O corpo na Capoeira MESTRE
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Universidade Estadual
de
Campinas
Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta
Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Esdras Rodrigues Silva – Guita Grin Debert João Luiz de Carvalho Pinto e Silva – Luiz Carlos Dias Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Antunes – Sedi Hirano
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EUSÉBIO LÔBO DA SILVA
O corpo na Capoeira MESTRE
PAVÃO
VOLUME 4 O CORPO EM AÇÃO NA CAPOEIRA
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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELO SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNICAMP DIRETORIA DE TRATAMENTO DA INFORMAÇÃO
Si38c
Silva, Eusébio Lôbo da. O corpo na capoeira / Eusébio Lôbo da Silva. – 2a ed. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012.
Conteúdo: v. 4. O corpo em ação na capoeira. 1. Capoeira. 2. África – Cultura popular. I. Título.
cdd
isbn
978-85-268-0979-6
Índices para catálogo sistemático: 1. Capoeira 2. África – Cultura popular
394.3 301.296
394.3 301.296
Copyright © by Eusébio Lôbo da Silva Copyright © 2012 by Editora da Unicamp
1a edição, 2008 1a reimpressão, 2014
Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, dos detentores dos direitos.
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DEDICO ESTA OBRA
Em especial à doce filha e contramestra Luana (in memoriam). Ao meu filho e segundo contramestre Ariel. A Morena, Conceição e Lanara, filhas e neta queridas. A Silvana e nossos filhos pela permanente confiança e paciência em esperar a produção deste material. Aos meus irmãos Antônio (in memoriam), Maria, Lúcia, Regina e Francisco pela permanente presença em cada uma das minhas realizações.
AGRADECIMENTOS
A Luciana Ribeiro Barbeiro, Laura Pronsato, Martha Dias, Alessandro Oliveira, Tatiana Wonsik e Ligia Tourinho pelo constante apoio. A Adriana Quartarolla pelas leituras, sugestões e correções iniciais dos textos. A Ana Basaglia pela generosidade e estudos gráficos que foram fundamentais para os bons resultados desta publicação. A José Lessa Mattos (David José) pelos constantes e frutíferos diálogos sobre este estudo. A Alex Wissenbach pela extraordinária ajuda em momentos difíceis. Ao mestre Jahça pela dedicação na formação de uma belíssima nova geração de capoeiristas. A Juliana pelas sugestões e comentários ao texto.
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SUMÁRIO
Fala, Mestre.
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Capacitação para o jogo Capacitação individualizada
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Capacitação com obstáculos .
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15
Desenvolvimento de habilidade motora planejada .
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Capacitação em duplas ou exercícios em duplas . Capacitação em jogo estruturado . A roda de capoeira Instalação da roda Ladainha .
Canto de entrada . Corrido
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O berimbau e a responsabilidade sobre a roda
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O canto estimulando e retratando o jogo . Situações e recursos de jogo . A volta ao mundo . Comprar o jogo O passo a dois
A chamada ao pé do berimbau. Iúna .
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Quebra gereba.
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Canto de despedida .
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Conceitos que se depreendem do jogo corporal .
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Malícia
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Negaças
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O espaço e as ações corporais Simetria e assimetria .
Ginga
Negativa
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Novos movimentos: da imprevisibilidade à criação . O conceito de técnica na capoeira .
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88
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Mandinga em ação: o princípio do relaxamento ativo
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O conceito de abaixar o centro do corpo ou manter sempre o contato com o chão . O conceito de resolução.
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O princípio da bipolaridade .
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O princípio da simplicidade .
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94
A ideia de corpo polissêmico
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A conduta ética na capoeira
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Últimas palavras. Fala, Mestre.
Referências bibliográficas .
