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Universidade Estadual de Campinas Reitor Fernando Ferreira Costa Coordenador Geral da Universidade Edgar Salvadori de Decca

Conselho Editorial Presidente Paulo Franchetti Alcir Pécora – Arley Ramos Moreno Eduardo Delgado Assad – José A. R. Gontijo José Roberto Zan – Marcelo Knobel Sedi Hirano – Yaro Burian Junior

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Érik Porge

transmitir a clínica psicanalítica F reud, L acan, hoje

Tradução

Viviane Veras Paulo de Souza

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ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação P825t

Porge, Érik. Transmitir a clínica psicanalítica: Freud, Lacan, hoje / Érik Porge; tradução: Viviane Veras e Paulo de Souza. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2009.

1. Freud, Sigmund, 1856-1939. 2. Lacan,Jacques, 1901-1981. 3. Psicanálise. 4. Psiquiatria. I. Veras, Viviane. II. Souza, Paulo de. III. Título. cdd 150.952 616.89 isbn 978-85-268-0863-8 Índices para catálogo sistemático: 1. Psicanálise 2. Psiquiatria

150.952 616.89

Copyright © by Érik Porge Copyright © 2009 by Editora da Unicamp

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Agradeço a todos os participantes do seminário “Quais são os limites da clínica psicanalítica?”, que teve lugar entre 2002 e 2004 em La Lettre Lacanienne, une École de la Psychanalyse. Suas presenças e suas intervenções encorajaram-me a escrever este livro. Agradeço também a Sophie Aouillé, Anne-Marie Braud, Rainier Lanselle, Sophie Pierre, Michel Plon, Simone Wiener, por terem aceitado ler alguns capítulos e por me passarem suas observações.

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sumário

introdução ...............................................................................................................................

1 o relato de caso em freud ................................................................................  A transmissão da verdade: ficção e divisão do sujeito ..................................  2 freud letrado .................................................................................................................  O legado da literatura à psicanálise ......................................................................  3 freud não é um escritor de casos ............................................................  4 um desejo de transmitir um saber inédito ....................................  Um além do relato de caso ..........................................................................................  5 lacan, da ficção ao estilo.................................................................................  Como a questão da verdade evoluiu de Freud a Lacan? ............................  6 o estilo, um suplemento de desejo .........................................................  O estilo: entre texto, livro, leitura ..........................................................................  7 o estilo de lacan .........................................................................................................  8 o inconsciente é estruturado como a poesia ............................  9 verso... a verdade ....................................................................................................... 

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10 não há verdadeiro sobre o verdadeiro ...........................................  11 divisão entre verdade, saber e sexo ....................................................  12 do semidizer ....................................................................................................................  13 habitar o escr ito .....................................................................................................  14 topologia da extimidade ..................................................................................  15 uma escrita que vem de outro lugar que não do significante ....................................................................................  16 o analista já lá na história do sujeito.............................................  17 avatares do indivíduo ..........................................................................................  In-divíduo ou um-divíduo? .....................................................................................  Retorno à poesia..............................................................................................................  18 freud, leitor de le bon ......................................................................................  19 um equívoco freudiano sobre a massa ..............................................  20 como lacan transforma o esquema de freud ...........................  21 outras multidões ......................................................................................................  A multidão do chiste ....................................................................................................  A multidão do esquecimento de nome ................................................................  A multidão do sonho ....................................................................................................  Sequência ...........................................................................................................................  22 a contagem do nome “próprio”..................................................................  23 a apresentação de paciente: uma clínica da apresentação .......................................................................  24 o objeto A: a invenção ......................................................................................  envio .................................................................................................................................................  índice onomástico ........................................................................................................... 

