”. Para ele, As mil e uma noites não são [...] a grande obra imaginativa dos contistas árabes, mas sim a obra iniciática por excelência da raça árabe [...], devendo antes ser conhecida em seu espírito do que em sua letra [...]. O véu da obra começa já em seu título, composto de um hieróglifo, “mil e uma”, e de um nome simbólico, “noite”, equivalente ao de ocultamento ou véu, e esse hieróglifo é em si mesmo uma chave das mais antigas e preciosas. “Mil e uma” em simbologia numérica e levemente modificada converte-se em ‘Tau’, no Caduceu de Mercúrio, na Serpente do Éden e na de Moisés no deserto, ou seja, na serpente do bem e do mal. Dessa maneira, “Mil e uma noites” equivale foneticamente a O véu de Ísis, ou seja, ao Livro em que jazem ocultas certas verdades iniciáticas.

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Depois de nove densos volumes (a essa altura não cogitava ele ainda nos seis volumes suplementares que editaria) de sua tradução e notas exuberantes, bizarras, curiosas, eruditas e o mais que se queira, assim inicia Richard F. Burton seu minucioso “Ensaio final”, que se inclui no volume (): O leitor que tenha chegado até esse ponto dificilmente exigirá de mim a afirmação de que travou conhecimento com o que o árabe medieval tem de melhor, e talvez de pior. Percorrendo a miríade de quadros desse vasto panorama, aqueles que sabem sentir a aura do bem nas coisas más perceberão a nobreza genuína da mente do muçulmano da Idade Média e a pureza de sua vida — do berço à sepultura [...]. Considerada numa fase mais elevada, a mente medieval muçulmana exibe, como o Egito antigo, a mais alta idéia de moral, a mais profunda reverência por tudo que se relacione com sua religião e uma concepção sublime da Unidade e Onipotência da Divindade. Merecedora de nota também é a resignação altiva às decisões do Fado e da Sorte (Kazá wa Kadar), do Destino e da Predestinação — característica que enobrece os aspectos menores do Islã, mesmo nesses seus dias de relativa degenerescência e decadência regional. Daí sua moderação na prosperidade, sua fortaleza na adversidade, sua dignidade, seu perfeito autodomínio e, por fim, seu sublime quietismo que assume toque verdadeiramente heróico. E isso tudo é ainda atenuado e temperado por uma fé simples na supremacia do Amor sobre o Medo, um humanitarismo e uma caridade ilimitada pelos pobres e pelos desamparados; um perdão incondicional às ofensas mais horrendas

Apresentação das Noites

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(que é a marca dos nobres); uma generosidade e uma liberalidade que às vezes parecem impossíveis, e um entusiasmo pela benevolência e beneficência universais que, louvando benignamente os feitos realizados pelo homem, acima de qualquer outra forma de santidade, constituem a raiz e a base da cortesia oriental — para não dizer de qualquer outra. E esse complexo todo é coroado de autenticidade pura e de confiança natural no progresso e aperfeiçoamento da natureza humana, que o muçulmano antes louva que denigre; aliás, nisso reside para ele a pedra angular da sociedade, e mesmo o fim último da existência dela. Seu pessimismo assemelha-se muito mais ao otimismo tomado de empréstimo aos antigos coptas (pelos chamados Livros de Moisés) do que à crença lúgubre e melancólica do verdadeiro pessimista — como, por exemplo, Salomão, o hebreu, o budista hindu e os europeus esotéricos, imitadores do budismo. O muçulmano não pode senão suspirar diante do pecado e da tristeza, do Pathos e do Patético, e sente piedade por isso — com todas as mudanças e transformações que levam a nada, com suas pequeninas felicidades e misérias ingentes. No entanto, sua melancolia traduz-se numa Voz divinamente suave e todavia não menos divinamente triste. Nem se lamenta ele, à maneira dos desesperançados; está absolutamente convicto da recompensa futura; entretanto, seu impulso poético vívido, a poesia das idéias — não dos versos formais — e seu idealismo inato e transbordante insuflam ânimo no mais simples evento do cotidiano insípido e despertam as harmonias

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