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FALA, MESTRE
Tenho lido muita coisa sobre o ensino da capoeira. Confesso que sou meio cético quanto às possibilidades de aprender capoeira por meio de livros. Além do mais, a mesmice dos trabalhos publicados vem reforçar essa minha desconfiança. Talvez por isso mesmo eu tenha escrito apenas biografias e algumas ficções. Porém, o novo sempre vem, é só esperar! Meu colega de Academia do Mestre Bimba, Eusébio Lôbo, o mestre Pavão, certa feita me entregou uns originais da sua tese, divididos em quatro volumes, que ele pretendia publicar. Pediu que eu lesse e lhe desse um retorno. A coleção O corpo na capoeira foi uma grata surpresa pra mim. Mestre Pavão, talvez por sua sensibilidade como dançarino, coreógrafo, professor de dança e mestre de capoeira, tem uma ótica totalmente dirigida ao ensino. A simplicidade com que trata o tema “capoeira” é impressionante, digna de um grande conhecedor da matéria em seus vários aspectos: aborda o corpo na capoeira, sua história e suas estórias, os fundamentos, seus movimentos básicos, os tipos de capacitação, tanto individual como em duplas, a roda de capoeira e seu jogo propriamente dito. A leveza com que os temas são tratados torna a leitura agradável e a compreensão fácil. Trabalhando com base nas “sequências” do mestre Bimba e também com os aspectos das capoeiras angola e moderna, ele não deixa dúvidas sobre seu objetivo, que é ensinar através destes livros e ajudar a todos aqueles que pretendem se aprofundar nessa arte, e, eureca, alcança seu intento! Fico feliz em ter que admitir que até então estava errado: pode-se sim aprender, e muito, capoeira através de bons trabalhos e O corpo na capoeira é um deles. Está de parabéns o professor Eusébio, o mestre Pavão; a capoeira e os capoeiristas, além dos estudiosos do assunto, agradecem. Saravá Mestre, e que essa fonte que lhe jorra insana não seque tão cedo, ou nunca. Mestre Itapoan
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CAPACITAÇÃO PARA O JOGO
Capacitação individualizada A capacitação individualizada é um momento fundamental no processo de aprendizagem do capoeirista e o primeiro passo que proponho para o desenvolvimento do trabalho, seja grupal ou não. Nela ocorrem aprendizagens significativas, pois é nos momentos de descontração, em que existe, por parte de cada um, atenção sem tensão ou distração, que se encontra o clima favorável às descobertas pessoais, ou seja, cada estudante descobre seu modo próprio de aprender. Esse conceito – capacitação individualizada –, neste trabalho, indica também que no processo de ensino-aprendizagem não deve ocorrer em nenhuma hipótese um clima de ameaça ao estudantediscípulo. Quando estou ensinando e trabalhando essa etapa, nunca esqueço de dizer aos estudantes que cada um é um, reafirmando que as descobertas são pessoais. Enfim, o que se busca nessa etapa é um contato íntimo com o próprio corpo, através do universo da capoeira. Outro importante fator inserido nesse conceito, e que a capoeira me ensinou desde cedo, foi não compartimentalizar o conhecimento, principalmente quando este faz parte integrante de um processo que envolve pessoas. Por isso, busco, desde o primeiro momento de ensino, a integração dos vários elementos constitutivos dessa arte, sem, contudo, imprimir nessa ideia uma visão fechada. Descrevo a seguir um exemplo de como se podem utilizar os movimentos básicos em uma aula de capoeira. Essa etapa começa pelo aquecimento, que se organiza a partir da execução dos movimentos básicos em um ritmo lento, conjugado aos mais variados tipos de alongamento que o repertório da capoeira proporciona, e pela prática dos cantos. O primeiro movimento a ser estudado é a ginga, que é praticada conjuntamente com alguns cantos de capoeira. Em outras
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palavras, todos gingando e cantando. Puxo uma música, repito o refrão até todos aprenderem, começo então a falar sobre os conceitos básicos que se depreendem da ginga: corpo relaxado; observar a movimentação da pélvis que descreve um semicírculo; não perder o contato e/ou o referencial com o chão; e acrescento algumas observações técnicas como: os braços seguem naturalmente o balanço do restante do corpo, podendo estar direcionados na altura do peito, da testa ou ao lado da cabeça, sendo essas posições apenas algumas das alternativas básicas para o posicionamento dos braços com o intuito de proteger a face; o molejo nasce do relaxamento, que, por sua vez, nasce da respiração. Não há a necessidade da apresentação de todos esses conceitos e explicações técnicas de uma vez, além disso, citei apenas alguns, pois o leitor pode rever o que já foi dito anteriormente a respeito da ginga no volume 3 desta coleção. Passo para o estudo da meia-lua de frente sem a utilização do canto. Vou realizando o movimento a uma baixa altura, encorajando os estudantes a fazer o mesmo, e explicando que essa primeira execução objetiva o aquecimento das articulações coxofemorais e a facilitação da descoberta do modo pessoal de execução do movimento desejado ou planejado. Em seguida vou aumentando a altura da meia-lua de