O gênero da Dádiva

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universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta

Conselho Editorial

Presidente Eduardo Guimarães

Esdras Rodrigues Silva – Guita Grin Debert João Luiz de Carvalho Pinto e Silva – Luiz Carlos Dias Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Luiz Coltro Antunes – Sedi Hirano Comissão Editorial da coleção Gêneros & Feminismos

Mariza Corrêa (coord.) – Adriana Piscitelli Guita Grin Debert – Inês Joekes – Julio Assis Simões Margareth Lopes – Sergio Carrara

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Marilyn Strathern

O gênero da dádiva problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na melanésia

t rad uç ão

André Villalobos

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ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação St82g

Strathern, Marilyn. O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Melanésia / Marilyn Strathern; André Villalobos, tradutor. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2006. (coleção Gêneros & Feminismos) Tradução de: The gender of the gift: problems with women and problems with society in Melanesia 1. Melanésios – Vida e costumes sociais. 2. Mulheres – Melanésia – Condições sociais. 3. Feminismo. I. Título.

CDD 309.193 301.412 ISBN 85-268-0721-8 Índices para catálogo sistemático: 1. Melanésios – Vida e costumes sociais 2. Mulheres – Melanésia – Condições sociais 3. Feminismo

309.193 301.412 301.412

Copyright © 1988 by The Regents of the University of California Copyright da tradução © 2006 by Editora da ­Uni­camp 1a reimpressão, 2009 2a reimpressão, 2013 Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, dos detentores dos direitos. Printed in Brazil. Foi feito o depósito legal.

Direitos reservados à Editora da Unicamp Rua Caio Graco prado, 50 – Campus Unicamp cep 13083-892 – Campinas – sp – Brasil Tel./Fax: (19) 3521-7718/7728 www.editora.unicamp.br – vendas@editora.unicamp.br

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Gêneros & Feminismos

A coleção Gêneros & Feminismos foi criada pela equipe de pesquisadores do Pagu–Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp e recebe o apoio da Editora da Unicamp. Voltada para a divulgação de obras importantes da história do feminismo e da área de estudos de gênero, no país e no exterior, pretende ser uma fonte de referência importante para os pesquisadores dessa área em nosso país.

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Para B. H. M., H. T. e A. L.

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Agradecimentos

A causa e a origem deste livro têm fontes distintas. Sua causa foi um convite do Departamento de Antropologia da Universidade da Califórnia, em Berkeley, para proferir uma série de conferências em 1984. Sua origem pertence à Universidade Nacional da Austrália, de Canberra, onde estive em 1983-1984 como membro de um grupo de pesquisa no Departamento de Antropologia. O grupo se autodenominava Relações de Gênero no Pacífico Sul-Ocidental: Ideologia, Política e Produção, e tomei emprestado esse título para minhas conferências. Por me fazerem sentir tão bem-vinda, devo um agradecimento especial ao então chefe do departamento em Berkeley, Nelson Graburn, e a Elizabeth Colson, que estava em seu último ano de docência. Devo muito também ao interesse de uma classe de estudantes que garantiu que eu não pudesse sair-me com excessivas liberdades — Jeanne Bergman, Nicole Constable, Roger Lancaster, Nancy Lutz, Kamala Visweswaran. Gayle Rubin e Marilyn Gelber fizeram ambas comentários substanciais. Gail Kligman, Amal Rassam e Kirim Narayan saberão por que posso querer lembrá-las aqui, o mesmo aplicando-se a Paul Rabinow. O estímulo californiano foi, em seguida, mantido através da extensa e crítica apreciação que este trabalho recebeu dos editores da série Melanesian Studies. Tive a felicidade de continuar a ser provocada pelo

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interesse dos estudantes, incluindo os do Departamento de Antropologia Social de Manchester, para os quais aventurei minhas idéias em 1986-1987. Agradeço a todos os colegas do departamento que, intelectualmente ou de outras formas, me ajudaram neste empreendimento. Entretanto, foi durante o ano de 1985, no Trinity College, em Cambridge, que a primeira versão foi escrita, e esse interlúdio foi inestimável. O grupo de pesquisa da una foi organizado por Roger Keesing, Marie Reay e Michael Young. Em outros lugares, juntei-me a membros desse grupo em publicações: reconheço aqui minha dívida pelo apoio que me deram. Sou grata a James Wiener por sua competente crítica de uma versão mais antiga, a David Schneider e Lisette Josephides por seus comentários e a Margaret Jolly por me haver fornecido tanto material como idéias. Christina Toren reconhecerá, espero, o efeito de seu aconselhamento. Com irrestrita generosidade, o chefe e os funcionários do Departamento de Antropologia da una ajudaram-me na preparação deste manuscrito algum tempo depois de eu ter deixado sua companhia: meus agradecimentos aqui são uma compensação muito inadequada para a proficiente ajuda de Jean Ashton, em Manchester. As conferências de Berkeley foram ocasião para reunir tópicos tratados em outros contextos. Elas foram posteriores, mas também se beneficiaram de vários anos de cooperação com Andrew Strathern. Além disso, por me permitirem utilizá-los aqui, sou grata aos editores e às casas editoriais dos seguintes artigos: • “Subject or object? Women and the circulation of valuables in Highlands New Guinea”, in R. Hirschon (org.), Women and property, women as property. Londres: Croom Helm, 1984. • “Domesticity and denigration of women”, in D. O’Brien e S. Tiffany (orgs.), Rethinking women’s roles: perspectives from the Pacific. Berkeley, Los Angeles, Londres: University of California Press, 1984. • “Knowing power and being equivocal”, in R. Fardon (org.), Power and knowledge: anthropological and sociological approaches. Edimburgo: Scottish Academic Press, 1985. Um agradecimento especial deve ser tributado a Gilbert Herdt. O livro não poderia ter sido escrito sem a agudeza com que ele focalizou

