História de quinze dias

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Machado de Assis HISTÓRIA DE QUINZE DIAS

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Universidade Estadual de Campinas Reitor Fernando Ferreira Costa Coordenador Geral da Universidade Edgar Salvadori de Decca

Conselho Editorial Presidente Paulo Franchetti Alcir Pécora – Arley Ramos Moreno Eduardo Delgado Assad – José A. R. Gontijo José Roberto Zan – Marcelo Knobel Sedi Hirano – Yaro Burian Junior

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Machado de Assis HISTÓRIA DE QUINZE DIAS

organização, introdução e notas

Leonardo Affonso de Miranda Pereira

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ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação As76h

Assis, Machado de, 1839-1908. História de quinze dias / Machado de Assis; organização, introdução e notas: Leonardo Affonso de Miranda Pereira. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2009.

1. Ficção brasileira. 2. Literatura brasileira. 3. Brasil – História – Séc. XIX. I. Pereira, Leonardo Affonso de Miranda, 1968- II. Título. cdd B869.341 B869 981.08 isbn 978-85-268-0861-4 Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção brasileira 2. Literatura brasileira 3. Brasil – História – Séc. XIX

B869.341 B869 981.08

Copyright © by Leonardo Affonso de Miranda Pereira Copyright © 2009 by Editora da Unicamp

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Agradecimentos

Pelas próprias dificuldades associadas a um empreendimento do gênero, a organização de um volume crítico como este é necessariamente o fruto de um esforço que extrapola em muito a capacidade individual de um organizador. O livro que o leitor tem em mãos é por isso o resultado da dedicação e do apoio de diferentes pessoas e instituições. A tarefa de coordenar a transcrição das crônicas a partir dos originais da Illustração Brasileira coube a Flávia Peral, do Cecult–Unicamp — através da qual agradeço a todos os que tomaram parte no trabalho. Karen Souza, que foi bolsista do mesmo centro, não só ajudou em sua iniciação científica no esforço de decifração das referências presentes nas crônicas, como ainda escreveu uma dissertação sobre a revista Semana Illustrada cujas conclusões foram de grande valia para o presente trabalho. Julia O’Donnell tornou mais divertido o processo de comparação entre o texto transcrito e os originais. Já a idéia de organizar este volume é tributária da proveitosa convivência intelectual com um grupo de colegas do qual fazem parte Sidney Chalhoub, Jefferson Cano, Lucia Granja e Ana Flavia Cernic Ramos. Reunido com o objetivo de disponibilizar ao público edições completas e comentadas de diferentes séries de crônicas escritas por Machado de Assis — tarefa para a qual pudemos contar com o apoio do CNPq, que nos ajudou a financiar a empreitada por meio de seu Edital Universal —, esse grupo não só me ajudou a definir um modelo a ser adotado nesta edição, mas também iluminou (seja através de sugestões e críticas diretas ou de suas próprias pesquisas) a interpretação aqui proposta para a série.

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Sumário

Introdução ................................................................................................................................................. 9

Crônica 1 –

1 o de julho de 1876 ............................................................................................... 59

Crônica 2 –

15 de julho de 1876

Crônica 3 –

1 de agosto de 1876 ............................................................................................ 75

Crônica 4 –

15 de agosto de 1876 ........................................................................................... 83

Crônica 5 –

1 o de setembro de 1876 ...................................................................................... 89

Crônica 6 –

15 de setembro de 1876 ..................................................................................... 99

Crônica 7 –

1 o de outubro de 1876 .................................................................................... 107

Crônica 8 –

15 de outubro de 1876 .................................................................................... 115

Crônica 9 –

1 o de novembro de 1876 ................................................................................. 123

............................................................................................ 69

o

Crônica 10 –

15 de novembro de 1876 ............................................................................. 127

Crônica 11 –

1 o de dezembro de 1876 ............................................................................... 133

Crônica 12 –

15 de dezembro de 1876 .............................................................................. 143

Crônica 13 –

1 o de janeiro de 1877 ...................................................................................... 147

