orpheu: 1915-2015
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universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta
Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Esdras Rodrigues Silva – Guita Grin Debert João Luiz de Carvalho Pinto e Silva – Luiz Carlos Dias Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Antunes – Sedi Hirano
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orpheu : 1915 - 2015 textos doutrinários e fortuna crítica (antologia)
Organização, prefácio e notas Carlos Felipe Moisés
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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.
ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação Or7
Orpheu: 1915-2015: Textos doutrinários e fortuna crítica (antologia) / Organização, prefácio e notas: Carlos Felipe Moisés. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2014. 1. Literatura portuguesa – História e crítica. 2. Literatura – História e crítica. – Teoria etc. I. Moisés, Carlos Felipe, 1942-.
CDD 869.09
801.95 ISBN 978-85-268-1065-5
Índices para catálogo sistemático:
1. Literatura portuguesa – História e crítica 2. Literatura – História e crítica etc.
869.09 801.95
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Orpheu acabou. Orpheu continua. Fernando Pessoa
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SUMÁRIO
prefácio Carlos Felipe Moisés. . ...................................................................................................... 11
textos doutrinários orpheu 1:
introdução
Luís de Montalvor........................................................................................................... 33 orpheu 2:
serviço da redação.. ........................................................................ 37 o que quer orpheu? Fernando Pessoa................................................................................................................ 41 orpheu
Antônio Mora.. ................................................................................................................... 43
crônica literária Fernando Pessoa................................................................................................................ 47
cartas a fernando pessoa Mário de Sá-Carneiro................................................................................................... 49
exílio: sua justificação Augusto de Santa Rita................................................................................................... 55
sobre a decadência Luís de Montalvor........................................................................................................... 59
bailados russos Almada Negreiros, Ruy Coelho, José Pacheko. . .................................................. 65
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ultimatum Álvaro de Campos............................................................................................................ 71
prefácio para uma antologia Álvaro de Campos............................................................................................................ 89
nós os de orpheu Fernando Pessoa................................................................................................................ 93 orpheu: 1915-1965
Almada Negreiros. . ........................................................................................................... 95
fortuna crítica repercussão na imprensa.................................................................................... 129 o modernismo José Régio.............................................................................................................................. 135
vida e morte do orpheu João Gaspar Simões......................................................................................................... 147
a geração do orpheu Adolfo Casais Monteiro.. ............................................................................................... 163
o abalo paúlico-futurista José Gomes Ferreira......................................................................................................... 183 orpheu
Jorge de Sena. . ..................................................................................................................... 191
o movimento do orpheu Jacinto do Prado Coelho............................................................................................... 203
o momento poético do orpheu Maria Aliete Galhoz.. ..................................................................................................... 209
no cinquentenário do orpheu João Gaspar Simões......................................................................................................... 215 orpheu
ou a poesia como realidade
Eduardo Lourenço........................................................................................................... 221
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presença
x orpheu
Eduardo Lourenço........................................................................................................... 227
introdução à leitura de orpheu 3 Arnaldo Saraiva.. .............................................................................................................. 237
a poesia de orpheu Massaud Moisés.. ............................................................................................................... 245 orpheu
e depois
Eugênio Lisboa.................................................................................................................. 259
o futurismo Nuno Júdice........................................................................................................................ 269
a ideia de modernismo Luís Adriano Carlos.. ...................................................................................................... 279
a derrota modernista Richard Zenith.................................................................................................................. 291
bibliografia mínima................................................................................................. 299
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prefácio Carlos Felipe Moisés
1 Orpheu está longe de ser um episódio datado. Sua importância não se deve apenas ao tumulto que seus dois únicos números provocaram, mas sobretudo aos seus desdobramentos. Várias outras revistas, igualmente efêmeras, surgiram em seguida (Exílio, 1915; Centauro, 1916; Portugal Futurista, 1917; Contemporânea, 1922; Athena, 1924), nas quais Luís de Montalvor, Fernando Pessoa, Santa-Rita Pintor, Almada Negreiros e outros — todos “artistas de Rilhafoles”1, como os qualificou o jornal lisboeta A Capital — trataram de manter viva a revolução por eles encetada, em 1915. Em 1927, uma nova geração, a da revista Presença (José Régio, Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões à frente), assume a direção do movimento e, ao mesmo tempo em que endossa as conquistas da geração pioneira, impõe o seu espírito menos demolidor, por isso mais duradouro (a revista se estendeu até os anos 40), com vistas ao aprofundamento da arte moderna em Portugal. Daí deslancha um largo processo de consolidação das antinomias postas a
1 Também conhecido como Hospital Miguel Bombarda, Rilhafoles é o pri-
meiro manicômio de Lisboa, fundado em 1848. Foi desativado em 2011. 11
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circular por Orpheu — um processo que se prolonga, em sucessivas metamorfoses, até a atualidade. Em 1965, quando das comemorações do cinquentenário da revista, João Gaspar Simões será enfático: Ainda não acabámos de evoluir adentro das premissas dessa arte e dessa literatura. De 1915 para cá, tudo que se faz em Portugal em matéria de arte e literatura sem tomar em conta a revolução operada pelo Orpheu não chega a ser arte nem literatura. Eis a razão por que nem sequer hoje, que a segunda metade do século vai na segunda dezena de anos, se pode dizer com justiça que o modernismo foi superado ou que vivemos independentemente do modernismo órfico2.
