Ancestrais e suas sombras
universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta
Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Elinton Adami Chaim – Esdras Rodrigues Silva Guita Grin Debert – Julio Cesar Hadler Neto Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Antunes – Sedi Hirano Unicamp Ano 50 Comissão Editorial Itala M. Loffredo D’Ottaviano Eduardo Guimarães
Antonio Guerreiro
Ancestrais e suas sombras uma etnografia da chefia kalapalo e seu ritual mortuรกrio
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.
ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação Bibliotecária: Helena Joana Flipsen – crb-8ª / 5283
G937a
Guerreiro Júnior, Antonio Roberto. Ancestrais e suas sombras: uma etnografia da chefia Kalapalo e seu ritual mortuá rio / Antonio Guerreiro. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2015. 1. Índios da América do Sul – Brasil. 2. Índios Kalapalo. 3. Etnologia. 4. Parentesco – Brasil. I. Título.
cdd - 980.41
e-isbn 978-85-268-1404-2
- 572.981 - 306.830981
Índices para catálogo sistemático:
1. Índios da América do Sul – Brasil 2. Índios Kalapalo 3. Etnologia 4. Parentesco – Brasil
Copyright © by Antonio Guerreiro Copyright © 2015 by Editora da Unicamp
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980.41 980.41 572.981 306.830981
Uinguheniko inhani Para os que me abriram os olhos Aliju inha Para Aliju
Agradecimentos
Muitas pessoas fizeram parte do percurso que deu origem a este livro. Agra deço em primeiro lugar aos Kalapalo, que me receberam em suas casas – muitas vezes em momentos tristes e difíceis –, cuidaram de mim e dividiram comigo suas vidas com inigualável generosidade. Enumü e Itsapü, que já tomaram o caminho do céu, eram personalidades ímpares, e me acolheram em sua família com carinho e boa vontade. A Nailu, Haja “Senegal”, Kahagahü, Sahati, Aline, Luka, Hinhuka “Tafarel” e Maũ, agradeço pelos cuidados, pelas conversas agradáveis, e por tentarem me fazer engordar. A Haihua, pelo bom humor e pela paciência. Hélio, Kuango, Utuku, Isa, Mansu, Johi, Susema e Jepe foram muito importantes, porque o campo sem essas crianças não teria sido tão divertido. Agradeço aos caciques Uaja, Tühoni e Hagema, que me ofereceram sua hospitalidade e me cederam muito de seu tempo; a Tipüsusu, grande pensadora de seu povo, por ser sempre tão generosa com suas ideias; a meu amigo Hüge Hüti “Orlandinho”, a todo momento tão preocupado, observador e divertido, e por ter passado muitas horas me ajudando no trabalho de transcrição e tradução; a Masinua, por não ter desistido de me ensinar a pescar; a Hikama, pela fineza e eloquência de suas explicações, e por demonstrar sua confiança em mim; a Kalühi, por ser tão detalhista; a Moge, pelos jaraquis; a Tauana, Teue “Viola”, Kayauta, Kohoi, Mataiatsi, Sapuia, Kainahu e Hepia, pela companhia, pela ajuda no trabalho e por me incentivarem no difícil aprendizado de sua língua. A todos os que porventura deixei de mencionar, agradeço por me fazerem sentir à vontade, e por me ajudarem a combater os perigos da saudade.
Ugise merece um agradecimento especial, pois sem ele a pesquisa teria sido impossível – desde as viagens na chuva, até as complexas interpretações de sua cultura, tudo o que fez para me ajudar é imensurável. Ageu, um observador como poucos (o “cientista político do Xingu”, segundo Kulumaka Matipu), foi outro pivô deste trabalho. Sou muito grato por sua confiança, sua dedicação como mestre e por ter se preocupado tanto com minha compreensão das coisas. Certa vez, ele me disse: “Quando você contar sobre nossos costumes para os brancos, diga a eles: foi meu tio materno quem me ensinou. Diga que eu conheço todas as histórias, todos os discursos, porque meu pai me ensinou tudo. Diga que eu só dei isso para você, para mais ninguém”. Espero não frustrar suas expectativas. Fora do Xingu, agradeço a meus pais, de quem nunca me faltaram apoio e carinho, e que aprenderam a se interessar pelo mundo xinguano. Marina Cardoso me fez gostar de antropologia e me apresentou aos Kalapalo. Agradeço a Marcos Lanna, professor e amigo, pelas conversas entusiasmadas sobre o tema da política. A Jorge Villela, por ter me incentivado a cursar o doutorado em Brasília. A Clarice Cohn, por ter me chamado a atenção para as questões que o Quarup permitiria levantar. Aos amigos do PPGAS-UnB, especialmente Carolina Pedreira, Diogo Bonadiman Goltara, Fabíola Gomes, Julia Otero, Pedro MacDowell e Walison Pascoal, agradeço por terem me “adotado” na turma de mestrado de 2008. Sem a amizade de vocês, a antropologia não teria sido tão interessante, e teria sido muito mais difícil chegar (e ficar) em Brasília. A Marcela Coelho de Souza, não saberia por onde começar a agradecer. Este livro não existiria sem sua orientação cuidadosa, sua preocupação com as minúcias do texto e sua vontade de distorcer tudo o que parece óbvio (o que, como já frisei, é um elogio!). A Bruna Franchetto, agradeço pelo apoio no Xingu e fora dele, pelas conversas, pela hospitalidade no Rio e pelas aulas de karib em Ngahünga. Bruna, Elsje Lagrou, Renato Sztutman e Luis Cayón, que compuseram a banca examinadora da tese, fizeram leituras e comentários que me ajudaram muito a transformar o texto original em um livro. A Mara Santos, agradeço pelo esforço conjunto com Bruna Franchetto para viabilizar o PRODOCult Kalapalo, e pela ajuda com a língua karib. Sem o apoio de ambas, o trabalho com a língua teria sido ainda mais difícil. Agradeço também a Mutua e Jamalui Mehinaku-Kuikuro, que me ajudaram na transcrição e na tradução de um conjunto de cantos em arawak.