Crônica 14 –

15 de janeiro de 1877 .................................................................................... 155

Crônica 15 –

1 o de fevereiro de 1877 ................................................................................. 161

Crônica 16 –

15 de fevereiro de 1877 ................................................................................ 165

Crônica 17 –

1 o de março de 1877 ....................................................................................... 171

Crônica 18 –

15 de março de 1877 ...................................................................................... 175

Crônica 19 –

1 o de abril de 1877 ........................................................................................... 181

Crônica 20 –

15 de abril de 1877 .......................................................................................... 187

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Crônica 21 –

1 o de maio de 1877 .......................................................................................... 191

Crônica 22 –

15 de maio de 1877 ......................................................................................... 197

Crônica 23 –

1 o de junho de 1877 ....................................................................................... 203

Crônica 24 –

15 de junho de 1877 ....................................................................................... 209

Crônica 25 –

1 o de julho de 1877 ......................................................................................... 215

Crônica 26 –

15 de julho de 1877 ........................................................................................ 219

Crônica 27 –

1 o de agosto de 1877 ....................................................................................... 223

Crônica 28 –

15 de agosto de 1877 ..................................................................................... 229

Crônica 29 –

1 o de setembro de 1877 ................................................................................ 233

Crônica 30 –

15 de setembro de 1877 ............................................................................... 239

Crônica 31 –

1 o de outubro de 1877 ................................................................................... 241

Crônica 32 –

15 de outubro de 1877 .................................................................................. 247

Crônica 33 –

1 o de novembro de 1877 .............................................................................. 253

Crônica 34 –

15 de novembro de 1877 ............................................................................. 259

Crônica 35 –

1 o de dezembro de 1877 ............................................................................... 265

Crônica 36 –

15 de dezembro de 1877 .............................................................................. 271

Crônica 37 –

1 o de janeiro de 1878 ..................................................................................... 275

Crônica 38 –

Fevereiro de 1878 ............................................................................................. 281

Crônica 39 –

Março de 1878 ................................................................................................... 287

Crônica 40 –

Abril de 1878 ...................................................................................................... 291

Índice de assuntos ........................................................................................................................ 295 Índice onomástico ......................................................................................................................... 299

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Introdução

Em julho de 1876, pouco depois de completar 37 anos, Machado de Assis assumia mais um desafio literário: a redação de uma série de crônicas quinzenais, para a qual deu o título de “História de quinze dias”. Fazia-o a partir do primeiro número da revista Illustração Brasileira, elegante novidade que se apresentava naquele mês aos leitores do Rio de Janeiro. Como era costume entre os cronistas do período, não punha seu próprio nome em tais escritos, preferindo assiná-los com um pseudônimo. Em meio às incertezas que marcavam aquela década, tratava de oferecer ao público uma leitura do tempo, organizado na história proposta por sua narrativa quinzenal. Machado atravessava, naqueles anos, um momento central de sua trajetória literária, no qual os críticos costumam reconhecer um sensível amadurecimento de sua produção. Ao deixar de lado os modelos românticos com os quais dialogara nos primeiros romances e contos, começava a buscar novas formas narrativas de expressão, que viriam a alterar-lhe substancialmente a prosa. Resulta daí, na crítica da atualidade, a delimitação de dois momentos bem distintos da obra do autor — em virada habitualmente localizada entre 1878 e 1880, quando ele publicaria as Memórias póstumas de Brás Cubas1. Construída somente a partir da leitura de romances e contos, tal idéia não incorpora, porém, uma reflexão a respeito de sua produção como cronista. Elaboradas para o brilho efêmero das folhas periódicas, as crônicas de Machado foram