Passados outros 50 anos, é possível que o juízo de Gaspar Simões venha a ser reposto, em termos similares. Pensar em Orpheu, hoje, ainda será (re)pensar a história da modernidade em Portugal. Comecemos por deter a atenção no ponto de partida, isto é, na irritada reação da imprensa, quase cem anos atrás, proporcional ao incômodo causado pela rebeldia dos jovens: Têmo-lo aqui, o segundo número do Orpheu, a singularíssima revista sobre a qual chamámos há três meses as atenções do público e especialmente dos psiquiatras... Dividiram-se as opiniões sobre os moços que subscrevem as extravagâncias inacreditáveis do trimensário, afirmando-se ora que são loucos, varridíssimos de todo, ora que apenas querem divertir-se à nossa custa. [...] Os poetas e os prosadores do Orpheu, em nosso parecer, sofrem quase todos da cabeça3.
2 “No cinquentenário do Orpheu”, Heteropsicografia de Fernando Pessoa. Por-
to, Editorial Inova, 1973, p. 278. (Originalmente publicado no jornal O Primeiro de Janeiro. Porto, 31 de março de 1965.) 3 “Artistas de Rilhafoles”, nota não assinada, A Capital. Lisboa, 28 de junho
de 1915. 12
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prefácio
Como explicar tamanha virulência? Caso se tratasse de meras “extravagâncias” (como a “Manucure” de Sá-Carneiro, as odes assinadas por Álvaro de Campos ou os poemas de Ângelo de Lima4), não haveria motivo para tão desaforada indignação. A reação do articulista anônimo, e de tantos outros que seguiram no mesmo rumo, teve o condão de conferir crédito ao “pandemônio” dos jovens artistas, e acabou inadvertidamente por demonstrar que a insubordinação órfica mexia fundo com algo mais que o simples gosto literário vigente. Muito tempo depois, Casais Monteiro proporá um certeiro diagnóstico: “As revoluções puramente estéticas — se as há — não provocam reações destas. Não, a verdade é aqueles homens terem sentido que a órfica ‘loucura’ ia contra as leis da cidade”5. Mais adiante, referindo-se à Presença, Casais conclui: “Nós, escritores, temos uma grande dívida para com esta geração. Eis de fato a estranha verdade: a geração do Orpheu só através da Presença realizou grande parte da sua ação”6. A complexa e a vários títulos controvertida relação entre Orpheu e Presença parece provir do fato de que a primeira abrigou em suas páginas tendências e posturas contraditórias, embora paradoxal mente não excludentes. De um lado, o refinado decadentismo de Montalvor, Cortes-Rodrigues ou o brasileiro Ronald de Carva lho — vanguarda moderada e conservadora, digamos; de outro, a ousadia futurista de Pessoa-Campos, Sá-Carneiro e Almada — a vanguarda radical. O confronto entre a apologia do esteticismo, levada a termo por Luís de Montalvor (“Tentativa de um ensaio sobre a decadência”, 4 Cf. na antologia o sumário integral dos dois números de Orpheu. 5 “A geração do Orpheu”, Estudos sobre a poesia de Fernando Pessoa. Rio de
Janeiro, Agir, 1958, p. 36. 6 Idem, p. 39.