frente e observo o que cada um deverá executar dentro de sua própria possibilidade. Observo também os conceitos que se depreendem desse movimento. Retomo, em seguida, a execução da ginga com a meia-lua de frente e o canto. Repito os mesmos procedimentos com os movimentos a serem estudados, que seguem a ordem dos movimentos básicos apresentados no volume 3 desta coleção, e em número de repetições que corresponde às necessidades de complementação do aquecimento e tempo total de aula, portanto, durante essa primeira etapa o estudante que canta e se movimenta tem mais facilidade para descontrair-se e, consequentemente, envolver-se em um clima agradável para trabalhar a si mesmo. Chamo essa primeira etapa de capacitação individualizada, porém isso não significa que ocorra de modo individualista. Indivi-
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dual, pois, através da execução dos movimentos do repertório da capoeira, o estudante pode descobrir seu potencial para conhecer o seu corpo, e consequentemente a si mesmo. Repito a premissa de que “crescer é aprender e descobrir como se aprende; só cada um pode fazê-lo”. Não estou, com essa afirmação, descartando o papel do mestre, que nessa etapa atua como o facilitador do processo de aprendizagem ou processo de descobertas pessoais do discípulo, portanto, esse processo não ocorre de modo individualista. Para aprender capoeira há a necessidade de um mestre, ressalto novamente, que estimule e catalise o processo de evolução do estudante. No que foi apresentado, há, portanto, a ideia de um desenvolvimento progressivo, natural, que pode ser utilizado no processo de aprendizagem da capoeira, quando observamos sistematicamente a efetiva ação corpórea. É o caso da relação entre a cocorinha, a esquiva, a queda de rim e o coice, pelo nível de complexidade ou dificuldade de execução. Em termos corporais, cada um desses movimentos é preparatório para o movimento posterior; assim, a boa aprendizagem1 inclui o domínio teórico-prático, numa visão do sujeito como unidade psicofísica. Teórico, a partir dos conceitos básicos que se depreendem da ação do corpo no espaço; e prático, a partir da descoberta do funcionamento de cada um. Acrescente-se a isso a conjugação da boa execução do movimento na capacitação individualizada com a sua aplicação no jogo. Tudo isso é fundamental para a boa aprendizagem do movimento de próximo nível ou de maior complexidade a ser alcançado. Mesmo quando o capoeirista treina sem a presença do mestre, ele não se encontra sozinho, pois um dos mais importantes aliados nesse tipo de capacitação é a sua imaginação. O uso do companheiro imaginado na capacitação individualizada levará o estudante a: treinar com objetividade, ou seja, visando a aplicação dos movimentos no jogo; conhecer melhor os elementos das três dimensões do espaço, tais como níveis, direções e dimensões etc., e 1 Refere-se ao processo de ensino-aprendizagem que inclui em seus pressupostos básicos o respeito à integridade corpórea da pessoa.
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desenvolver afinidade com eles; e, o mais importante, reconhecer a evolução que ocorrerá com o tempo de prática, em que ele “luta” consigo mesmo. Em consequência do desenvolvimento desse último ponto levantado, mas que não é a última possibilidade de descoberta pessoal através da capoeira, posso dizer que esse é o ponto de partida para a maturidade de todo aquele que se desenvolve no campo das artes marciais. Aquele que descobre que a luta não ocorre com o outro passa a entender na prática a diferença entre lutar e brigar. Aquele que chega a um estágio elevado na capoeira descobre que toda arte marcial ensina a arte de não brigar. O exercício da imaginação não fica apenas na teoria, pois tem uma ligação direta com a prática cotidiana. Vamos exercitá-la agora. Imagine que você treina com regularidade e, nessa capacitação, descobre muitas possibilidades de machucar seu oponente. Portanto, você o vence diariamente. Quando ocorre de você ser desafiado na vida real, você tem um elemento extremamente importante para usar no desafio que é seu conhecimento de como vencer o oponente – aquele que você vence na capacitação –, agora representado na pessoa que o desafia. Acima do seu conhecimento, do seu poder, há um outro elemento mais forte, que pode mudar a trajetória acima descrita, que é o fato de que você pode escolher entrar em combate ou não. Nesse momento você pode reconhecer que luta com um oponente todos os dias e o vence, portanto, pode se questionar: Para que vou fazê-lo neste determinado momento mais uma vez? Vale a pena fazê-lo ou não? Isso significa que você, em relação a uma pessoa que não pratica artes marciais ou a pratica mal, tem a vantagem de ter desenvolvido a habilidade de saber escolher. Outro aspecto importante é que aquele que desafia, em geral, tem algo a provar para si mesmo e é mais frágil, pois quem tem realmente poder não necessita correr atrás dele. O poder a que me refiro é o poder interior. Quando é esse o caso, o capoeirista sabe também que uma das condutas éticas mais valorizadas na capoeira é não agredir uma pessoa sabidamente mais fraca.
