O protagonismo popular
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universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta
Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Elinton Adami Chaim – Esdras Rodrigues Silva Guita Grin Debert – Julio Cesar Hadler Neto Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Antunes – Sedi Hirano
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Márcia Cury
O protagonismo popular experiências de classe e movimentos sociais na construção do socialismo chileno (1964-1973)
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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.
ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação Bibliotecária: Maria Lúcia Nery Dutra de Castro – crb-8ª / 1724 C949p
Cury, Márcia O protagonismo popular: experiências de classe e movimentos sociais na construção do socialismo chileno (1964-1973) / Márcia Cury – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2017. 1. Unidade popular – Chile. 2. Classe trabalhadora – Chile. 3. Socialismo – Chile. 4. Conflito social – Chile. I. Título.
cdd - 320.983
- 322.20983 - 320.5310983 - 301.630983
e-Isbn 978-85-268-1433-2
Copyright © by Márcia Cury Copyright © 2017 by Editora da Unicamp
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Agradecimentos
Este trabalho é resultado da pesquisa que originou minha tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política do IFCH, na Unicamp. Esse resultado certamente não seria alcançado se não houvesse o envolvimento, direto ou indireto, de várias pessoas que contribuíram ao longo das diferentes etapas da sua realização. Agradeço à Fapesp e à Capes pelo financiamento que possibilitou a concretização da pesquisa que resultou neste trabalho. Agradeço aos colegas pesquisadores do Chile, sem os quais uma parte fundamental deste trabalho não teria sido possível. Todos dispuseram de seu tempo, de seus contatos e de seus materiais, para me auxiliar nos longos passos da pesquisa e no trabalho de transcrição das entrevistas, que, além de facilitar a escrita da tese, me ajudou a compreender os “chilenismos”. E ao Fernando Velo, que gentilmente cedeu seu belo registro histórico em arte fotográfica, para compor este livro. Meu profundo agradecimento por tanta generosidade e solidariedade. Àqueles funcionários que, com tanta disposição, me ajudaram no trabalho de pesquisa na Biblioteca Nacional do Chile, no Arquivo Nacional e na Biblioteca do Congresso Nacional. Aos professores Michael Hall, Robert Sean Purdy e Márcia de Paula Leite, cujas arguições na banca de defesa da tese tanto con-
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tribuíram para a elaboração desta versão final; ao professor Mario Garcés pela ajuda com tudo, desde a bibliografia até os primeiros contatos com a periferia santiaguina; à minha orientadora Evelina Dagnino, com quem tanto aprendi, pelas leituras atentas, orientações e observações sempre precisas. À minha mãe, amiga de todas as horas, à minha família e aos meus amigos, que, mesmo distantes, foram fundamentais. O meu agradecimento especial vai para as mulheres e os homens que amavelmente me receberam e a mim confiaram suas experiências por meio das entrevistas que me concederam. Terei sempre profunda gratidão e admiração por essas pessoas que lutaram por um ideal. Agradeço ao meu Vinícius, tão essencial, por tudo o que é, por todo o amor e tudo mais que me proporciona, que é simplesmente o melhor que tenho.
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Porque esta vez no se trata de cambiar un presidente será el pueblo quien construya un Chile bien diferente... Ya nadie puede quitarnos el derecho de ser libres y como seres humanos podremos vivir en Chile Inti-Illimani, “Canción del poder popular”
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Sumário
Prefácio........................................................................................................ 11 Introdução.................................................................................................. 15 1. O movimento operário e a questão social no
debate político................................................................................... 33 1. Novos atores políticos e a “questão social”...................................................... 2. O movimento operário................................................................................. 3. A organização e a representatividade no cotidiano.......................................... 4. O fim da autonomia?..................................................................................