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nas páginas da Centauro), e a fúria demolidora do “Ultimatum” de Álvaro de Campos7 — ambos artistas órficos — será talvez a prova mais evidente da coexistência de correntes antagônicas no bojo da revolução desencadeada pelo primeiro modernismo. E seria um equí voco pretender que a exacerbada irreverência da segunda seja mais representativa do “verdadeiro” modernismo, relegando a primeira à condição de anacrônico vestígio, século xx adentro, do gosto lite rário oitocentista. A revolução proposta por Orpheu investe exatamente na (impossível?) fusão dos contrários. A postura conservadora não faria sentido se não dividisse terreno com a transgressão — o necessário inimigo a combater, ou a seduzir como aliado involuntário. A transgressão, por sua vez, não teria razão de ser se não reconhecesse, ainda que a contragosto, a força da conservação, pois aí não haveria o que transgredir8. Só os menos dotados serão capazes de alinhar ortodoxamente num dos lados e negligenciar ou até negar a existência do outro. Desse jogo dialético essencial vai brotando, década após década, o dinamismo que rege a história de Orpheu, de 1915 até o presente. É marcante, a esse respeito, o depoimento de Jorge de Sena: A publicação de Orpheu constituiu um escândalo, que ainda hoje dura. Ao contrário do que se tem dito e do que costuma acontecer, a repercussão foi muito grande: discutiram-se “os do Orpheu”, englobando-se na expressão os componentes do grupo e os colaboradores da revista. Foram consul tados eminentes psiquiatras — sobre se seriam doidos ou não. As opiniões dividiam-se. E muito bem se sabe que ainda se dividem a esse respeito, pois que a arte moderna, apesar de triunfadora, tão triunfadora que já há academizantes dela, tem em sua própria essência um elemento que a torna terrífica, vizinha da loucura, para todos quantos não aceitam a arte e a
7 Ver na antologia a versão integral dos textos mencionados. 8 Ao leitor interessado nessa problemática sugiro o meu Tradição & ruptura:
O pacto da transgressão na literatura moderna. Vila Velha, Opção, 2012. 14
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prefácio poesia como algo que, transcendendo a própria beleza atingida, significa uma consciência irônica da irrelevância fina, trágica, de uma conquista que nos rouba tudo: desde o êxito fácil e a paz de espírito à mesma vida, que, não obstante, nunca subiu tão alto como nessa arte e nessa poesia que implacavelmente a devoram9.
2 Apesar da evidente coexistência dos contrários na guerrilha deflagrada por Orpheu, estariam certos os vários estudiosos que têm insistido em separar os polos aí entrelaçados. Mas já não estarão tão certos assim quando os colocam em trincheiras opostas, que mutua mente se ignoram. Afinal, não há motivo para surpresa nem para eufemismos: conservação e mudança, tradição e ruptura são, desde sempre, irmãs siamesas, inimigas íntimas, cada qual ciosamente empenhada em preservar a vitalidade... da outra. Assim, por exemplo, para Gaspar Simões não há dúvida: o fato de Montalvor assinar a “Introdução” do primeiro número de Orpheu, relativo a janeiro-fevereiro-março de 1915, “deve ser apenas interpre tado como um ato de política administrativa”. O crítico se refere ao plano inicial de uma publicação luso-brasileira, que teria mais possi bilidades comerciais se fosse vendida nos dois países. Seria só por essa razão que Montalvor e Ronald de Carvalho figuram na “Direção” desse número, cuja introdução, ainda segundo Gaspar Simões, reflete não os anseios dominantes do grupo, mas tão somente “o ‘aristocratismo’, o ‘refinamento’, o sentimento de ‘exílio’, traços distin9 “Orpheu”, palestra proferida na reabertura do restaurante Irmãos Unidos,
de propriedade de Alfredo Guisado, em Lisboa, por ocasião do descerramento do quadro de Almada Negreiros Fernando Pessoa, no dia 25 de novembro de 1954. Texto incluído em J. de Sena, Fernando Pessoa & Cia. Heterônima, vol. I. Lisboa, Edições 70, 1982, pp. 99-100. 15
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tivos da mentalidade estética de Luís da Silva Ramos — o Luís de Montalvor. [Suas] palavras são frouxas, o seu português é ambíguo”10. Mas o plano é abandonado já no segundo número, relativo a abril-maio-junho do mesmo ano, que passa a ser dirigido por Pessoa e Sá-Carneiro, e abre com uma nota não assinada, sob o título “Serviço da Redação”. Depois de esclarecer a mudança, a nota se desculpa pelo atraso do terceiro número, que só sairia em outubro, e faz referência a certo “Manifesto” prometido no número inicial: O “Manifesto da Nova Literatura”, que havia sido anunciado como devendo fazer parte do no 2 de Orpheu, não é nele inserto nem o acompanha. É motivo disto a circunstância de que, envolvendo a confecção desse manifesto o desenvolvimento de princípios de ordem altamente científica e abstrata, ele não pôde ficar concluído a tempo de ser inserto. Ou aparecerá com o 3o número da revista, ou mesmo antes, talvez, em opúsculo ou folheto separado11.