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muitas vezes tratadas como uma parte menos importante do legado que deixou, e ficaram por tempos esquecidas pela posteridade — servindo apenas, quando muito, para compreender diretamente as opiniões e os pontos de vista do autor2. A desatenção em relação a tal produção se deve, em grande parte, à própria dificuldade de leitura desses escritos. Por serem pouco acessíveis, e lidarem com temas cotidianos de difícil compreensão para leitores de outro tempo, as crônicas de Machado de Assis acabaram por compor um capítulo pouco estudado de sua obra. Estudos recentes, entretanto, têm demonstrado a importância que ele mesmo atribuiu ao gênero em sua trajetória. Seja através do esforço de decifrar referências já obscuras na atualidade ou de uma tentativa de inserir essas crônicas na perspectiva mais geral de sua produção, tais estudos evidenciam o cuidado com o qual o próprio Machado produziu crônicas3. Ao atentarem para tal fato, abrem uma brecha para que possamos empreender uma leitura mais cuidadosa desses textos, que leve em conta sua dimensão propriamente literária. Não se trata, no entanto, de tarefa fácil. Perdidas em antigos jornais e revistas, tais crônicas somente se fazem acessíveis através de um esforço de pesquisa que as recupere para o grande público. No caso da série “História de quinze dias”, esse problema é diminuído pela identificação do pseudônimo e pela publicação de seu texto empreendida em edições anteriores das obras completas de Machado de Assis4. Estas se apresentam, porém, de forma precária, com muitas imprecisões e poucas notas e explicações que ajudem a enfrentar temas por vezes de difícil compreensão para o leitor da atualidade. É assim como uma tentativa de revisitar tais escritos, de modo a recuperar tanto a integridade desses artigos quanto as redes sociais a partir das quais eles ganhavam sentido, que se apresenta este volume.

A participação de Machado na Illustração Brasileira não chegava, naquele momento, a constituir uma surpresa. Editada pelos irmãos Carlos

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Introdução

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e Henrique Fleiuss, a revista surgia poucos meses depois do desaparecimento da Semana Illustrada, outra publicação igualmente por eles dirigida. Fundada em dezembro de 1860, ela circulara, ininterruptamente, até abril de 1876, e saíra de circulação apenas dois meses antes do lançamento da nova folha. Machado colaborara regularmente com a revista, para a qual escrevera crônicas assinadas por “Dr. Semana” — personagem-narrador sob o qual se escondiam diferentes redatores5. Seus laços de afinidade com os irmãos Fleiuss já eram, por isso, conhecidos do público carioca do período. Ainda que fossem evidentes os laços de continuidade entre as duas empreitadas, as revistas guardavam também importantes elementos de diferenciação. A Semana Illustrada tinha como propósito fazer do humor uma forma de reflexão sobre os problemas e vícios das elites imperiais, em especial através do uso da caricatura. Já a Illustração Brasileira mostrava, desde o início, ter objetivos mais graves. Por mais que se assentasse também na força das imagens, como denuncia o próprio título, o sentido dessas ilustrações já se afastaria em muito do humor presente na primeira publicação. “O Sr. Fleiuss, que, há pouco, deixou a direção de um semanário, também ilustrado, de maior popularidade e aceitação, preferiu à caricatura a gravura séria”, explicava o redator de um jornal paulista ao comentar o recebimento do primeiro número da nova publicação. Além de abandonarem a sátira que marcara a publicação anterior, os irmãos Fleiuss ainda definiriam para a nova revista um perfil gráfico muito mais esmerado e luxuoso — que faria um redator do jornal Democracia, de Lisboa, afirmar que o novo periódico rivalizaria, “tanto na sua redação quanto no apuro das suas gravuras, com os seus congêneres, mais apreciados nos países de maior cultura intelectual e artística”. “Já podemos mandar à França e à Inglaterra os nossos jornais, e sem receio de confrontação”, comemorava outro articulista, evidenciando o caráter refinado definido para a nova publicação por seus editores 6. O sentido de tal mudança de perspectiva ficava claro no número de lançamento da nova revista, no qual era apresentado ao público leitor o programa da publicação. Essa apresentação se iniciava com a afirmação de que o Brasil seria admirado no exterior somente “pela magni-

