max weber e o problema da evidência e da validade nas ciências empíricas da ação
universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Fernando Ferreira Costa
Conselho Editorial Presidente Paulo Franchetti Alcir Pécora – Arley Ramos Moreno Eduardo Delgado Assad – José A. R. Gontijo José Roberto Zan – Marcelo Knobel Sedi Hirano – Yaro Burian Junior Comissão Editorial da coleção Estudos de Filosofia Moderna e Contemporânea Fausto Castilho – Oswaldo Giacoia Júnior Franklin Leopoldo e Silva – Paulo Franchetti Bento Prado(†)
M arcos C ésar S eneda
max weber e o problema da evidência e da validade nas ciências empíricas da ação
ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação Seneda, Marcos César. Se56m Max Weber e o problema da evidência e da validade nas ciências empíricas da ação / Marcos César Seneda. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2008. 1. Weber, Max, 1864-1920. 2. Evidência. 3. Teoria do conhecimento. 4. Compreensão. 5. Causalidade. I. Título cdd 121.65 121 e-isbn 978-85-268-1191-1 122 Índices para catálogo sistemático: 1. Evidência 2. Teoria do conhecimento 3. Compreensão 4. Causalidade
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Coleção Estudos de Filosofia Moderna e Contemporânea
A coleção Estudos de Filosofia Moderna e Contemporâ nea compreende duas séries: a Série A, Estudos, e a Série B, Traduções. Na série dos Estudos, publicam-se textos que parcial ou inteiramente tenham sido elaborados no quadro dos programas de pós-graduação, tanto da Unicamp — onde a série conta com a valiosa colaboração dos membros do Cemodecon (Centro de Estudo da História da Filosofia Moderna e Contemporânea) — como de instituições congêneres, do país e do exterior; as últimas, desde que de algum modo ligadas por laços de intercâmbio a nossa universidade. Os volumes da primeira série, numerados e datados, são ou de autoria individual ou coletivos, e estes, reunindo em torno de um mesmo objeto de estudo trabalhos de diferentes autores, estão sob a responsabilidade de um organizador de edição, especialista na matéria, designado especificamente para a tarefa pelo diretor da coleção. Na Série B, publicam-se traduções — acompanhadas ou não da reprodução do original, no idioma em que foi escrito — de textos de filósofos modernos ou contemporâneos, mesmo que se refiram a tema pertencente à filosofia anterior à moderna, mas cujo tratamento seja de importância para o entendimento do pensamento ulterior.
Mesmo correndo o risco de neste gesto oferecer o pouco que tenho justamente àqueles a quem devo muito, dedico este trabalho, em reconhecimento, aos professores Alexandre Guimarães Tadeu de Soares, Fernando Antônio Lourenço e Wagner de Mello Elias; e, em sinal de respeito e gratidão, à minha família.
Agradecimentos
Apresentado sob forma de tese de doutorado na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, perante banca examinadora composta pelos professores Fausto Castilho, Gabriel Cohn, Luiz Benedicto Lacerda Orlandi, Marcos Seve rino Nobre e Oswaldo Giacoia Junior, este trabalho exigiu demorada convivência com a reflexão teórica de Max Weber. Nesse percurso foi muito importante o apoio recebido insti tucionalmente ou de pessoas que acompanharam os passos desta investigação. Nesse sentido, agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Ifch–Unicamp, com cujo apoio institucional contei em todos os momentos decisivos da realização deste trabalho. Também agradeço ao Departamento e ao curso de Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia, que me possibilitaram, conjuntamente, partilhar meus estudos com os alunos, através da docência, e me dedicar a esta investigação. Pessoalmente, manifesto minha dívida com os membros da banca examinadora e, particularmente, com os professores Gabriel Cohn e Oswaldo Giacoia Junior, que consideraram este trabalho quando ele estava ainda em formação e con tribuíram para que se ampliassem seus horizontes. Foi muito significativo, para mim, poder discutir este texto com o autor de Crítica e resignação, que permanece um marco na biblio-
grafia weberiana. Em face das acrobacias sintáticas de Weber, também contei com o auxílio do professor Marcio ChavesTannús, cuja contribuição foi preciosa em algumas das traduções aqui apresentadas. Agradeço ainda os cuidados de Ciro Amaro Fernandes Nascimento e Gutemberg de Oliveira, que de diversos modos me socorreram em muitas dificuldades du rante a composição deste texto. Por fim, meu maior agradecimento ao meu orientador, professor Fausto Castilho, pela paciência, pelo grau de exigência, pela teimosia compartilhada e pelo apoio constante e generoso, a quem devo a maior parte da minha formação e do meu ofício.
