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Universidade Estadual de Campinas Reitor Marcelo Knobel Coordenadora Geral da Universidade Teresa Dib Zambon Atvars

Conselho Editorial Presidente Márcia Abreu Euclides de Mesquita Neto – Iara Lis Franco Schiavinatto Maíra Rocha Machado – Maria Inês Petrucci Rosa Osvaldo Novais de Oliveira Jr. – Renato Hyuda de Luna Pedrosa Rodrigo Lanna Franco da Silveira – Vera Nisaka Solferini

coleção marx 21 Comissão Editorial Armando Boito Junior (coordenador) Alfredo Saad Filho – Euclides de Mesquita Neto João Carlos Kfouri Quartim de Moraes – Marco Vanzulli Conselho Consultivo Alvaro Bianchi – Andréia Galvão – Anita Handfas Isabel Loureiro – Luciano Cavini Martorano Luiz Eduardo Motta – Reinaldo Carcanholo – Ruy Braga

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louis althusser

por marx

tradução

Maria Leonor F. R. Loureiro

revisão técnica

Márcio Bilharinho Naves Celso Kashiura Jr.

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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.

ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação AL79 p

Althusser, Louis, 1918-1990 Por Marx / Louis Althusser; tradução Maria Leonor F. R. Loureiro; revisão técnica: Márcio Bilharinho Naves, Celso Kashiura Jr. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2015. 1. Marx, Karl, 1818-1883. 2. Comunismo. 3. Filosofia marxista. 4. Humanismo. 5. Materialismo dialético. I. Loureiro, Maria Leonor F. R. II.Título.

cdd 335.4 320.5322 144 146.3 isbn 978-85-268-1232-1 Título original: Pour Marx © Librairie François Maspero / Editions La Découverte, Paris, France, 1965, 1996, 2005. Copyright © by Louis Althusser Copyright © 2015 by Editora da Unicamp 1a reimpressão, 2018 Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, dos detentores dos direitos.

Cet ouvrage, publié dans le cadre du Programme d’Aide à la Publication Universitaire – PAP Universitaire du Consulat général de France à São Paulo, bénéficie du soutien du Ministère français des Affaires Étrangères et du Développement International (MAEDI). Este livro, publicado no âmbito do Programa de Apoio à Publicação Universitária – PAP Universitário do Consulado geral da França em São Paulo, conta com o apoio do Ministério francês das Relações Exteriores e do Desenvolvimento Internacional (MAEDI). Printed in Brazil. Foi feito o depósito legal. Direitos reservados à Editora da Unicamp Rua Caio Graco Prado, 50 – Campus Unicamp cep 13083-892 – Campinas – sp – Brasil Tel./Fax: (19) 3521-7718/7728 www.editoraunicamp.com.br – vendas@editora.unicamp.br

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Dedico estas páginas à memória de Jacques Martin, nosso amigo, que, nas piores provas, sozinho, descobriu a via de acesso à filosofia de Marx – e me guiou por ela. L. A.

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sumário

prefácio à edição brasileira . ..................................................................

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prefácio : hoje ..........................................................................................

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i

– os “manifestos filosóficos” de feuerbach........................................... 33

ii

– “sobre o jovem marx” (Questões de teoria)................................................ O problema político.................................................................................. O problema teórico................................................................................... O problema histórico................................................................................

39 40 42 54

iii

– contradição e sobredeterminação (Notas para uma pesquisa)............... 71 Anexo....................................................................................................... 92

iv

– o “piccolo”, bertolazzi e brecht (Notas sobre um teatro materialista)................................................................................................... 107

v

– os “manuscritos de 1844” de karl marx (Economia política e filosofia)......................................................................................................... 127

vi

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– sobre a dialética materialista (Da desigualdade das origens)................ 133 1. Solução prática e problema teórico: Por que a teoria?......................... 134

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2. Uma revolução teórica em ação........................................................... 141 3. Processo da prática teórica.................................................................. 148 4. Um todo complexo estruturado “já dado”............................................ 156 5. Estrutura com dominante: Contradição e sobredeterminação.............. 162

vii

– marxismo e humanismo. ................................................................... 183

nota complementar sobre o

“humanismo real”........................................ 203

aos leitores . ........................................................................................... 209

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prefácio à edição brasileira

por althusser Armando Boito Jr.