O terceiro e último número só é encaminhado à gráfica em 1916, mas não chega a ser publicado, e nele não há notícia do anunciado manifesto. Com isso Orpheu deixou de estampar em suas páginas uma explicação cabal e suficiente do seu ideário. Esta será, talvez, a razão pela qual Pessoa concebeu, ao longo dos anos, vários textos empenhados no propósito de “definir” Orpheu. Alguns foram publi cados em vida, como certa “Crônica literária” ou o depoimento que enviou, já no fim da vida, à revista SW Sudoeste, a pedido de Almada Negreiros, “Nós os de Orpheu”. Outros, assinados por ele mesmo, por Álvaro de Campos e até por Antônio Mora, ficaram inéditos por muitos anos. Num desses textos, datado de 1916, Álvaro de Campos, com seu estilo inconfundível, assim define a revista: 10 “Vida e morte do Orpheu”, Vida e obra de Fernando Pessoa: História de uma
geração, Lisboa, Bertrand, s.d. [1950], pp. 211 e 215. 11 Ver texto integral na antologia “Orpheu 2”.
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prefácio Há apenas duas coisas interessantes em Portugal — a paisagem e o Orpheu. Tudo o que está de permeio é palha podre usada, que serviu pela Europa em fora e acaba entre as duas coisas interessantes em Portugal. Por vezes estraga a paisagem pondo-lhe lá portugueses. Mas não pode estragar o Orpheu porque esse é à prova de Portugal. [...] Se existisse qualquer ins tinto do sensato em moderna literatura, eu começaria pela paisagem e terminaria pelo Orpheu. Mas, graças a Deus, não há nenhum instinto do sensato em moderna literatura, por isso deixo de parte a paisagem e começo e termino pelo Orpheu. A paisagem está lá sempre e pode ser contemplada por quem queira e possa. O Orpheu lá está, mas dificilmente pode ser lido por toda a gente. Quando muito poderá ser lido por muito poucos. [...] O Orpheu é a soma e a síntese de todos os movimentos literários modernos; eis por que é mais merecedor de que se escreva sobre ele do que sobre a paisagem que é apenas a ausência das pessoas que nela vivem12.
Talvez fosse um esboço do anunciado “Manifesto da Nova Litera tura”, que não chegou a se concretizar, como tantos outros projetos acalentados por Pessoa, mas a “definição” aí delineada, graças à verve do heterônimo engenheiro naval, parece mais afinada com o espírito de Orpheu do que outra explanação, mais moderada (embora também só pudesse ser lida por muito poucos, como diria Álvaro de Campos), em que Pessoa formula a pergunta-chave, “O que quer Orpheu?”, e ele próprio responde: Criar uma arte cosmopolita no tempo e no espaço. A nossa época é aquela em que todos os países, mais materialmente do que nunca, e pela primeira vez intelectualmente, existem todos dentro de cada um, em que a Ásia, a América, a África e a Oceania são a Europa, e existem todos na Europa. Basta qualquer cais europeu — mesmo aquele cais de Alcântara — para ter ali toda a terra em comprimido13.
12 Idem, “Prefácio para uma antologia”. 13 Ver na antologia a versão integral do texto mencionado.
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De resto, a vida fulminantemente breve, não só da revista como de vários de seus integrantes, terá colaborado para que o prometido “Manifesto” fosse sistematicamente adiado, até o fim, deixando aberto o caminho para que críticos e historiadores se manifestassem, com liberdade, nas décadas seguintes, a respeito da pergunta-chave e seus incontáveis desdobramentos.