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certas abordagens analíticas ao estudo de ritual. Conquanto tome uma forma mais propriamente complementar do que a de uma cismogênese simétrica, minha resposta deve ser interpretada como antes positiva do que negativa. Há uma espécie diferente de dívida para com aqueles cujo trabalho foi absorvido para tornar-se parte do próprio trabalho da autora. Para mim, eles permanecem figuras distintas de mim mesma, mas seria falso agradecer-lhes separadamente pelo uso que aqui faço de suas idéias — e tão ridículo como expressar gratidão por haver nascido. Devo, contudo, confessar haver trapaceado em um aspecto. Minha exposição representa os limites bibliográficos deste exercício tal como eles se apresentavam em 1985, embora certamente eu tenha sido influenciada por trabalhos surgidos depois disso. Sem dúvida, escritos mais recentes de Roy Wagner foram de longe os mais significativos. Não agradeci a todas as minhas outras fontes, como os relatos sobre si próprios fornecidos por tantos melanésios hospitaleiros para introduzir antropólogos de diferentes orientações. No meu caso, especialmente, o povo de Hagen e Pangia. Não são eles que precisam deste livro ou que precisariam ter escrito um livro semelhante. Mas, se algum deles se preocupasse em lê-lo, espero que o tempo verbal no presente e o uso do “nós”, significando “nós, os ocidentais”, não se revele demasiado irritante. O problema com o tempo é que nem o passado nem o presente são realmente adequados — o último sugerindo questões intemporais, congeladas no registro etnográfico, o primeiro sugerindo que elas pertencem a uma era desaparecida e não mais relevante. Por certo, nenhum deles transmite a verdade, posto que as idéias não são tão móveis ou imóveis como sugere qualquer tentativa semelhante de localizá-las. É uma pena que se esteja confinado à escolha gramatical. E é uma pena que o inglês não tenha uma forma dual, pois nesse caso poder-se-ia também usar o “nós” no sentido de “nós dois”, uma inclusão que não obliteraria a separação. Na verdade, o trabalho pode ser lido tanto como uma escusa quanto como uma apologia de uma língua e uma cultura que não fazem dessa possibilidade singular uma preocupação central de seu modo de imaginar-se. marilyn strathern Trinity College, Cambridge, 1985 – University of Manchester, 1987

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A mulher é um ser social, criado numa sociedade específica e por essa sociedade. Como as sociedades diferem, assim ocorre também com as mulheres. É fácil esquecer disso e ver a “mulher” como uma categoria eterna e imutável. A mulher da Grécia antiga é vista como a mesma de hoje, transformadas apenas as suas circunstâncias. Surge dessa visão uma percepção a-histórica do significado de ser mulher e da simples continuidade da opressão que sofremos. Uma citação de Xenofonte contra as mulheres acomoda-se confortavelmente ao lado de uma de santo Agostinho, e ambas concordam com as de Rousseau, Hegel e Norman Mailer. Mulher, homem e misoginia tornam-se constantes, apesar da transformação do mundo em torno deles. Eu afirmaria, ao contrário, que as mulheres e os homens, assim como a natureza da misoginia e da opressão, são todos qualitativamente diferentes em diferentes tempos e lugares. A sensação de similaridade, de paralelos traçados com facilidade, é ilusória. As mulheres, elas próprias, mudam. São precisamente as diferenças nas circunstâncias o crucial para o significado e para a compreensão do tornar-se uma mulher. Precisamos, portanto, entender a especificidade de nossas próprias circunstâncias para compreendermos a nós mesmas. jill julius matthews, Good and mad women, 1984

A unidade de investigação é a vida social de alguma região do mundo durante um certo período de tempo. a. r. radcliffe-brown, Structure and function in primitive society, 1952