Em 1965, o filósofo marxista francês Louis Althusser publicava a primeira edição de sua célebre coletânea de ensaios à qual deu o título singelo e cortante de Pour Marx (Por Marx). Os ensaios dessa coletânea propiciaram uma ampla e diversificada renovação do marxismo. Na filosofia, na sociologia, na economia, na ciência política, na linguística, na antropologia e na análise histórica, diversos autores inspiraram-se nas ideias inovadoras de Althusser para desenvolver a teoria marxista em diferentes domínios e também para realizar pesquisas empíricas de ponta. O trabalho de Althusser criou escola e serve até hoje de referência fundamental para aqueles que se dedicam à tarefa de desenvolver e renovar a teoria esboçada por Karl Marx. Neste ano de 2015, quando é comemorado o cinquentenário do lançamento de Pour Marx, a coleção Marx 21 coloca à disposição do leitor brasileiro esta nova tradução do livro de Althusser. O livro não é inédito no Brasil, mas a tradução lançada pela Zahar na década de 1970 – que recebeu o título de A favor de Marx – está fora de catálogo há muitos anos. Nessa nova tradução, realizada por Maria Leonor Loureiro, optamos pelo título Por Marx, que nos parece mais fiel ao estilo do título original.1 • Por Marx pertence à primeira fase da obra de Althusser como filósofo marxista. Nesse período, que se situa na década de 1960, Althusser publicou, além 9

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desse livro, a obra coletiva Lire le capital, traduzida no Brasil pela Zahar com o título Ler O capital e também fora de catálogo. O trabalho dele e de seu grupo estava voltado para o desenvolvimento do materialismo histórico e para a discussão da relação do marxismo com a filosofia. Desenvolver o materia­ lismo histórico significava trabalhar, com base na herança teórica de Marx, na formulação das leis que regem a reprodução da vida social e também das leis que possibilitam a mudança histórica. Esses trabalhos da década de 1960 são, de longe, os seus trabalhos mais desenvolvidos e sistemáticos e que obtiveram maior repercussão. Na década seguinte, Althusser, em polêmica com alguns críticos, alterou algumas de suas teses, reabrindo a discussão sobre pares conceituais com os quais trabalhara no período anterior – teoria e empiria, estrutura social e luta de classes, ciência e ideologia. Nessa segunda fase, embora reveja alguns de seus conceitos e formulações, ele permanece na problemática do materialismo histórico que era a problemática da fase anterior. Já na década de 1980, em textos pouco desenvolvidos e que foram publicados apenas postumamente, Althusser lançou a ideia de que o mundo social e histórico seria o reino da contingência. Cunhou, então, a expressão “materialismo aleatório”, rompendo com a proposta inicial de desenvolver o materialismo histórico. Os trabalhos da década de 1960 – a começar pelo texto fundador que é Por Marx – são, como dissemos, os mais originais, os mais desenvolvidos e os que obtiveram maior impacto no mundo intelectual. Podemos arriscar a afirmação de que são esses os textos de Louis Althusser que irão permanecer como seu legado para a filosofia, as ciências sociais e o marxismo. • Por Marx é um livro de polêmica e de instauração. Nele, Althusser polemiza com tendências dominantes no marxismo da década de 1960 e até hoje atuantes, produz conceitos novos e desenvolve teses inovadoras. Sem a pretensão de exaustividade, destaquemos algumas dessas polêmicas e inovações. Althusser abandona e critica as teses que rebaixam o marxismo a uma “concepção de mundo”, a um mero “guia para a ação” ou a uma simples “crítica do capitalismo”. Desenvolve uma sofisticada argumentação para sustentar o estatuto científico da obra de Marx. O marxismo é apresentado como uma ciência da sociedade e da história. O autor evidencia os erros do reducionismo economicista, argumentando sobre a importância da estrutura jurídico-política