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introdução

Está comprovado que a psicanálise obtém resultados terapêuticos. O que já não é tão certo é saber como. Freud e depois Lacan sublinharam que a cura vinha como lucro. O que quer dizer que ela pode dar-se, mas por outras vias que não aquelas que visariam diretamente a uma melhora sintomática: por vias que implicam desvios, que abordam com prudência a cura — uma vez que ela não é, forçosamente, o que o sujeito demanda (a cura de um sintoma pode precipitar outro mais grave) —, que não fixam de antemão um objetivo, que instauram uma suspensão da resposta à demanda... Pode-se pensar que, se a psicanálise obtém curas por vias outras que não a psicoterapia, a psiquiatria, a magia... e que ela dá à cura um estatuto mais “pessoal”, é porque ela procede, de saída, e no decorrer de seu exercício, a uma demarcação clínica diferente. Eis o ponto crucial que motiva este livro. É preciso, de início, já estar de acordo quanto ao que se denomina “sintoma” e quanto ao método para qualificá-lo, para que, em seguida, a palavra “cura” faça sentido. A constituição de uma verdadeira clínica psicanalítica específica é um dos maiores desafios da psicanálise. 9

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Nos dias de hoje, há um empenho para uma tomada de consciência da importância de expor a especificidade da clínica psicanalítica e de prover a razão dessa especificidade. Infelizmente, essa boa vontade carece de método, e por isso assume orientações que correm o risco de ser contraprodutivas. Em vez de buscar definir novas patologias, seria necessário interrogar-se sobre as novas demandas e harmonizar os engastes dos elementos da estrutura. Assiste-se hoje a especializações que tomam por alvo um sintoma, uma idade: a psicanálise do adolescente, do autismo, do luto... que conduzem a uma fragmentação da clínica e, portanto, a um abandono de sua vocação de clínica geral e estrutural. Em vez de reconhecer a divisão do sujeito em suas diferentes estruturas, multiplicam-se as ditas novas patologias. O exemplo das “personalidades múltiplas” que substitui a histeria é característico, mas há também os estados-limite, a hiperatividade... Tudo isso favorece, talvez, os interesses de readaptação social de instituições especializadas, oferece garantias às companhias de seguro e assegura significativos lucros aos laboratórios que inventam patologias como álibis para a venda de medicamentos (é o caso da ritalina para a hiperatividade), mas não contribui em quase nada para o avanço da psicanálise. É frequente que a dita nova patologia, uma vez examinada de perto, revele que não é assim tão nova, ou que corresponde a limites diagnósticos que sempre existiram. Mais que de novas patologias, trata-se de novos estados ou tempos da demanda que é preciso situar em relação às ideologias. Fazer delas novas patologias manifesta uma necessidade de nosografia que permanece inscrita na tradição psiquiátrica, no momento em que, justamente, ela desmorona, especialmente com os violentos golpes sofridos pelo DSM1;

1 N. do T.: DSM é a sigla de Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, publicado pela primeira vez em 1952 pela Associação Psiquiátrica Americana (está em preparo o DSM V). Acumulam-se as críticas e controvérsias quanto ao uso político e econômico do manual. 10

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introdução

portanto, trata-se mais de uma tentativa dos psicanalistas de salvar a psiquiatria — o que não é em si condenável —, mas deixa intocada a questão de uma clínica analítica específica. No que concerne à existência de uma “nova economia psíquica”, na qual creem alguns psicanalistas, subscrevemos a hipótese que a preside, a saber: “a organização coletiva pode modificar a estrutura psíquica dos sujeitos”. Mas um enunciado tão geral demanda precisão para tornar-se operante, a não ser que queria cair no holismo sociológico. Em particular, é oportuno precisar a validade dos termos “indivíduo” e “coletivo” e, sobretudo, sua articulação. Ora, na maior parte das vezes, não se ultrapassa o nível pouco explícito de uma “ressonância”, de um “eco”, de uma “correspondência”, de uma “reduplicação”, talvez de uma “mesma estrutura”; mas, justamente, qual? A noção de “nova economia psíquica” prolonga ao extremo a correspondência do indivíduo ao coletivo, uma vez que ela torna “homogêneas” a economia psíquica e a economia de mercado. Essa resposta suscita mais questões do que resolve. O que a estrutura se torna do ponto de vista econômico? Essa nova economia é um discurso? Qual? Se ele é equivalente à “ideologia da economia de mercado”, como não confundir a ideologia e o discurso do sujeito que com ela se confronta? A “conexão da economia mercantil e pulsional”2 é uma ilusão efetivamente produzida pelo discurso capitalista. Tomá-la como uma realidade consumada em um indivíduo não é rejeitar o sujeito? A escrita dos quatro discursos proposta por Lacan contraria uma articulação do individual e do coletivo que integra o sujeito dividido, simplesmente porque nenhum discurso funciona sem articulação aos três outros, o que não é o caso da nova economia, que tem uma pretensão, quando não hegemônica, pelo menos globalizante. O essencial de nossa crítica das ditas novas patologias recai sobre o método ou, antes, sobre a ausência de método com a qual 2 Dany-Robert Dufour, L’art de réduire les têtes. Paris: Denoël, 2003. 11