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ficência assombrosa da natureza”. “Uma paisagem com um selvagem no primeiro plano é ainda o emblema do império, aos olhos do estrangeiro”, comentavam os editores em tom de reclamação. Com o intuito de refinar tal imagem, tentavam fazer da nova revista um meio de exibição de um outro perfil da nação, mais ligado aos princípios da ilustração (mencionada no próprio título da revista) do que aos desígnios da natureza. Ao lado das páginas de “eterna beleza” das paisagens brasileiras, incluiriam por isso imagens que indicassem “o progresso e a civilização do país” — fosse em seu aspecto físico, atestado pelos edifícios públicos, cidades e estradas de ferro; em seu desenvolvimento humano, representado por “retratos dos nossos homens notáveis”; ou em relação à força de uma cultura nacional em formação, expressa pelas representações das “cerimônias públicas, usos, costumes, tipos nacionais”. Ainda que não abrisse mão do impulso de educar os leitores, levando a eles “tudo o que houver de melhor, mais interessante e recomendável das outras partes do mundo”, a nova revista tinha assim como objetivo primeiro a exibição de uma imagem valorosa do Império no Brasil e no exterior, em uma afirmação de força da nacionalidade brasileira7. Um detalhe dessa página de apresentação conferia ao texto uma perspectiva específica. Em uma das três colunas da página de abertura do primeiro número, um elaborado desenho representava três mulheres seminuas, como estátuas helênicas, envolvendo um brasão. No seu centro, os dizeres “Independência e verdade”. “Não é política a nossa folha, isto é, não defenderá idéias nem sentimentos exclusivos de algum partido”, esclareciam os editores no texto de apresentação, como a explicar o sentido da alusão. Embora reconhecessem que tratariam de política, afirmavam que o fariam “em sentido doutrinário e geral, terreno em que todos os partidos podem dar-se as mãos”. Ao colocarem-se acima das diferenças entre conservadores e liberais, tratavam de atribuir à própria publicação a marca da objetividade — na tentativa de negar qualquer interesse por detrás de suas páginas capaz de colocar em dúvida a força da nacionalidade que tentavam afirmar. Se tal programa tinha nas representações iconográficas um meio privilegiado de afirmação, ele se estendia igualmente para os textos es-

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critos — que ocupavam, a cada número, quatro das oito páginas da revista. “Confiada a penas hábeis e inteligências esclarecidas”, como apregoado pelos editores nesse texto de apresentação, a redação dos artigos ali publicados constituiria parte do mesmo impulso descrito inicialmente por seus editores. Ainda que esses escritos fossem assinados com pseudônimos, sua autoria não parecia um mistério para os contemporâneos — que mostravam reconhecer a presença nas páginas da revista de nomes como Joaquim Manuel de Macedo, Emílio Zaluar e do próprio Machado de Assis. Este já aparecia como um dos destaques da revista para um articulista de São Paulo, que via em seus artigos um dos méritos da nova publicação8. Tais crônicas se harmonizavam, desse modo, com o perfil mais geral da publicação, e representavam nela importante papel. Era como parte de tal proposta que Machado de Assis daria forma à “História de quinze dias”, uma seção fixa na nova revista. O título, aparentemente casual, ligava-se à própria definição clássica da crônica. Na acepção dos antigos cronistas dos séculos XV e XVI, ela se caracterizaria por fazer o simples registro ou narração dos fatos vistos ou vividos — assemelhando-se, dessa forma, à história, tal como concebida no século XIX9. O nome atribuído à coluna indicava, desse modo, a intenção de acompanhar os acontecimentos do período e de retratá-los nesses textos quinzenais, cumprindo as obrigações básicas do gênero. Ao adotá-lo, no entanto, o cronista não deixava de dialogar também com os intuitos mais amplos da revista de que fazia parte. Em vez de simplesmente escrever textos “ao acaso”, ou de chamá-los de “notas” ou “comentários”, como fizera em ocasiões anteriores, optava por um título associado ao mesmo tempo à grandeza e à objetividade. Em uma publicação que tinha por programa expor as glórias do Império brasileiro, Machado ornava a sua série com a força da história, uma das bases principais de afirmação da nacionalidade10. Como todo ornamento, no entanto, também esse podia servir à dissimulação. Quando propôs o título de sua coluna, Machado de Assis já não era um neófito no gênero. Ele iniciara suas atividades de cronista ainda em 1860, no Diario do Rio de Janeiro — folha liberal na qual pu-