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Capacitação com obstáculos Nessa etapa de capacitação, os mesmos movimentos estudados no espaço livre, dentro da perspectiva do corpo na capoeira, são estudados em uma capacitação com obstáculos. Essa sistematização de capacitação proposta aqui nasceu também de observações e de soluções que encontrei para o aperfeiçoamento de minha prática pessoal e de ensino. No entanto, são variadas as formas de capacitação com obstáculos que um mestre cria para auxiliar o desenvolvimento do estudante, dentro da perspectiva do respeito à individualidade da pessoa. Descrevo duas que costumo utilizar: a primeira é realizada colocando-se uma cadeira ou um banco em frente do estudante, propondo-lhe a aplicação dos movimentos estudados anteriormente, agora sobre um pequeno obstáculo. Esse obstáculo deve ser um problema a ser resolvido por ele, porém, como argumenta João Batista Freire2 em seu brilhante livro Pedagogia do futebol, “[...] a inteligência, para se desenvolver, precisa de problemas, porém de problemas possíveis, pouco adiante do nível em que se encontra a criança [pessoa] num dado momento [...]”. Nesse tipo de capacitação, tanto o mestre ou professor quanto o estudante-discípulo podem retomar os conceitos que se depreendem da ação do corpo na capoeira. Estes devem ser seguidos, pois determinam a forma do movimento, que é individual. Por meio deles o estudante tem oportunidade de, mais uma vez, tomar contato com seu próprio corpo, ou seja, consigo mesmo. O obstáculo permite ao estudante desenvolver uma noção espacial mais acurada, por exemplo: quando ele aplica uma meia-lua de frente sobre um banquinho, geralmente descobre que o movimento tem volume e a sua natureza é circular, além disso, adquire a confiança e a segurança necessárias para aplicar o mesmo movimento sobre o companheiro de treino, evitando acidentes. 2 João Batista Freire, Pedagogia do futebol: bibliografia, p. 31.
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É nessa forma de capacitação que o estudante tem uma excelente oportunidade para aumentar a sua autoestima, ao vencer um obstáculo possível; desenvolve também reflexo básico, simples, quando sente a necessidade de levantar um pouco mais a perna, no momento do ápice do movimento, para ultrapassar o obstáculo pretendido. Desenvolve conjuntamente equilíbrio e amplitude de movimento. Outro aspecto fundamental é o desenvolvimento da visão periférica, pela necessidade de focalizar em frente, linha do horizonte, como se estivesse olhando para um companheiro de jogo e, ao mesmo tempo, manter a referência do obstáculo. Promove ainda a apreensão do conceito de atenção sem tensão. Mesmo sendo um obstáculo possível de ser ultrapassado, a falta de atenção leva à perda do objetivo proposto, o que ocorre, geralmente, com a derrubada do obstáculo. Por outro lado, qualquer forma de tensão leva à rigidez corpórea e também à perda do objetivo. Esse é um dos fundamentos da capoeira que é utilizado pelos mestres para explicarem o princípio da mandinga. Tal abordagem de capacitação não objetiva a perfeição dos movimentos, como muitos poderiam interpretar em uma leitura desatenta, mas o aprimoramento ou a aproximação entre a execução e o movimento desejado ou planejado. Em outras palavras, não depende de erro ou acerto, ou mesmo da reprodução de uma ideia preestabelecida do que poderia ser a execução perfeita da técnica do movimento estudado, mas, pelo contrário, objetiva-se facilitar ao estudante a descoberta de caminhos mais organizados, menos confusos, para a solução de problemas atuais e futuros. Busca-se, portanto, o desenvolvimento da aprendizagem dos mesmos movimentos estudados anteriormente sem obstáculo, acrescidos de um pequeno grau de dificuldade. O obstáculo substitui, de certo modo, um adversário; ele representa um oponente que não ameaça, mas que promove um pequeno limite à ação do praticante. Estabelece também uma situação em que o estudante não poderá copiar o movimento de outro companheiro de treino. A execu-