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os fatos clínicos são estabelecidos, apresentados, interpretados e transmitidos. Não há fato clínico espontâneo, “os fatos dependem sempre da rede com a qual os apanhamos”3. Sem querer erguer um muro entre psicoterapia e psicanálise, é preciso reconhecer que uma “rede” psicoterápica não vai engendrar a mesma clínica que uma “rede” psicanalítica. A psicoterapia tem uma visão adaptativa — que é seu mérito, mas é também seu limite —, segundo um objetivo fixado (na verdade, prescrito) de antemão. Ela não tem doutrina suficiente para ultrapassar uma melhoria sintomática, talvez passageira, e sustentar a posição do sujeito desejante além da demanda. Não se trata de desvalorizar a psicoterapia e seus efeitos, mas de estabelecer que há uma diferença fundamental no próprio estabelecimento dos sintomas e no valor que lhes é conferido segundo se tome de antemão uma opção pela psicoterapia ou pela psicanálise. Assimilar a psicanálise a uma psicoterapia seria, além disso, rebaixar a questão da formação do analista ao modelo de uma formação profissional que se contentaria com receitas técnicas, morais e comportamentais marcadas por um ecletismo psicológico de boa índole. Desde a origem da psicanálise, os psicanalistas não cessaram de refletir e de debater — em inúmeras publicações e colóquios, chegando até à cisão — questões relativas à formação do psicanalista, a ponto de a questão, na sua acuidade, fazer parte da formação do psicanalista, a qual deve ser entendida, desde então, no sentido de formação do inconsciente. Uma formação imposta com base no modelo da formação profissional, fornecendo a priori respostas e podendo ser avaliada segundo critérios estranhos 3 “Qu’est-ce qu’un fait clinique?”, Psychologie Clinique, no 17, sob a direção de Stéphane Thibierge, Christian Hoffmann, Olivier Douville. Paris: L’Harmattan, 2004. Cf. também Paul Bercherie, Clinique psychiatrique, clinique psychanalytique. Paris: L’Harmattan, 2005, p. 67, para sua crítica do assim chamado ateorismo do DSM III (recuperando o behaviorismo), e Jean-François Coudurier, “À propos du DSM”, Essaim. Toulouse: érès, 2005, que mostra também a pouca cientificidade desse manual. 12

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introdução

à psicanálise, portanto, segundo uma metodologia falsificável, não teria nenhum sentido. O amálgama da psicanálise e da psicoterapia é de fato nocivo a ambas: a psicanálise perde nele sua alma, e a psicoterapia (ao menos algumas delas), uma forma de garantia externa. Esse amálgama as torna mais vulneráveis vis-à-vis ao discurso que prega soluções individuais psíquicas diante do mal-estar na civilização; um discurso que, em nome de referências científicas, pragmáticas, adaptativas, instaura uma regulamentação dos cuidados psíquicos, avaliando-os segundo critérios da economia de mercado que transformam os pacientes em “usuários” da saúde. A fórmula que se nos impôs é a de que a especificidade da clínica analítica, do estabelecimento de um fato clínico psicanalítico, de uma verdadeira nova clínica, reside no método de sua transmissão. Trata-se de encontrar a justa medida entre a clínica e o que nela se transmite. O método constitui essa medida. Partimos da hipótese, a ser verificada, de que existe uma clínica analítica e de que existe nela uma transmissão. “O que é a clínica psicanalítica?” — perguntava-se Lacan — “Isso não é complicado. Ela tem uma base. É o que se diz numa psicanálise... [...] A clínica é o real na medida em que é impossível de suportar4.” A referência ao real guiará nossos passos. Pode-se fazer a lista de uma multiplicidade de vias de transmissão: pelo analisante, dentro e fora do tratamento, pelas supervisões... e pelas publicações dos analistas. É o exame dessa última via que irei privilegiar. Tradicionalmente, a referência clínica assume, nas publicações, diferentes facetas: a vinheta clínica, a extração de constantes a partir de vários tratamentos ou ainda o relato de caso de um tratamento em seu conjunto (o que supõe que ele esteja terminado, problema que não é trivial). Essa última modalidade ganhou com Freud um 4 J. Lacan, “Ouverture de la section clinique”, Ornicar?, no 9. Paris, 1977. 13