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blicou as séries “Comentários da semana”, “Ao acaso” e “Semana literária”11. Bem sabia, por isso, que não era com as definições clássicas sobre a crônica que dialogava, mas sim com o tratamento dado a ela por alguns dos grandes cronistas do seu tempo, como José de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo12. Nas crônicas desses escritores, o caráter de registro, do comentário ligeiro sobre o tempo vivido, seria sempre uma constante; ao seu lado, porém, um novo fator viria a modificar radicalmente o sentido atribuído ao gênero: a subjetividade, que afastaria definitivamente a crônica moderna da história. Sem se limitarem a descrever ou contar, suas crônicas tratavam de intervir, comentar, dialogar. Como a história, ofereciam ainda uma leitura do tempo. No caso deles, tratava-se, no entanto, de uma leitura construída em perspectiva abertamente pessoal e literária, ligada à sensibilidade do autor a aos artifícios de sua escrita13. Ao atribuir às suas crônicas o título de “História”, Machado de Assis colocava assim aos leitores um enigma a ser decifrado. Ao longo da série, no entanto, o próprio autor daria a eles algumas pistas a respeito do sentido de sua opção. Em uma crônica publicada em 15 de março de 1877, tratou de explicar de forma mais direta a relação que enxergava entre a crônica e a história: Mais dia menos dia, demito-me deste lugar. Um historiador de quinzena, que passa os dias no fundo de um gabinete escuro e solitário, que não vai às touradas, às câmaras, à Rua do Ouvidor, um historiador assim é um puro contador de histórias. E repare o leitor como a língua portuguesa é engenhosa. Um contador de histórias é justamente o contrário de um historiador, não sendo um historiador, afinal de contas, mais do que um contador de histórias. Por que essa diferença? Simples, leitor, nada mais simples. O historiador foi inventado por ti, homem culto, letrado, humanista; o contador de histórias foi inventado pelo povo, que nunca leu Tito Lívio, e entende que contar o que se passou é só fantasiar.

Desgostoso por não poder dar uma “descrição verídica” da última tourada, à qual não estivera presente, o narrador explicava sua posição.

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De início, definia a diferença entre o verdadeiro historiador e o simples contador de histórias (ou cronista) em termos da objetividade do relato de cada um: enquanto o primeiro deveria simplesmente narrar o que aconteceu, o segundo já poderia lançar mão da imaginação e da fantasia. Logo abaixo, no entanto, tratava de explicar melhor tal distinção: o que separaria o historiador do contador de histórias seria, para ele, o sentido social de seus escritos. Ao contrário das simples histórias contadas do ponto de vista do “povo”, o historiador revestiria seu relato de uma erudição que bastaria para lhe conferir um destaque especial. Seria assim a distinção da história, associada à objetividade, o que explicaria a diferenciação proposta pelo narrador entre os dois tipos de relato. Não por acaso, na continuidade da crônica o narrador assume que nunca pretendeu assistir às touradas, embora expusesse sobre elas na crônica uma visão abertamente crítica. “Eu não preciso ver a guerra para detestá-la”, escreve ele para justificar sua antipatia pelas corridas de touro. Era somente a sua opinião que estruturava, desse modo, o sentido das crônicas que escrevia. Se isso pode explicar o desconforto demonstrado pelo narrador no começo da crônica, torna também ainda mais claro o motivo da escolha do título que atribuiu à série: em uma publicação de perfil tão definido como a Illustração Brasileira, fazia dele uma forma irônica de dialogar com os propósitos grandiosos da revista. Era com essa predisposição à elevação que Machado de Assis se apresentava novamente aos leitores com sua “História de quinze dias”. Por constituir uma importante seção da Illustração Brasileira, ela se fez presente em todos os seus números. Publicada sempre da mesma forma, e assinada pelo mesmo pseudônimo, a série só viria a sofrer uma mudança, ligada ao declínio da publicação, em fevereiro de 1878 — quando seu nome mudou para “História de trinta dias”, de modo a acompanhar a nova periodicidade da revista. Com tal título, no entanto, Machado publicou apenas três crônicas, até o desaparecimento definitivo do periódico no final de abril. Apesar dos dois títulos, tratava-se, portanto, de uma mesma série, publicada ininterruptamente entre julho de 1876 e abril de 1878 — em um total de 40 crônicas, reunidas integralmente neste volume.