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ção dependerá do seu entendimento prático daquilo que ele planeja executar. Nessa situação vale um dos conceitos que identifiquei desde as minhas observações em 1983, quando argumentei que “Não acontece um resultado do seu trabalho corporal em outro corpo. Portanto, toda dedicação, cabeça fria e perseverança só serão bons fatores para seu sucesso”.3 Retomo essa ideia em 1993, ressaltando a valorização do potencial individual do estudante.4 O tipo de capacitação acima descrito deverá ser efetuado sem o uso da ginga, pelo menos em um primeiro momento, para que se tenha um grau de dificuldade de execução aumentado e, consequentemente, se promova a necessidade da execução do repertório da capoeira, a partir do impulso interior, sem o auxílio do balanço do corpo; isso auxilia também o estudante a não “telegrafar” os movimentos-golpes no jogo. Em seguida, repetem-se os mesmos exercícios utilizando-se da ginga, dando ênfase à incorporação do movimento no jogo. Um terceiro modo de praticar com obstáculo é o exercício em que o professor coloca um braço estendido em frente do estudante e este aplica os movimentos estudados para atingir ou ultrapassar a sua mão, que deverá encontrar-se a uma altura também possível de êxito para o executante. Gradativamente, a altura do obstáculo deve ser aumentada. Essa forma de capacitação pode ser aplicada também em duplas para estimular o trabalho grupal nesse processo de aprendizagem. Como argumentei anteriormente, o processo de aprendizagem na capoeira ocorre também nos momentos de capacitação com os colegas. Quero dizer: aprendese também com os colegas de treinamento. Um quarto modo é a utilização de um obstáculo em movimento. Chamo esse tipo de atividade de capacitação com obstáculo móvel. O primeiro passo para a aplicação desse tipo de capacitação é a exposição detalhada, por parte do professor ou mestre, que
3 Eusébio Lôbo da Silva, Comentários e instruções sobre a dança, p. 19. 4 Idem, “Método de ensino integral da dança: um estudo do desenvolvimento dos exercícios técnicos centrado no aluno”.
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deve ser alguém com a devida formação, de como funcionará o exercício e da forma de utilização do instrumento-obstáculo. Para executar esse treinamento retiro o arame de um berimbau ou utilizo o cabo de uma vassoura ou um canudo feito previamente de jornais enrolados. O tipo de material depende do estágio do aprendiz na aula. Com um estudante em minha frente, vou lentamente passando o obstáculo na altura de sua cabeça e ele responde a essa ação com a execução da cocorinha. Gradativamente e, dependendo do nível de agachamento dele, vou aumentando a velocidade e diminuindo a altura. Dentro da capacitação com obstáculo móvel, utilizo também outro procedimento. Depois da explicação do exercício, uso bolas de tênis ou bolas feitas de meias enroladas, lançando-as a uma distância aproximada de dez metros, na direção do estudante, que responde com esquivas; inicialmente mantenho intervalos longos entre um lançamento e outro e, depois, diminuo os intervalos aumentando a velocidade. A capacitação com obstáculos móveis também deverá ser realizada sem o uso da ginga, por uma razão inversa àquela pela qual é feita a capacitação com obstáculos fixos, pois desse modo o exercício fica mais fácil e compatível com o objetivo do treino. Após tratar do fenômeno da aproximação entre o que se deseja realizar e a sua efetivação nas duas primeiras partes deste volume, apresento alguns dos elementos que identifiquei sobre o desenvolvimento de habilidade motora planejada, em pesquisa de doutoramento em 1993, agora dentro de uma perspectiva do corpo na capoeira.