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2. Construindo identidades: As lutas do cotidiano............ 99 1. As origens.................................................................................................. 103 2. “Ocupando” seus espaços............................................................................. 109 3. Estado, partidos e pobladores...................................................................... 117 4. Os acampamentos e a radicalização do discurso político. . ................................. 129 5. Os pobladores e a luta de classes.................................................................. 147 3. A hora e a vez da revolução: Projetos de
transformação nacional................................................................ 161 1. A expectativa de mudança.. .......................................................................... 163 2. A Democracia Cristã e a Revolução em Liberdade. . ........................................... 166
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3. A Promoção Popular: O despertar da marginalidade?. . ..................................... 182 4. Os limites da harmonia social. . ..................................................................... 195 5. Os caminhos à “via chilena”......................................................................... 204 6. A unidade do popular.. ................................................................................ 219 4. “Trabajadores al poder!” Da participação proposta
à participação vivida...................................................................... 233 1. Os primeiros passos..................................................................................... 234 2. A participação proposta. . ............................................................................. 239 3. A participação vivida.. ................................................................................. 245 4. A participação ampliada............................................................................. 255 5. Os limites do consenso................................................................................. 264 6. Um novo sentido para o trabalho.................................................................. 282 5. “Crear, crear poder popular!”..................................................... 301 1. O cenário de crise........................................................................................ 302 2. As JAPs da Unidade Popular......................................................................... 306 3. A crise de outubro....................................................................................... 315 4. As JAPs e a disputa política.......................................................................... 329 5. Os Cordões Industriais................................................................................. 340 6. Os Comandos Comunais. . ............................................................................. 352 7. 1973, a mobilização popular e o seu significado. . ............................................. 366
Considerações finais............................................................................. 383 Fontes e bibliografia............................................................................ 391
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Prefácio Evelina Dagnino
O período do governo da Unidade Popular sob a presidência de Salvador Allende (1970-1973) foi, sem dúvida, um dos processos políticos mais marcantes na história da esquerda latino-americana e inspirou, ao longo dos anos, um número significativo de análises. Grande parte destas privilegiou a dinâmica institucional do período, os partidos políticos, suas disputas e a articulação do golpe militar que encerrou o período. O que distingue o estudo de Márcia Cury é o seu ponto de parti da: a vontade de investigar protagonistas menos conhecidos desse processo, os trabalhadores chilenos e as suas práticas políticas. Nessa perspectiva, esse estudo se alinha a uma já bem conhecida escola, a da “história vista de baixo”, que busca revelar a atuação de sujeitos ignorados ou secundarizados pela historiografia dominante. Munida desse ponto de partida e por meio de uma pesquisa cuidadosa, Márcia resgata e analisa a experiência vivida dentro e fora do espaço de trabalho dos setores urbanos de Santiago, constituída pelas lutas dos trabalhadores por direitos sociais, por sua visão de mundo, por suas práticas políticas e por sua vinculação estreita com a esquerda ao longo do século XX. Na sua análise, ela trabalha com a hipótese da reapropriação do projeto socialista pelos trabalhadores. Essa reapropriação não implica