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Os que já conheciam o estilo de Machado por meio das crônicas publicadas no Diario do Rio de Janeiro reconheceriam, na leitura da nova série, ecos de suas primeiras produções no gênero. De fato, ele parecia à primeira vista somente reproduzir as normas consagradas para a crônica na imprensa brasileira. Ao tematizar a cada quinzena assuntos diversos ligados ao noticiário do período, seus textos iam da política aos teatros, dos eventos sociais aos pequenos acontecimentos cotidianos. Sem apresentar ligações mais evidentes, tais artigos mostravam que Machado ainda não desenvolvera a arte das transições — o que fazia com que os diversos temas fossem tratados, em cada artigo, na forma de fragmentos, separados por números romanos. Eram, assim, o aparente descompromisso e a leveza do cronista, que já se haviam feito notar em algumas de suas colunas anteriores, que davam forma à nova coluna. Apesar dessas semelhanças, os leitores não deixariam de ter surpresas. A primeira delas, mais evidente, estava no uso de um pseudônimo para essa nova empreitada. No Diario do Rio de Janeiro, onde se iniciara no gênero anos antes, as crônicas que publicou haviam sido quase sempre assinadas com suas iniciais. Após uma rápida tentativa de utilização do pseudônimo Gil, que apareceu em 1861 nas primeiras crônicas de seus “Comentários da semana”, ele logo o abandonou em favor do M.A., com o qual passou a se identificar. Por mais que se utilizasse com freqüência de pseudônimos para publicar parte de sua prosa de ficção, foi sem disfarces ou artifícios que Machado se iniciou na crônica, assumindo diretamente o caráter opinativo e subjetivo associado ao gênero. Era por isso uma novidade que, no primeiro número da Illustração Brasileira, suas crônicas aparecessem com uma nova assinatura: Manassés, pseudônimo que Machado assumiria em todas as crônicas da série. Tal pseudônimo não chegava a ser exatamente novo para os que acompanhavam sua produção. Leitores mais atentos poderiam se lembrar de que ele já aparecera, no ano anterior, em alguns contos publicados no jornal A Épocha. Era o caso de “A chinela turca”, publicado no primeiro número da folha — no qual utilizou pela primeira vez o pseudônimo14. Em terceira pessoa, o conto narra o desgosto de um jovem bacharel que se viu impedido de aproveitar um baile por ter recebi-