O futuro da sociedade ocidental está em sua capacidade de criar formas sociais que tornem explícitas as distinções entre as classes e segmentos da sociedade, de modo que essas distinções não resultem por si mesmas em racismo implícito, discriminação, corrupção, crises, tumultos, “fraudes” e “trapaças” necessárias, e assim por diante. O futuro da antropologia está em sua capacidade de exorcizar a “diferença” e torná-la consciente e explícita. roy wagner, The invention of culture, 1975

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Sumário

Prefácio ........................................................................................ 19 introdução 1. Estratégias antropológicas ........................................................... 27 2. Um lugar no debate feminista ..................................................... 53

3. 4. 5. 6.

parte 1 Grupos: antagonismo sexual nas Terras Altas da Nova Guiné .... 81 Domínios: modelos masculinos e femininos ............................... 115 Poder: afirmações e contra-afirmações........................................ 159 Trabalho: a exploração em questão ..............................................207

parte 2 7. Algumas definições ..................................................................... 8. Relações que separam ................................................................. 9. Formas que se propagam ............................................................ 10. Causa e efeito .............................................................................

261 287 333 393

conclusão 11. Dominação ................................................................................. 445 12. Comparação ............................................................................... 487 Bibliografia ................................................................................. 493 Índice onomástico ....................................................................... 513 Índice remissivo .......................................................................... 517

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Prefácio

Era uma antiga esperança a de que o conhecimento acadêmico de inspiração feminista na antropologia não só transformaria as maneiras de escrever sobre mulheres ou sobre mulheres e homens, mas transformaria também as maneiras de escrever sobre cultura e sociedade. Essa esperança se realizou em alguma medida através da experimentação com modos narrativos. O presente exercício é um experimento que explora a análise antropológica ortodoxa como sendo ela própria uma forma literária desse tipo. Seu estilo é argumentativo. Embora parte do estímulo para esse exercício venha de fora da antropologia, ele decorre também de uma necessidade interna: estou interessada em uma área do mundo, as ilhas da Melanésia, onde o simbolismo de gênero* exerce um papel importante na conceituação das pessoas sobre a vida social. Poucos etnógrafos podem evitar as questões das relações de gênero. Poucos até hoje julgaram necessário desenvolver * Neste trabalho, “gênero” como substantivo não qualificado refere-se a um tipo de diferenciação categorial. Não me estou referindo a identidade de gênero, a menos que o explicite. Seja ou não considerado inato o caráter sexual do corpo ou da psique de uma pessoa, a apreensão da diferença entre “os sexos” assume invariavelmente uma forma categorial, e é a isso que gênero se refere. Nesta exposição, as formas “masculino(a)” [male] e “feminino(a)” [ female] indicam construtos de gênero.

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algo que se possa chamar de uma teoria do gênero. Entendo por “gênero” aquelas categorizações de pessoas, artefatos, eventos, seqüências etc. que se fundamentam em imagens sexuais — nas maneiras pelas quais a nitidez das características masculinas e femininas torna concretas as idéias das pessoas sobre a natureza das relações sociais. Tomadas simplesmente como sendo “sobre” homens e mulheres, tais categorizações têm muitas vezes parecido tautológicas. Na verdade, suas possibilidades inventivas não podem ser apreciadas enquanto não se atente para a maneira pela qual relações são construídas por meio delas. Entender como são vistas pelos melanésios as relações de gênero não é algo que deva ser separado da compreensão de como se apresenta para eles a sociabilidade. Tomar o gênero como um objeto teoricamente distinto requer, portanto, abordar os princípios sobre os quais essas categorizações se baseiam e perguntar sobre sua generalidade através das sociedades dessa região. Tal empreendimento não poderia ignorar a origem desse interesse nas questões levantadas pelo pensamento acadêmico feminista ocidental. A primeira parte deste livro movimenta-se para trás e para adiante entre certas questões antropológicas e certas questões de derivação feminista pertinentes aos textos das etnografias melanésias escritos ao longo das últimas décadas. Minha intenção inicial foi a de documentar a influência que a teoria feminista pudesse ter tido sobre a antropologia da região: se haveria novos fatos e temas originários do novo feminismo surgido na Europa Ocidental e na América do Norte no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, período que também foi de expansão do trabalho de campo antropológico na Melanésia. Não consegui, finalmente, realizar esse balanço histórico. Parece ser mais fácil incorporar novas idéias como assunto para discussão e debate do que adotá-las como preceitos para a prática etnográfica. As primeiras exceções incluem o trabalho de Annette Weiner e Daryl Feil. No conjunto, todavia, a abundância de discussões gerais sobre a “antropologia da mulher” ou sobre “relações de gênero” não foi acompanhada por descrições de sociedades inteiras, informadas por uma perspectiva feminista. Mesmo onde houve mudanças aparentes, as conexões podem ser deixadas para inferência. Poucos etnógrafos melanesianos se referem diretamente a seu trabalho como feminista; alguns admitem o feminis-

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