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papel fundador para a psicanálise, apresentando-se como garantia da ligação dos termos de seu trípode, que definia a psicanálise em 1923: o método terapêutico, o método de pesquisa e a doutrina5. Contudo — como veremos — isso não pode renovar-se hoje de modo idêntico. Entre os problemas levantados pela transmissão da clínica psicanalítica a partir de Freud, há aquele da passagem da dimensão individual, privada, do tratamento, à dimensão coletiva do que é tornado público. Como fazer para não desviar o endereçamento inicial, para apropriar-se dele, e mesmo denunciá-lo ao transmitilo? Como fazer para que a passagem do privado ao público não venha reforçar a velha oposição individual–coletivo? Como incluir o leitor na transmissão sem acomodá-lo na posição de leitor moldura, acessório? É preciso que, de certa maneira, ele já exista, já esteja implicado no endereçamento individual, um além do coletivo, segundo modalidades que ainda é preciso definir. Na transmissão da clínica psicanalítica, é preciso contar com o que se transmite — o fato clínico ou assim suposto — e com o meio de transmiti-lo. Ele poderia, aliás, ser considerado fato estabelecido, se não fosse transmissível? É possível acomodar seu olhar ao modo de transmitir e fazer da transmissão um objeto de estudo, levando em conta até mesmo os aspectos mais materiais dessa transmissão: paginação, caracteres tipográficos, capa, formato, referências bibliográficas, ilustrações... O meio de transmitir faz parte do que é transmitido, e às vezes é difícil distinguir um do outro; ele atua sobre o leitor, chegando mesmo ao caso em que o meio de transmissão, o suporte da mensagem, é a própria mensagem. O meio de transmitir determina a compreensão do que é transmitido e faz passar mensagens implícitas, por exemplo, sobre o que acontece com uma oposição entre teoria e prática, ou entre indi5 Jean-François Chiantaretto, L’écriture de cas chez Freud. Paris: Anthropos, 1999. 14

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vidual e coletivo. Algumas apresentações de vinhetas clínicas 6 muitas vezes não têm outro objetivo senão o de afirmar a existência dessas oposições sem ter que lhes justificar a articulação. Examinaremos, de saída, a forma como Freud foi confrontado com a questão da transmissão da clínica e como ele a resolveu por meio do relatar do caso, privilegiando nele a verdade sobre a exatidão. Freud enfrentou contradições na relação entre a verdade e o saber. Seu percurso constitui, no entanto, um primeiro deslocamento entre a teoria e a prática. Na trilha de Freud, Lacan encontrou uma solução para os impasses freudianos: em vez de publicar o caso (exceção feita à sua tese de psiquiatria), dar ênfase ao estilo. Essa decisão nos impulsionará a explicitar as relações entre a verdade, o saber e o real do sexo, tal como Lacan os colocou. Disso resulta que a referência freudiana aos modelos espaciais do inconsciente (primeira e segunda tópicas) é substituída por uma nova escrita que vem de outro lugar que não do significante. Essa é uma das lições do ensinamento de Lacan: em vez de multiplicar novas patologias, dá lugar ao desenvolvimento das consequências clínicas dessa nova escrita, e de outras que estão por vir. A escrita proposta por Lacan contribui para a ultrapassagem da oposição filosófica entre teoria e prática — nociva, inibidora, no sentido de que faz crer que a teoria deveria ser “aplicada” — e da oposição entre o individual e o coletivo. Essa ultrapassagem havia sido inaugurada por Freud, por outras vias que não a da sociologia, e Lacan deu um passo suplementar, elevando o esquema freudiano da hipnose à dignidade de um algoritmo, abrindo a via para uma clínica do não-todo. Apresentaremos algumas abordagens que nos farão concluir que o intransmissível está no coração do desejo de transmitir, não como inefável perdido nas areias de um deserto, mas como soleira para a invenção. 6 Sobre o uso das vinhetas, ver Guy-Félix Duportail, “Fenêtre sur cure”, Cahiers