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do em casa “um dos mais enfadonhos sujeitos do tempo”, que fora visitá-lo para apresentar-lhe o drama que havia escrito. Inspirado por uma “peça do gênero ultra-romântico” a que assistira alguns dias antes, o visitante passa a noite lendo ao jovem bacharel seu romance. “Nada havia de novo naquelas cento e oitenta páginas, senão a letra do autor”, explicava o narrador, que passa a partir de então a descrever o suplício do anfitrião ao ouvir por horas os cansativos exageros românticos do visitante. Com um primeiro quadro no qual apareciam “uma criança roubada à família, um envenenamento, dous embuçados, a ponta de um punhal e quantidade de adjetivos não menos afiados que o punhal”, seguido de um segundo em que “dava-se conta da morte de um dos embuçados, que devia ressuscitar no terceiro, para ser preso no quinto, e matar o tirano no sétimo”, o drama era a representação acabada dos exageros característicos da produção romântica do tempo. Enquanto o ouvia, a sonolência faz o jovem bacharel embarcar na própria fantasia. Em sonho que começa por transformá-lo em acusado do roubo de uma chinela turca, ele inicia uma aventura que mistura seqüestro, casamento forçado, tramas de assassinato e uma fuga. Transbordante de imaginação, tal narrativa evidenciava, pelo exagero, alguns dos problemas associados por Machado à produção de autores ligados à estética romântica do tempo. Não era de estranhar, por isso, que os próprios jornais do período ressaltassem a presença, na Illustração Brasileira, de artigos “assinados por Manassés e Pierrot, dous festejados pseudônimos, que figuraram com brilho nas colunas da Épocha”15. Na nova revista, no entanto, tal pseudônimo ganharia uma importância maior do que tivera até então. Em um gênero marcado pela subjetividade, os artigos, assinados em primeira pessoa, eram atribuídos a Manassés, suposto autor daqueles escritos. Em vez de simplesmente assinar histórias contadas em terceira pessoa, ele era assim utilizado para representar o ponto de vista da narração — o que marcava uma substancial modificação no modo pelo qual Machado se apresentara até então em suas crônicas. Entender os motivos de tal mudança constituía, para os leitores do período, um primeiro desafio. Os comentários dos jornais da época, que

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saudavam a presença de Machado de Assis na folha, mostram que dificilmente ela se deu com a finalidade de esconder a autoria da coluna. Sem preocupação de ocultamento, em diversos momentos o literato se expunha abertamente como autor desses escritos. É o que fica claro já na primeira crônica, quando comenta um jantar em homenagem a Blest Gana, o embaixador do Chile, ao qual efetivamente comparecera16. “Sou amigo do ilustre chileno há dez anos”, assumia Machado sem dissimulações — em afirmação atestada por uma carta que escrevera naquele ano a Salvador de Mendonça, na qual lhe informara que tentara visitar o embaixador, mas este se encontrava “na roça”17. De forma semelhante, iniciaria a crônica de 15 de dezembro de 1876 explicando que seria breve por lhe faltarem “tempo, saúde, vagar e até motivo”, afirmação atestada por carta escrita na véspera a Francisco Ramos da Paz na qual falava de uma indisposição que o acompanhava havia quatro dias18. Por fim, recordaria na crônica de 15 de julho de 1877 sua adoração de juventude por Augusta Candiani, cantora lírica para a qual dedicara um poema escrito aos 16 anos. Ainda que escrevesse para o restrito círculo letrado que tinha acesso à publicação, não se preocupava assim em disfarçar que aqueles artigos quinzenais eram de sua autoria. Se não pretendia se ocultar, Machado mostraria ter outros motivos para a utilização do pseudônimo. Reconhecido pelos contemporâneos como o autor de tais escritos, tratava de utilizá-lo, na série, como um artifício literário. De fato, o autor participara, pouco antes, de uma experiência narrativa que parece ter marcado sua produção: as crônicas que escreveu na Semana Illustrada, predecessora da Illustração Brasileira. Publicadas entre 1869 e 1876, elas apareciam sob o título “Badaladas”, e eram invariavelmente assinadas por Dr. Semana. Ao contrário das primeiras incursões de Machado no gênero, ou mesmo dos artigos escritos em sua “História de quinze dias”, nesse caso sua participação apareceria de forma mais discreta. Longe de ser o idealizador da série, ele era apenas um dos vários colaboradores da revista que se abrigavam sob o pseudônimo. Sem se ligar a um autor específico, o Dr. Semana aparecia ali como parte da caracterização de um elaborado personagem, cuja fisionomia e cuja personalidade eram desenvolvidas nos desenhos e