Mas a crença de que postulados deterministas incluíssem, em qualquer área do saber, o postulado metódico do estabelecimento de conceitos de gênero e “leis” como fim exclusivo não é um engano maior do que a suposição que lhe corresponde em sentido inverso, ou seja, de que qualquer crença metafísica na “liberdade da vontade” humana excluísse o emprego de conceitos de gênero e “regras” à conduta humana, ou de que a “liberdade da vontade” humana estivesse vinculada a uma específica “incalculabilidade” ou, por fim, a um modo específico qualquer de irracionalidade “objetiva” do agir humano. Weber, WL 137
Qual uso dos conceitos — o abstrato ou o concreto — tem a primazia sobre o outro? Nada pode ser decidido a esse respeito, pois não se pode estimar que o valor de um seja inferior ao do outro. Por meio de conceitos muito abstratos, conhecemos pouco de muitas coisas; mediante conceitos muito concretos, conhecemos muito de poucas coisas: o que ganhamos de um lado, perdemos do outro. Kant, LV AK100
Sumário
Apresentação – Para fazer justiça à originalidade de Weber .............................................................................................................................................. 19
Lista de abreviaturas ........................................................................................................... 23
Introdução ..................................................................................................................................... 25 1.
P reâmbulo :
2.
A presentação
uma revisão do problema .............................................................. 25 dos capítulos . ..................................................................................... 31
2.1
Três escritos como matriz de um método de estudo......................................... 31
2.2
O procedimento analítico e as polêmicas ................................................................... 32
2.3
A validade do modelo compreensivo . ............................................................................ 35
2.4
Interpretação como método de descoberta ............................................................... 36
2.5
O compreensível a partir de regras da experiência ............................................ 40
2.6
Dois modelos de decomposição da ação empírica .............................................. 44
2.7
A vontade deliberativa como recurso heurístico .................................................. 52
parte 1
o problema da especialização e da fundamentação das ciências empíricas da ação 1 – A obra e as polêmicas ................................................................................................... 63 1.1
Um
1.2
R oscher
1.3
R udolf S tammler .............................................................................................................. 65
1.4
E duard M eyer ......................................................................................................................... 67
título póstumo . ......................................................................................................... 63 e
K nies .................................................................................................................. 63
2 – Um modelo de cientificidade subjacente à especialização ......................................................................................................................... 75 2.1
Um
problema epistêmico posto a partir das disciplinas
especializadas .................................................................................................................................. 75
2.2
U ma
2.3
Um
formulação imperfeita como fonte de descoberta ........... 78
ponto de vista que possibilite o auto - exame ............................... 82
2.3.1 E. Meyer como exemplo. .................................................................................................................. 82 2.3.2 Um pressuposto tácito.................................................................................................................... 84 2.3.3 A demarcação da fundamentação no interior de uma “controvérsia”................. 87 2.4
F undamentação
e descoberta em
E. M eyer . .......................................... 90
2.5
F undamentação
e descoberta em
W eber . .................................................. 93
3 – As ciências empíricas da ação e a tábua dos juízos ............... 107 3.1
Um
exame metodológico da modalidade ............................................... 107
3.1.1
Valor da cópula e validade possível .......................................................................... 107
3.1.2
Juízos problemáticos e juízos assertivos ............................................................... 109
3.2
E vidência
compreensiva e validade empírica ....................................... 112
parte 2
o problema da evidência: compreender interpretativamente 4 – Jaspers e a psicologia compreensiva ......................................................... 123 4.1
C ompreensão
e interpretação . .......................................................................... 123
4.2
C ompreensão
e explicação .................................................................................... 125
4.2.1
Conexões causais singulares e regras empíricas ............................................. 125
4.2.2
Evidência imediata e validade efetiva ...................................................................... 127
4.3
E xplicação
e interpretação ................................................................................. 130
4.3.1
Conexões compreensivas como componente da descoberta............... 130