A Marina Novo, minha gratidão por fazer de Brasília um lugar muito feliz. Sua paciência e sua compreensão foram inestimáveis. Seus comentários, sua ajuda na revisão e na formatação do texto, e seu esforço para me manter no chão tornaram a escrita deste livro possível. Este trabalho utiliza muitas informações coletadas em conjunto no campo, e várias de minhas interpretações se apoiam em diálogos construídos a partir de nossa mútua convivência com os Kalapalo. Este livro também é dela. Agradeço também ao CNPq pela bolsa concedida durante o período do doutorado, e pelos recursos do projeto “Socialidades perspectivas: Transformações rituais no mundo indígena centro-brasileiro”, coordenado por Marcela Coelho de Souza.
Portanto, a filosofia indígena adota resolutamente o partido dos vivos: “A morte é dura; mais dura ainda é a tristeza”. Claude Lévi-Strauss, O pensamento selvagem
Sumário
Convenções e símbolos ...................................................................................... 17 Grafia e pronúncia . . ........................................................................................... 19 Abreviações para glosas .................................................................................... 21 Prefácio ................................................................................................................. 23 Apresentação.. ...................................................................................................... 29 Introdução ............................................................................................................ 39 Capítulo 1 – Fragmentos de história.. ........................................................... 63 1.1 Quem são os Kalapalo? .......................................................................... 63 1.2 Uma “história nobre” .............................................................................. 69 1.3 Uma Babel xinguana ............................................................................... 76 1.4 Outros iguais.. ............................................................................................ 84 1.5 Os brancos e seu desejo por filhos de chefes ................................. 1 08 1.6 O aparecimento de Orlando, a criação do Parque e a contenção da feitiçaria ........................................................................... 117 Capítulo 2 – Fazendo substitutos: A questão da hereditariedade da chefia ........................................................................................................ 1 29 2.1 Nascer nobre, ser feito chefe: O “paradoxo” da herança e da fabricação .............................................................................................. 130 2.2 Ancestralidade ritual.. ............................................................................. 141
2.3 Fazendo chefes, fazendo gente ............................................................ 153 2.4 A filiação como vetor de identificação . . ........................................... 161 2.5 Esteio de gente .......................................................................................... 1 67 2.6 Sentar-se, ser visto e tornar-se conhecido ...................................... 173 Capítulo 3 – O encontro com a onça ............................................................ 183 3.1 A família do Ipê-Amarelo e o Morcego-Pescador ........................ 1 86 3.2 As mulheres mais lindas do mundo .................................................. 196 3.3 O desafio aos peixes ................................................................................ 217 3.4 Maestria, chefia e predação .................................................................. 228 Capítulo 4 – Corpos e casas ............................................................................ 251 4.1 A pessoa dividida ..................................................................................... 251 4.2 O enterro e o começo da organização do ritual ............................ 2 61 4.3 Corpos-casas . . ............................................................................................ 269 4.4 Casa, corpo e pessoa ............................................................................... 2 85 4.5 Casas na teoria antropológica e na etnografia.. ............................. 294 Capítulo 5 – Akitsene: O sistema de discursos rituais dos chefes ........ 309 5.1 O aprendizado ........................................................................................... 315 5.2 Os que foram conduzidos pelo pulso . . .............................................. 319 5.3 Os que foram abandonados no caminho ......................................... 3 38 5.4 Netos de respeitáveis . . ............................................................................. 3 47 5.5 Breve excurso comparativo: De respeitáveis a irmãos ................ 352 5.6 O Gavião e a Onça: Quando o chefe precisa ficar invisível ...... 356 Capítulo 6 – Algumas formas xinguanas da dádiva ................................ 