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Introdução

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textos publicados a cada número da folha. Tais crônicas serviam assim para representar o ponto de vista da própria revista, através de um personagem que a corporificava — artifício comum nos periódicos ilustrados do período19. A impossibilidade de identificação objetiva de sua autoria torna difícil caracterizar tais crônicas como parte da produção de Machado de Assis. Mesmo assim, essa experiência parece iluminar importantes dimensões de sua trajetória como cronista. Por se constituírem a partir do ponto de vista de um personagem ficcional — o Dr. Semana —, esses escritos se diferenciavam radicalmente do modo pelo qual, até então, ele se relacionara com a crônica. Por mais que abrigassem ainda a opinião e a subjetividade, as crônicas ali escritas agregavam à referencialidade característica do gênero os artifícios da ficção. Assim, tal experiência permitiu que o literato se familiarizasse com uma nova maneira de encarar a crônica, na qual seu caráter propriamente literário se evidenciava no maior rebuscamento da forma pela qual passaria a se expressar naqueles escritos. Não era de estranhar que, ao começar uma nova série de crônicas em uma revista dirigida pelos mesmos criadores da Semana Illustrada, tal experiência viesse a informar o modo pelo qual Machado de Assis lidaria com o gênero. De fato, mesmo sem disfarçar a autoria de tais crônicas, ele nunca deixaria de assiná-las como Manassés. O conhecimento dos contemporâneos a respeito dos temas bíblicos — demonstrado pelo próprio autor na crônica de 1o de novembro de 1876, quando cita quatro versículos do Êxodo — mostrava que a escolha estava longe de ser casual. Nome de origem hebraica, Manassés era descrito no Gênesis como filho primogênito de José do Egito e neto de Jacó (Gênesis 41, 51). Depois de adotar Manassés e seu irmão Efraim como filhos, Jacó fez deles os precursores de duas das 12 tribos de Israel, criadas a partir de sua linhagem (Gênesis 48)20. Ao cuidadosamente escolher, em um livro bíblico intitulado Gênesis, um personagem mítico ligado à origem da civilização ocidental, Machado deliberadamente ornava sua narração com um caráter imemorial, ligado ao início mitológico dos tempos. A partir de tal referência ancestral, que colocava o narrador como tes-

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História de quinze dias

temunha viva de toda a história que pudesse ser contada naqueles artigos quinzenais, atribuía à narração foros de autoridade. Reforçava, com isso, o sentido da ironia presente no título da série. O sentido da opção de Machado de Assis não se esgota em tal referência mitológica. Palavra de origem hebraica, Manassés tinha ainda um significado etimológico mais preciso: “aquele que faz esquecer”, ou “fazendo esquecer”21. Sem ser conhecido apenas por iniciados, esse sentido da palavra era evidente a partir do próprio texto bíblico: segundo o Gênesis, José deu a seu filho tal nome “porque, dizia ele, Deus fez-me esquecer de todo o meu trabalho e de toda a minha família” (Gênesis 41, 51). Em uma série que tinha o pomposo título de “História de quinze dias”, que apontava para o ato de lembrar, o pseudônimo evidenciava a subjetividade dos mecanismos da memória: o narrador que se propunha a contar a história da quinzena era o mesmo que produzia o esquecimento — em suposta contradição que evidenciava ser a escolha do nome com o qual assinaria aqueles escritos um recurso literário através do qual Machado daria forma às suas ironias. Se o pseudônimo de que se utilizava ali não chegava ainda a caracterizar um personagem-narrador mais elaborado, como o próprio Machado faria em experiências posteriores com o gênero, é importante por isso atentar para o sentido da opção do escritor ao adotá-lo, que ficaria mais claro no desenvolvimento daqueles artigos quinzenais.

A refletida escolha do pseudônimo mostrava que Machado preparava cuidadosamente sua participação na nova revista. Mais do que um simples detalhe, ele aparecia como uma chave para a compreensão da perspectiva que adotaria naqueles artigos quinzenais. Na primeira crônica da série, habitualmente utilizada pelos cronistas do tempo para apresentar seu programa, tal proposta começava a se anunciar. Em vez de oferecer uma explicação para a nova coluna que iniciava, como de praxe, ele prefere partir diretamente para o primeiro assunto que trataria naquele 1o de julho de 1876.

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