pour une Ecole, no 12. La Lettre Lacanienne, 2005. 15

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capítulo 1

o relato de caso em freud

Segundo uma ideia simples, transmitir a realidade da experiência clínica em psicanálise poderia tomar a forma de um primeiro tempo que consistiria em uma tomada de notas durante as sessões, para, em seguida, extrair delas um informe comunicável. É precisamente essa prática que Freud refuta e desaconselha, em diversas retomadas, especialmente em Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise1: Tomar notas durante a sessão com o paciente poderia ser justificado pela intenção de publicar um estudo científico do caso. Em fundamentos gerais, isto dificilmente pode ser negado. Não obstante, deve-se ter em mente que relatórios exatos de histórias clínicas analíticas são de menor valor do que se poderia esperar. Estritamente falando, possuem apenas

1 S. Freud, “Conseils aux médecins” (1912), in La tecnique psychanalytique. Paris: PUF, 1967 [N. do T.: Seguimos a tradução brasileira (ed. 1996), Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (ESB), vol. XII, p. 127]. Cf. também “Les premiers psychanalystes”, in Minutes de la Société Psychanalytique de Vienne. Paris: Gallimard, 1978, t. II, p. 24. 17

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a exatidão ostensiva de que a psiquiatria “moderna” fornece-nos alguns exemplos marcantes. São, via de regra, fatigantes para o leitor e ainda não conseguem substituir sua presença concreta em uma análise.

Freud apresenta numerosos argumentos contra a tomada de notas durante as sessões. Além daqueles já mencionados, considera que tal prática é desagradável para o doente, e que o analista, assim fazendo, desperdiça uma parte de sua atividade intelectual em vez de dedicar-se à “atenção flutuante” (gleichschwebende Aufmerksamkeit, isto é, do mesmo nível ou igualmente meneante). A precisão que se obtém mediante esse tipo de estenografia é de ordem “psiquiátrica”, afirma, e não tem, afinal de contas, valor demonstrativo.

A transmissão da verdade: ficção e divisão do sujeito Muito rapidamente parece que Freud substitui a exatidão — que não refuta em si mesma — por outra noção, a de verdade ou a de veracidade, e quanto a isso não variará. Desde a primeira publicação de seu “Fragmento da análise de um caso de histeria” — o caso de Ida Bauer, nomeada “Dora”, em 1905 —, Freud começa por enunciar: Quanto à própria história clínica, só a redigi de memória após terminado o tratamento, enquanto minha lembrança do caso ainda estava fresca e aguçada por meu interesse em sua publicação. Por isso o registro não é absolutamente — fonograficamente — fiel, mas pode-se atribuirlhe alto grau de fidedignidade (Verlässlichkeit)2. 2 Idem, “Fragment d’une analyse d’hystérie”, in Cinq psychanalyses. Paris: PUF, 1967, p. 4 [Fragmento da análise de um caso de histeria, ESB, vol. VII, p. 21]. N. do T.: O tradutor inglês, James Strachey, diz, em nota, que Freud pretendia publicar o caso logo após terminar sua redação, quase pronta em janeiro de 18