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a existência de uma dupla revolução, uma revolução “de baixo” e uma revolução “de cima”, como defendem alguns autores. E isso porque havia claramente um “compartilhamento de projetos políticos” entre, de um lado, os setores populares, trabalhadores e movimentos sociais e, de outro, os partidos de esquerda, compartilhamento consolidado ao longo de décadas. A autora evidencia que esse compartilhamento, no entanto, era caracterizado tanto pelo consenso como pela existência de tensões e conflitos. A influência mútua entre ambos foi o que possibilitou a mobilização de projetos que consolidaram uma tradição de esquerda no país e, principalmente, a inserção de reivindicações políticas e sociais dos setores populares na pauta política nacional, que contribuíram para uma maior democratização da sociedade chilena. Assim, a análise questiona a rígida e simplificadora dicotomia entre autonomia e subordinação, tão frequentemente utilizada no estudo das relações entre movimentos sociais e governos e partidos, mostrando a complexidade dessas relações. A maneira como os trabalhadores chilenos pensaram as pro postas do governo da Unidade Popular e as articularam com as suas formas de organização e de atuação estava fortemente marcada pelas experiências que constituíram aquela classe, e acarretaram uma lógica própria de ação. Seu trabalho reconstitui os principais aspectos imbricados nessas experiências históricas que possibilitaram a sua mobilização durante o governo da esquerda. Essa lógica própria se expressou nas pressões para a ampliação e o aprofundamento do projeto original da Unidade Popular, especialmente quanto à participação direta dos trabalhadores. Nas suas variadas formas de atuação, nas ocupações de fábrica, no enfrentamento cotidiano dentro das relações de trabalho, contra os patrões e chefes, contra representantes do governo ou líderes da alta cúpula sindical, nos Cordões Industriais, nos Comandos Comunais, nas políticas de abastecimento e controle de preços, nos movimentos
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de pobladores e trabalhadores rurais, os trabalhadores desencadearam um processo de avanço nas transformações propostas pelo governo que complementou o processo revolucionário, mas também divergiu dele. Essa dinâmica coletiva em busca da criação e ampliação do “poder popular”, segundo a autora, ultrapassou amplamente os planos da Unidade Popular. A atuação desses sujeitos e suas consequências foram cuidadosamente resgatadas pela autora, por meio de uma pesquisa primorosa nas fontes documentais e orais. Entrevistas com trabalhadores e participantes do processo, mais de três décadas mais tarde, registram, entre os meandros da memória do passado, a riqueza da experiência que viveram, assim como as contradições vividas durante o período. A magnífica narrativa que os leitores vão encontrar neste livro não é apenas o resgate de um dos processos políticos mais importantes na história da esquerda latino-americana. Muito mais do que isso, é uma análise que contém elementos extremamente relevantes para refletir sobre os esforços e os projetos de transformação na direção de uma sociedade mais igualitária, e especialmente sobre as relações entre os seus diferentes sujeitos. A relação entre governos, partidos e movimentos sociais é uma dimensão crucial dessa construção democrática e este estudo certamente deverá contribuir para aclarar os dilemas que ela envolve e inspirar os que lutam por ela.
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Introdução
A vitória da Unidade Popular (UP), em 1970, significava mais do que a eleição de um novo presidente e trouxe grandes expectativas e inspirações à intelectualidade e à esquerda latino-americanas. E, completadas mais de quatro décadas do golpe militar que pôs fim ao governo de Salvador Allende, certamente ainda há aspectos a serem debatidos em torno da “experiência chilena”. Um elemento fundamental a ser colocado neste debate é o grande envolvimento dos trabalhadores chilenos, carregados das suas paixões políticas, em torno do governo que propunha a construção do socialismo sem romper com os mecanismos institucionais vigentes no país. A coalizão eleita em 1970 congregava diferentes forças do cenário político chileno e reunia os principais partidos da esquerda nacional, como o Partido Comunista (PC), o Partido Socialista (PS) e outros representantes, como o Movimento de Ação Popular Unitária (Mapu), grupo egresso da Democracia Cristã, além do Partido Radical (PR), que havia sido uma das lideranças fundamentais do centro político e ao qual, posteriormente, a Izquierda Cristiana (IC) foi agregada. O projeto da Unidade Popular, apostando num histórico de estabilidade política e na imagem de país politicamente maduro e democrático, visava à construção do socialismo nos marcos da ins-