371 6.1 Formas da troca ........................................................................................ 3 75 6.2 Reunindo alimento .................................................................................. 3 82 6.3 Inimigos que trocam ............................................................................... 406 6.4 “Aqui está parecendo um aeroporto”: Os brancos nos rituais.. .......................................................................................................... 415 Capítulo 7 – Imagens multiplicadas.. ............................................................ 4 33 7.1 Afinal, o que é uma homenagem? ...................................................... 434 7.2 Cortando a uẽgühi ................................................................................... 4 37 7.3 A preparação dos troncos ..................................................................... 446 7.4 A ornamentação das efígies . . ................................................................ 4 52
7.5 A guerra em cena ..................................................................................... 465 7.6 Guerra e ritual . . ......................................................................................... 479 7.7 Parentesco e ritual: Produção e transformação ............................. 4 83 Epílogo.. ................................................................................................................. 489 Índice de mitos .................................................................................................... 495 Referências bibliográficas . . ............................................................................... 497 Glossário ............................................................................................................... 511 Caderno de imagens .......................................................................................... 513
Convenções e símbolos
Este livro utiliza a notação inglesa para a descrição de relações de parentesco, segundo a qual os marcadores dos kin types são formados pela primeira letra do termo de parentesco em inglês e devem ser lidos da esquerda para a direita. Assim, temos F = “father”, M = “mother”, B = “brother”, S = “son”, D = “daughter”, Ch = “children”, H = “husband”, W = “wife”, BD = “brother’s daughter”, FFBS = “father’s father’s brother’s son” etc. A exceção é o marcador para “irmã” (Z = “sister”), que tem sua letra alterada para evitar confusão com o marcador para “filho” (S); e e y significam “elder” e “younger”, e são posicionados à esquerda do marcador. “♂X” e “♀X” são utilizados para se referir, respectivamente, a “primo cruzado” e “prima cruzada”. Os níveis ge racionais têm como referência um Ego em geração zero (GØ). Cada geração é indicada pela letra G seguida do número da geração em sobretexto (por exemplo, G+1, G+2 etc. para gerações ascendentes, e G-1, G-2 etc. para gerações descendentes).
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Grafia e pronúncia
Todos os termos e expressões em karib, ou outras línguas indígenas, vão em itálico, à exceção dos nomes próprios. As palavras em karib seguem a ortografia produzida pela linguista Bruna Franchetto em parceria com professores indígenas. Na segmentação e glosa de palavras, sigo os trabalhos de Mara Santos e Mutua Mehinaku. Contudo, não utilizo a terminologia técnica da linguística ao sugerir análises etimológicas e traduções, o que faço em linguagem leiga baseando-me em interpretações construídas em conjunto com colaboradores indígenas. Indicações de pronúncia: Consoantes: /p/: oclusiva bilabial surda (como p em português) /b/: oclusiva bilabial sonora (como b em português), sempre pré-nasalizada /d/: oclusiva alveolar sonora (como em data), sempre pré-nasalizada /t/: oclusiva alveolar surda (como t em português, não africada) /j/: oclusiva palatal sonora (semelhante a dj) /k/: oclusiva velar surda (como c em casa) /g/: flap uvular /s/: fricativa alveolar surda (como em saia) /h/: fricativa glotal sonora (como em inglês hat) /ts/: africada alveolar surda /l/: lateral alveolar sonora (como l em português)
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ancestrais e suas sombras
/m/: nasal bilabial (como m em português) /n/: nasal alveolar (como n em português) /nh/: nasal palatal sonora (como em minha) /ng/: nasal velar sonora /w/: aproximante bilabial (como em inglês window) Bilabial
Alveolar
Palatal
Velar
p [ b]
t [ d]
j
k
Oclusiva
m
n
Tepe/flap
Faringal
Glotal
g (flap uvular)
Fricativa
s
h
Africada
ts [d ] z
Lateral
l
Nasal
m
Aproximante
w
n
nh
ng
Vogais: /e/: anterior média (como em português; /ẽ/ quando nasalizada) /i/: anterior alta (como em português; /ĩ/ quando nasalizada) /a/: central baixa (como em português) /ü/: central alta (/ü̃/ quando nasalizada) /o/: posterior média arredondada (como em português; /õ/ quando nasalizada) /u/: posterior alta arredondada (/ũ/ quando nasalizada) Anterior
Central
Posterior
Alta
i
ü
u
Média
e
o
Baixa
a
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