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o relato de caso em freud

A análise é uma experiência de fala, descontínua, com efeitos ligados ao tempo, à antecipação, ao “só-depois” [après-coup], com afastamentos entre o enunciado e a enunciação, com intervenções do analista... Uma estenografia linear, cronológica, não daria conta dos efeitos de verdade que se produzem no sujeito. Tal é a dificuldade do analista: se quer permanecer na verdade de sua experiência, não pode fiar-se na exatidão de uma tomada de notas. Sabe-se, além disso, dos inúmeros problemas de interpretação levantados pelas transcrições de seminários ou de apresentações de doentes, por exemplo. Em seu primeiro discurso de Roma, em 1953, Lacan retoma por sua conta a distinção entre a exatidão e a verdade; ilustra-a por meio de um exemplo extraído da análise daquilo que os analistas (a partir de Freud, mas jamais o próprio Freud, ao contrário do que faz crer a tradução para o francês das Cinq psychanalyses) chamam de “Homem dos Ratos”, cujo nome verdadeiro é Ernst Lanzer. Freud chega até a tomar certas liberdades com a exatidão dos fatos, quando se trata de atingir a verdade do sujeito. Num dado momento, ele percebe o papel determinante desempenhado pela proposta de casamento, levada ao sujeito por sua mãe, na origem da fase atual de sua neurose. Aliás, tivera um lampejo disso, como mostramos em nosso seminário, em razão de sua experiência pessoal. Não obstante, ele não hesita em interpretar ao sujeito o efeito dela, como uma proibição instaurada por seu pai morto contra sua ligação com a dama de seus pensamentos. Isso não é apenas materialmente inexato. Também o é psicologicamente, pois a ação castradora do pai, que Freud afirma aqui com uma insistência que poderíamos crer sistemática, só desempenhou nesse caso um papel secundário. Mas a apercepção da relação dialética é tão correta que a interpretação de Freud, introduzida nesse momento, desencadeia a supressão decisiva dos símbolos mortíferos que ligam narcisicamente o sujeito, ao mesmo tempo, ao pai morto e à dama idealizada, apoiando-se 1901, como informa em carta a Fliess (carta 140, de 25 de janeiro). O título

pretendido para o trabalho era “Sonhos e histeria”. 19

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as imagens de ambos numa equivalência característica do obsessivo, uma na agressividade fantasística que a perpetua, outra no culto mortificante que a transforma em ídolo3.

Nesse caso, Freud faz emergir a verdade do sintoma por meio de uma interpretação que não se justifica pela exatidão dos fatos objetivos. Pode-se, então, concluir que a verdade se opõe à exatidão? Não se pode chegar a esse ponto. No caso do “Homem dos Ratos”, Freud tinha um conhecimento exato e literal dos ditos de seu analisante, mas ele não os interpreta em função da psicologia nem da estrita correspondência aos fatos. A verdade produzida diz respeito a outra exatidão, não sabida de início. Chegamos assim à descoberta de Freud no campo aberto pela psiquiatria. Do mesmo modo que existem os desvios na análise para que a verdade abra para si um caminho, é preciso um desvio para que essa mesma verdade possa ser transmitida a um público amplo ou restrito. Esse desvio se chama: forma de relatar [mise en récit]. Freud faz uma triagem do material, reordena sua disposição e cronologia, quer dizer, procede às deformações que restituem a temporalidade do desvelamento da verdade. “A verdade não vem à superfície a não ser no universo da ficção, e subtrai-se ao expediente naturalista do fragmento de vida e do registro sincrônico. Freud devia medir-se com sua própria habilidade de exposição, com seus dons de escritor4...” De saída, nos informes de sua experiência clínica necessários para fazer reconhecer a dignidade científica da psicanálise, Freud teve de se fazer romancista. É com certo espanto que ele descobre de que forma seu trabalho repercute em seus contemporâneos: Como outros neuropatologistas, fui preparado para empregar diagnósticos locais e eletroprognósticos, e ainda me causa estranheza que os

3 J. Lacan, Écrits. Paris: Le Seuil, 1966, p. 302 [Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 303]. 4 Mario Lavagetto, Freud à l’épreuve de la littérature. Paris: Le Seuil, 2002, p. 227. 20

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