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titucionalidade por meio de amplas transformações estruturais na sociedade chilena. Na coalizão prevalecia a concepção de que esse processo requeria uma etapa de transição gradual que conduziria ao socialismo por meio de políticas de ampliação democrática, de caráter antioligárquico e anti-imperialista. O Estado iria intervir de forma direta na economia e realizar as transformações destinadas à socialização dos meios de produção. Nesse âmbito o programa visava separar setores da economia em áreas diferenciadas de gestão. E se inseria nessa proposta a abertura de canais de participação dos trabalhadores, que se daria por meio das suas organizações, especialmente a Central Única dos Trabalhadores (CUT). A proposta de avançar rumo ao socialismo pelas vias institucionais se apresentou como uma grande inovação na esquerda, mas a grande mobilização engendrada pelos trabalhadores entre os anos de 1970 e 1973 pode ser considerada a faceta mais criativa e transformadora do governo da Unidade Popular, especialmente porque superou as propostas de participação da UP e ampliou as formas históricas de organização popular, que já eram pautadas na solidariedade e na sua consciência de classe. Com essa perspectiva, o que se busca nesta obra é possibilitar a compreensão do processo de construção do socialismo no Chile, abordando o governo da Unidade Popular para além das suas pro postas, das suas ações e dos seus desdobramentos no âmbito ins titucional ou do seu trágico desfecho, que tanto tem merecido destaque nessa disputa pela memória histórica do país. A proposta é apreendê-lo a partir do protagonismo popular vivenciado nas suas diferentes dimensões, valorizando a experiência vivida pelos trabalhadores. As principais expressões do protagonismo dos trabalhadores se deram com a sua intensa participação nos canais criados pelo governo, mas, principalmente, por meio de manifestações que supe-
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raram o projeto inicial de integração. Suas ações se deram no movi mento de pobladores, que consistia em movimentos de trabalhadores em luta por habitação e melhorias estruturais dos bairros periféricos; no fenômeno dos Cordões Industriais, que podem ser caracteri zados como a articulação política dos trabalhadores localizados em cinturões industriais instalados, principalmente, na capital; nas Juntas de Abastecimento e Controle de Preços (JAPs), que lutavam para combater o mercado negro e o desabastecimento gerado pelos boicotes e greves patronais; nos Comandos Comunais, que signifi caram organizações de articulação política das diferentes frentes de atuação dos trabalhadores, que resultaram em experiências locais de germens de poder popular; e também no enfrentamento à explo ração no cotidiano do trabalho em ações que intensificaram os conflitos de classe ao longo daquele processo. Diante da sua atuação, quais interesses eram defendidos pela classe trabalhadora? Seria a revolução socialista, tal como a apre goada nos folhetos partidários, com a ocupação do poder do Estado? Responder ao chamado da esquerda? Seria o controle dos meios de produção assumido através da ocupação das fábricas? Conseguir a constituição de uma assembleia popular que, aliada ao poder institucional, ampliasse os espaços decisórios do Estado? Ou pela primeira vez ter os seus direitos básicos atendidos plenamente? Esses elementos da problemática da ação popular e a sua articula ção com o projeto socialista ainda não foram suficientemente abordados na bibliografia acerca do socialismo chileno. Num campo ainda mais restrito, os movimentos de trabalhadores situados fora dos cenários políticos tradicionais ou do movimento operário organizado só marginalmente foram considerados, e somente agora estão sendo retomados pela historiografia. Nas últimas décadas, diferentes autores analisaram as características da “experiência chilena”, atendo-se, em especial, ao conflito político institucional entre os partidos atuantes no período, às
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disputas ideológicas internas da Unidade Popular e à articulação do golpe militar. Tais abordagens adotadas para a análise do sistema político chileno trouxeram amplos aportes e análises fundamentais, para se compreender aquele processo. Analisam o significado da presença da esquerda na construção de um Estado democrático no Chile, o funcionamento do sistema político do país, bem como as disputas institucionais que resultaram na “experiência chilena” e nos seus desdobramentos. Essas pesquisas trouxeram à luz o tema verdadeiramente proibido na sociedade chilena, como descreve Peter Winn.1 Dentre eles, os trabalhos de Tomás Moulian, Manuel Garretón e Alfredo Jocelyn-Holt Letelier,2 da historiografia e sociologia do Chile, e de Alberto Aggio,3 da historiografia brasileira. As pesquisas que abriram uma nova perspectiva de análise do período da Unidade Popular trouxeram contribuições essenciais na medida em que passaram a se debruçar sobre a participação de outros atores políticos e sociais, em especial sobre a mobilização dos trabalhadores. Essa contribuição teve início fora do Chile, para agora ganhar força dentro do país. Dentre as principais análises, destacam-se os trabalhos de Hugo Cancino, Ingrid Seguel-Boccara e de Franck Gaudichaud.4 Entre os pesquisadores chilenos, há um importante “movimento” de retomada dos temas sociais na historiografia do país após a tentativa de silenciamento imposta pelo regime militar. Os novos trabalhos voltados para uma história social e política trazem estudos acerca dos diferentes movimentos populares, desde as suas origens, ampliando as análises para além de um movimento operário estrito, mas sem negligenciar a história partidária e a vinculação dos mo