Desenvolvimento de habilidade motora planejada Abordo a técnica da capoeira como um processo de constante desenvolvimento do estudante; por isso acredito que ela não se encontra voltada para resultados imediatos, mas para uma constante autoavaliação e descoberta dos caminhos para a liberdade de
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atuar nas mais variadas formas, ou, como argumenta Barbieri,5 nos diversos sentidos da capoeira, de aplicação da capoeira. O estudante deve entender que o processo de aprendizagem da capoeira requer um longo período de dedicação e treino. Às vezes ele se frustra se não consegue realizar tudo de modo perfeito numa aula, talvez por não entender que sempre terá outra oportunidade para acertar. Proponho um processo de ensino de capoeira com a participação de responsabilidade igualitária na relação professor-estudante, baseado no respeito e na valorização da pessoa do mestre-professor e do estudante-discípulo. O professor e o estudante, nesse processo de ensino-aprendizagem, podem ser vistos como dois elementos que, igualmente, funcionariam como duas linhas de mesma profundidade, espessura e altura, que vão ao encontro uma da outra. Ao se encontrarem no centro, formam uma única linha que estará integrada, realizando assim, cada uma, 50% do trabalho proposto. Portanto, um processo de complementaridade para atingir um mesmo objetivo. Observo também que o estudante, quando aborda a técnica como objetivo final e não como um processo dinâmico de constante crescimento, geralmente faz um autojulgamento severo das suas realizações nos exercícios propostos, talvez por usar de uma avaliação do tipo “acerto” e “erro”, o que o leva a criar um empecilho para descobrir seu modo próprio de aprendê-los, ou seja, deixa de perceber o modo como executou o exercício e de perceber novos caminhos para conseguir seu objetivo. Acredito no pressuposto de que o processo de aprendizagem dos exercícios de capoeira não pode ser baseado na competitividade entre os estudantes, tradicionalmente incentivada através de comparações, pois, reforçando o que foi dito anteriormente, o processo e o resultado em um corpo não acontecem da mesma forma em outro corpo. É preciso ressaltar, portanto, a valorização do potencial individual de cada um. Durante esse processo, enfatizo o aprimora5 César Augusto S. Barbieri, Um jeito brasileiro de ser.
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VOLUME IV
mento da capacidade de relaxamento para a introdução do movimento desejado, pois assim os estudantes se permitem uma melhor análise e autoavaliação da qualidade da execução do seu movimento. Um resultado que considero significativo, proveniente da utilização desse procedimento em aulas nos últimos 15 anos, é a mudança de atitude prática quanto à tolerância à frustração; os estudantes deixam de querer resultados imediatos e com isso passam a encarar esse processo como um meio para o seu desenvolvimento técnico, ao invés de entendê-lo como objetivo final, consequentemente, utilizam-se do processo para descobrir sua própria maneira de introduzir o movimento desejado e, paradoxalmente, esse movimento desejado acontece com mais frequência do que o esperado. Constatei que os estudantes passam a executar os exercícios propostos de forma menos confusa, procurando utilizar um menor número de unidades motoras6 e fazendo uma correspondência entre o movimento desejado e a sua atuação. Isso permite inferir que não é apenas a técnica ou o método utilizado para a aprendizagem que modifica o resultado, mas a atitude do estudante ante o conteúdo a ser aprendido. Utilizo meus conhecimentos dos elementos básicos da capoeira como instrumentos auxiliares para a integração do estudante, invertendo, assim, o objetivo tradicional de valorização, que coloca em primeiro lugar o resultado em vez do processo, no qual o estudante é o principal ator da aprendizagem. Sei que as técnicas de capoeira surgem a cada dia como consequência de criações estilísticas e da necessidade de reprodução destas, o que de certo modo contribui para o desenvolvimento da capoeira. Entretanto, por não serem “universais”, o domínio dessas técnicas ocorre, muitas vezes, em detrimento da pessoa do capoeirista que as executa; em geral, as técnicas tradicionais favorecem um determinado biótipo, por terem sido desenvolvidas a partir de
6 Segundo Canelas: “[...] a unidade motora é constituída por um motoneurônio com seu axônio e as fibras musculares por ele inervadas” (Canelas; Assis e Scaff, Fisiopatologia do sistema nervoso, p. 49).
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