4.3.2
A delimitação do incompreensível e o estabelecimento
de conexões causais.............................................................................................................................. 132 4.3.3
Subsunção empírica e evidência típico-ideal ..................................................... 135
4.3.3.a A objetividade do juízo compreensivo ........................................................................... 135
4.3.3.b Dois pontos de partida: a indução empírica e a evidência
compreensiva. ................................................................................................................................................ 139 4.3.4
Incompreensibilidade e interpretabilidade ......................................................... 141
5 – Jaspers e Weber: o compreensivo como componente da descoberta ........................................................................................................................... 163 5.1
Um
domínio descoberto entre o físico e o psíquico ................... 163
5.1.1
Paralelismo terminológico e metodológico ........................................................ 163
5.1.2
O psíquico e o não-compreensivo ............................................................................... 166
5.2
V erstehen
e
E rfahren
como duas possibilidades de
determinação da ação . ...................................................................................................... 168
5.2.1
Erleben e Erfahren: os loci originários do debate. ....................................... 168
5.2.2
Verstehen e Erfahren como complementares................................................... 170
5.2.2.a A interpretação evidente ......................................................................................................... 170 5.2.2.b A experiência como pressuposto do compreender . ................................................ 173 5.2.2.b.1 A experiência considerada “psicologicamente” .......................................................... 173 5.2.2.b.2 A experiência considerada “logicamente” ..................................................................... 176 5.2.3
Verstehen e Erfahren como contrapostos............................................................ 179
5.2.3.a A qualidade da evidência........................................................................................................ 179 5.2.3.b Evidência e explicação............................................................................................................. 182 5.3
A
desvinculação de evidência e validade .............................................. 186
parte 3
O problema da validade: explicar causalmente 6 – Indeterminação e causalidade . ..................................................................... 203 6.1
A
6.1.1
oposição ao modelo explicativo ............................................................... 203
O significativo e o genérico: a questão pelo “sentido”
do conhecer. ................................................................................................................................................ 203 6.1.2
E. Meyer e a recusa do conceito de ciência ......................................................... 209
6.1.3
Causalidade e Gesetzmässigkeit. ................................................................................. 212
6.2
O
6.2.1
conceito de irracionalidade do histórico .................................... 215
Duas notas principais............................................................................................................ 215
6.2.1.a O conceito de acaso................................................................................................................... 216 6.2.1.b O conceito de liberdade da vontade ................................................................................ 221 6.2.2
Devir e indeterminação........................................................................................................ 225
6.2.2.a Devir “histórico” e devir “psíquico” .............................................................................. 225 6.2.2.b Devir “psíquico” e criatividade . ........................................................................................ 226 6.2.2.c Devir “psíquico” e responsabilidade ............................................................................... 230 6.2.2.c.1 Experiência interna e liberdade da vontade ................................................................... 230 6.2.2.c.2 Decisão e resolução................................................................................................................... 232 6.3
O
modelo aristotélico da ação deliberada ........................................ 235
6.3.1
Decomposição do voluntário e escolha deliberada..................................... 235
6.3.2
O paralelo com o método do geômetra . ................................................................ 237
6.3.3
Juízo e deliberação................................................................................................................... 240
7 – Imputação e interpretabilidade .......................................................... 267 7 . 1 I mputação causal e responsabilidade ética . ......................................... 267 7.1.1
Uma decomposição do querer individual efetivo .......................................... 267
7.1.2
Interferência entre as disciplinas e determinação da vontade............ 272