3 O primeiro a partir, ainda em meio ao tumulto provocado pelo lançamento da revista, foi Mário de Sá-Carneiro, que pôs fim à vida, num quarto de hotel em Paris, no dia 26 de abril de 1916. “Morre jovem o que os Deuses amam”, afirma Fernando Pessoa, na homenagem que presta ao amigo, no número 2 da revista Athena (novembro, 1924), uma das sucessoras do Orpheu. Pouco antes, em 1918, outros dois já haviam partido, os artistas plásticos Guilherme de Santa-Rita e Amadeu de Sousa-Cardoso, deixando a cargo do pintor e também escritor Almada Negreiros levar adiante o propósito, que os três haviam acalentado, de unir literatura e artes. Em 1921, é a vez de Ângelo de Lima, órfico de Rilhafoles, o mais velho de todos, nascido em 1872; em seguida, o brasileiro Eduardo Guimarães, em 1928. Um pouco mais tarde, outros dois se foram, no mesmo ano de 1935: Fernando Pessoa e outro brasileiro, Ronald de Carvalho, como se os de Orpheu amassem debandar aos pares. Em 1947, foi-se Luís de Montalvor, não sem antes ter colaborado, com João Gaspar Simões, na organização da Obra Completa de Fernando Pessoa, que começa a ser publicada pela editora Ática, de Lisboa, em 1942. Antes que se completem os 50 anos do Orpheu, mais um se vai, Raul Leal, em 1964. No ano do cinquentenário, só restavam três sobreviventes: Almada Negreiros, que falecerá em 1970; Armando Cortes-Rodrigues, 18
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em 1971; e Alfredo Pedro Guisado, o mais longevo, em 1975, aos 84 anos de idade. Cinquenta anos depois, o que era ou o que tinha sido Orpheu? Cortes-Rodrigues e Alfredo Guisado não deram o ar da graça, mas Almada se manifestou a propósito das comemorações “oficiais”, no marcante depoimento-rememoração Orpheu: 1915-1965, e não deixou por menos: “Homenagear não é senão conve niência do homenageante em determinado engendrado social. É afinal o homenageante que se homenageia ou se instrui tarde”14. Cinquenta anos transcorridos, certo de que a lepidopteria de então era ainda mais botas d’elástico do que em 1915, Almada, com aquele “d” comprido a sair do quadro, brindou a todos com uma dose forte de irreverência e iconoclastia, para reforçar o que Pessoa profetizara em 1935: “Orpheu acabou. Orpheu continua”. O poeta da “Cena do ódio” recusou-se a aceitar que o pandemônio órfico estaria institucionalizado. A batalha devia prosseguir, ainda que reduzida ao esforço de um homem só. A lepidopteria pode ter aprendido a aparar os golpes, ele terá pensado; os lepidópteros de agora usam Orpheu em benefício próprio. Muito antes das comemorações do cinquentenário, José Régio, na página de abertura de sua revista (premonição presencista?), já dava razão a Almada: Em Portugal raro uma obra é um documento humano, superiormente pessoal ao ponto de ser coletivo. O exagerado gosto da retórica (e diga-se: da mais sediça) morde os próprios temperamentos vivos; e se a obra de um moço traz probabilidades de prolongamento evolutivo, raro esses germens de literatura viva se desenvolvem. O pedantismo de fazer literatura corrompe as nascentes. Substitui-se a personalidade pelo estilo15.
14 Ver na antologia a versão integral do depoimento de Almada Negreiros. 15 “Literatura viva”, Presença, no 1, 10 de março de 1927.
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Em 1965, Almada o sabia, havia muito não se produziam polêmicas e reações indignadas como em 1915. A Presença, o Estado Novo, o Neorrealismo, o Surrealismo, a Poesia Experimental, a Poe sia 61 etc. ali estavam. Ninguém chegou ao exagero de afirmar que nada disso existiria sem Orpheu, mas ninguém chegou, também, sequer a insinuar que Orpheu seria um fenômeno circunscrito ao momento áureo 1915-1916, e que não teria tido nada a ver com o que se passou na literatura portuguesa nas décadas seguintes. O fato é que, em 1965, Almada não podia conformar-se com o fato de que Orpheu fosse uma “conquista definitiva”. O ideal sonhado cinco décadas atrás estava longe de ter sido alcançado. Talvez não o fosse nunca — mas isso era só uma razão a mais para o combate prosseguir.
4 Orpheu revolucionara para valer a literatura e a cultura de Portugal e rendera muitos e bons frutos. O Surrealismo — este é um exemplo significativo — não tinha chegado a repercutir em Lisboa na mesma altura em que agitou as demais capitais da Europa, logo em seguida ao tempo de Orpheu. Tal repercussão só vem a ocorrer em 1948, e nos anos seguintes, com mais de duas décadas de atraso em relação ao Primeiro Manifesto de Breton. Por que em 1948? É que, nessa altura, é já amplamente vitoriosa em Portugal a rebeldia neorrealista que em 1939 ousara insurgir-se contra a ordem estabelecida, quer no plano literário, quer no político. O programa neorrealista, articulado em torno da ideia de uma arte revolucionária, engajada, a serviço da sociedade, consegue sobrepujar a perspectiva idealista, esteticista, aparentemente alheia aos conflitos sociais, defendida pela Presença; e consegue também arregimentar a opinião pública em torno do propósito de combate ao regime fascista. Com isso, o Neorrealismo acaba por substituir o 20
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