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Winn, 2013. Garretón, 1977; Moulian, 1982; Garretón & Moulian, 1983; A. Letelier, 1998. 3 Aggio, 2002. 4 Cancino, 1988; Seguel-Boccara, 1997; Gaudichaud, 2004. 2
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vimentos sociais com a esquerda nacional, de forma a resgatar a dimensão política das identidades populares.5 Sobre a participação popular durante o governo de Salvador Allende, ainda há poucos trabalhos no país andino. Merece destaque a pesquisa de Sandra Soto, voltada para o significado político dos Cordões Industriais.6 O trabalho de Mario Garcés traz para a his toriografia o tema do movimento de pobladores, da sua história de organização e de politização, destacando a sua importância fun damental no exercício da pressão política sobre o Estado pelo reconhecimento dos seus direitos. O trabalho de Boris Cofré aborda, especificamente, a experiência dos pobladores do acampamento Nueva La Habana, que durante o período da UP, sob a condução do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR), viveram um processo de organização e politização revolucionário.7 A investigação que trouxe como elemento inovador a análise do processo por meio “dos olhos e das palavras” dos trabalhadores, para passar a realidade da sua experiência, foi a obra de Peter Winn, que originou um dos principais aportes para a interpretação da relação dos trabalhadores com o governo da Unidade Popular. Por meio da análise da atuação política dos operários da fábrica têxtil Yarur, que culminou na ocupação e gestão da fábrica, ele apresenta uma rica interpretação que integra entrevistas e fontes documentais, para
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Salazar, 2000; Grez Toso, 2007b. É possível afirmar que essa renovação historiográfica foi inaugurada pelos trabalhos sobre o século XIX, de Gabriel Salazar e de Sergio Grez Toso, nos quais os autores passaram a valorizar esta história “de baixo” e ampliaram a visão sobre o movimento dos trabalhadores. 6 Soto, 2009. 7 Cf. Garcés, 2002; Cofré, 2007. Ainda que nem todos os trabalhos citados aqui tenham abordado especificamente o objeto desta obra, é preciso citá-los porque eles tratam questões fundamentais da interpretação do desenvolvimento histórico dos modos de organização dos trabalhadores.
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mostrar as experiências cotidianas vividas pelos trabalhadores com elementos que permearam a formação da sua identidade política.8 Inserido nessa nova proposta investigativa, que busca retomar a história dos trabalhadores nas suas diferentes formas de expressão, o presente trabalho busca contribuir para a análise da trajetória e da identidade da classe trabalhadora chilena, que culminaram na mobilização do período da Unidade Popular, o momento de sua maior expressão. O intuito é colaborar com uma interpretação do processo da Unidade Popular na perspectiva da “história vista de baixo”, ou seja, que mostre como se deu a participação popular, mas a partir dos seus próprios termos. Analisar a ação dos trabalhadores, enten dendo-a motivada e influenciada por sua visão de mundo, suas expe riências, e a partir de suas vivências no interior de uma sociedade. E compreender a ação política dos trabalhadores como sujeitos históricos, cujas ações não podem ser reduzidas à ideia de manipulação por grupos políticos, tampouco de indivíduos dissociados em busca unicamente de ganhos individuais, sem identificação com uma luta mais ampla. O que o leitor terá adiante é uma interpretação embasada na perspectiva de que a história da classe operária deve ser analisada em conjunto com a reflexão de como a sociedade se organiza his toricamente, para evitar um “autoisolamento com relação ao resto da história”. Outro elemento fundamental é evitar produzir uma história da classe trabalhadora como “versão oficial da história”, limitada às atividades e debates ideológicos das suas organizações institucionais, como os partidos políticos, sem considerar suas bases militantes.9 8
Vale citar também o trabalho de Miguel Silva, que é uma detalhada compilação de fontes documentais e que compreende a organização dos Cordões Industriais como uma expressão do poder popular. Cf. Silva, 1998. 9 Cf. Hobsbawm, 2005.
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