7.1.2.a Uma resolução considerada como fato “último” .................................................... 272 7.1.2.b Uma resolução considerada “teleologicamente” ..................................................... 276 7.1.2.c Entre o idealismo e a hermenêutica .................................................................................. 278 7.1.2.d Dois modos de consideração metodologicamente incompatíveis.................. 280 7 . 2 I mputação causal e vontade deliberativa ............................................. 285 7.2.1
Irracionalidade e incalculabilidade como notas do
conceito de liberdade da vontade ............................................................................................. 285 7.2.2
Análise lógico-metodológica da categoria de causalidade.................... 288
7.2.3
Equações matemáticas e determinação de eventos
singulares concretos............................................................................................................................. 291 7.2.4
Análise lógico-metodológica do conceito de cálculo................................. 295
7.2.5
Interpretação como previsibilidade e racionalização ................................ 299
7.2.6
Deliberação como recurso da imputação ............................................................. 305
7.3
D eterminismo
e interpretabilidade . ............................................................. 309
7.3.1
O não-genérico e o não-interpretável ...................................................................... 309
7.3.2
A duplicação do princípio de razão suficiente................................................. 315
7.3.3
Indeterminação nomológica e irracionalidade pragmática.................. 318
8 – Conclusão ............................................................................................................................. 339 8 . 1 I nterpretação empírica e deliberação como fundamentos da sobreobjetividade das ciências empíricas da ação . ......................... 339
8.2
C onsiderações
finais : o problema da irracionalidade ............. 351
Bibliografia .................................................................................................................................. 355
Apresentação
Para fazer justiça à originalidade de Weber
Seja dito logo na entrada: o livro que aqui se apresenta tem assegurada uma presença vigorosa e original no debate sobre as contribuições de Max Weber à metodologia das ciências histó ricas e sociais ou, na formulação mais precisa do autor, das ciências empíricas da ação — contribuições que Marcos César Seneda demonstra serem centrais no empreendimento webe riano, longe de terem caráter acessório e de circunstância. Na realidade, uma das marcas deste trabalho consiste exatamente em estender o alcance das reflexões de Weber para além do campo da metodologia no sentido estrito para mostrar como elas penetram, com resultados apreciáveis, no campo da teoria do conhecimento — e não como mera decantação do estudo de filósofos de relevo na sua época, “neokantianos” de preferência, mas como resultados orgânicos do trato com questões substantivas do fazer científico no domínio da historiografia e das ciências do homem. Há, por assim dizer, algo de generoso na originalidade deste trabalho: é que ela advém do intento de demonstrar por caminhos pouco explorados o caráter original das próprias concepções weberianas. Nisso reside o interesse deste livro, que de resto não recua diante das mais meticulosas exigências de erudição e cuidado textual, na busca de respostas para questões que se traduzem em outras tantas teses. Claro que há uma tese central, ainda que complexa. Talvez não incorra em simplificação abusiva (pois simplificação sempre haverá numa 19
Max Weber
e o problema da evidência e da validade...
breve apresentação; se não, por que ler o livro para o qual ela chama a atenção?) a sua reconstrução nos seguintes termos: Max Weber enfrenta as questões da possibilidade e dos procedimentos das ciências empíricas da ação num contexto inte lectual que atribui especial relevo ao contraste entre o caráter rigorosamente determinado dos fenômenos naturais e a inde terminação intrínseca aos fenômenos no domínio histórico. Este é visto como a área paradigmática das ciências da cultura e, por extensão, do homem (basta lembrar o desconforto de Dilthey com a sociologia nascente), sendo os fenômenos em questão eventos resultantes do exercício de vontades livres. Determinismo pleno por um lado, que autoriza um conheci mento baseado em regras gerais do acontecer; indeterminação pelo outro, que adstringe o conhecimento nos limites do singular, ainda que exemplar ou até suscetível de formar com outros um sistema. Contra essa corrente dominante no pensamento da sua época insurge-se Weber. É a partir desse ponto que Seneda avança em três largos passos, que percorrem primeiro o problema da fundamentação das ciências empíricas da ação (incluindo nisso o exame da crítica feita por Max Weber das propostas metodológicas do historiador Eduard Meyer); em seguida o problema da evidência do conhecimento pelo ângulo da compreensão interpretativa, o que o leva à (pouco usual) consideração da obra de Karl Jaspers; para finalmente enfrentar o problema da validade da explicação causal no domínio em questão. Não se trata, todavia, de mero esforço de reconstrução, mas de progressiva explicitação daquilo que propõe serem os fundamentos da posição weberiana. Um exame da questão central nos autores que Weber critica, da irracionalidade intrínseca ao mundo histórico, que tornaria inviável a explicação dos fenômenos (eventos) nesse domínio pela via consagrada no domínio da natureza, mediante o recurso a regras gerais nomológicas, leva-o a dois argumentos 20