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e da ideologia na vida social, afastando-se da remota e ainda atuante tradição economicista proveniente do marxismo da Segunda Internacional. Ele mostra os impasses da concepção voluntarista do processo social e histórico, desenvolvendo o conceito de estrutura como campo que limita a prática dos agentes sociais. Extrai dos textos de Marx a originalidade de sua concepção de dialética, para contrastá-la com a concepção, que considera simplificada, de dialética presente na obra de Hegel. Apresenta uma leitura original dos escritos de juventude de Marx, lançando luz sobre a diferença irredutível que separa esses escritos da obra de maturidade do fundador do materialismo histórico. Nesse trabalho de leitura dos textos de Marx, Althusser elaborou uma de suas teses mais conhecidas e originais – a da ruptura epistemológica –, indicando com tal tese o corte que se instaura nos escritos de Marx a partir do texto A ideologia alemã. Uma contribuição importante, e que aparece em mais de um ensaio de Por Marx, é a crítica de Althusser ao humanismo teórico. Ele detecta a presença do humanismo idealista de Feuerbach nos escritos de 1843-1844 do Jovem Marx e indica os obstáculos epistemológicos que esse humanismo feuerbachiano representa para o desenvolvimento do materialismo histórico. Nesse percurso polêmico e original, Althusser reelabora, desenvolve e produz conceitos que abriram novos caminhos para a teoria e a pesquisa no campo do marxismo. Apresenta, por exemplo, uma nova concepção do conceito de modo de produção, pensado não mais como um conceito restrito ao terreno da economia, mas, sim, como uma unidade complexa de diversas instâncias da vida social; reelabora o conceito de determinação em última instância pela economia; introduz o conceito de problemática teórica e seu correlato, que é o conceito de ruptura epistemológica; abre espaço para se pensar a complexidade dos processos sociais com o conceito de sobredeterminação. Esse último conceito propicia aos intelectuais e dirigentes do movimento operário e popular uma ferramenta apropriada para abordar a multiplicidade de contradições atuantes nas diferentes conjunturas e que devem ser levadas em conta para que se ­possa definir a estratégia correta do movimento socialista. As polêmicas de Por Marx não são um assunto do passado. A recusa do caráter científico do marxismo, o reducionismo economicista, o voluntarismo, o humanismo teórico oriundo de uma leitura ingênua dos escritos do Jovem Marx e tantos outros alvos da crítica inteligente e fina de Louis Althusser estão muito presentes e atuantes no marxismo brasileiro deste século. Estão presentes e atuantes também os equívocos políticos que vêm associados a esses equívocos teóricos. A nova geração de marxistas brasileiros poderá encontrar nessas

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polêmicas e nos conceitos inovadores de Por Marx instrumentos eficientes para as suas reflexões teóricas, para as suas pesquisas e para a sua orientação na luta pelo socialismo.

Nota 1 Na presente tradução, mantivemos sempre a referência às edições utilizadas pelo próprio

autor, traduzindo do original francês os trechos citados.

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prefácio

hoje

I Tomo a liberdade de publicar a compilação destas notas, que saíram, durante os últimos quatro anos, em diferentes revistas. Alguns destes artigos estão esgotados: eis a primeira razão, de ordem prática. Se eles contêm, em sua pesquisa e sua incompletude, algum sentido, este deveria advir de sua reunião: eis minha segunda razão. Dou-os enfim pelo que são: os documentos de uma certa história. Estes textos nasceram, quase todos, de alguma conjuntura: reflexão sobre uma obra, resposta a uma crítica ou objeções, análise de um espetáculo etc. Trazem a data e a marca de seu nascimento, até em suas variações, que não quis retocar. Retirei algumas passagens de polêmica demasiado pessoal; resta­ beleci palavras, notas ou páginas que então tive de reservar, fosse para poupar a sensibilidade de certas prevenções, fosse para reduzir meus desenvolvi­mentos à medida acordada; precisei algumas referências. Nascidos cada um de alguma ocasião particular, estes textos são, no en­tanto, o produto de uma mesma época e de uma mesma história. São, à sua maneira, testemunhos de uma singular experiência, que todos os filósofos da minha idade, e que tentaram pensar com Marx, tiveram de viver: a pesquisa do pensamento filosófico de Marx, indispensável para sair do impasse teórico a que a história nos relegara.

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A história: ela se apoderara de nossa adolescência desde a Frente Popular e a Guerra da Espanha, para nos imprimir, durante a Guerra nua e crua, a terrível educação dos fatos. Ela nos surpreendera ali onde tínhamos vindo ao mundo, e dos estudantes de origem burguesa ou pequeno-burguesa que éramos, fizera homens instruídos da existência das classes, da luta destas e de suas implicações. Das evidências que ela nos impusera, havíamos tirado a conclusão, aderindo à organização política da classe operária, o partido comunista. Era o imediato pós-guerra. Brutalmente, fomos jogados nas grandes batalhas políticas e ideológicas que o Partido conduzia: precisamos então avaliar a medida de nossa escolha e assumir suas consequências. Em nossa memória política, esse tempo permanece o tempo das grandes greves e das manifestações de massa, o tempo do apelo de Estocolmo e do Movimento pela Paz, quando caíram por terra as imensas esperanças nascidas da Resistência e começou a áspera e dura luta que devia fazer recuar no ho­ rizonte da guerra fria, repelida por inúmeros braços humanos, a sombra da catástrofe. Em nossa memória filosófica, esse tempo permanece o dos intelectuais armados, perseguindo o erro em todos os covis, o de filósofos sem obras que éramos, mas fazendo política de toda obra, e cortando o mundo com uma única lâmina, artes, literaturas, filosofias e ciências, com o impiedoso corte das classes – o tempo que em sua caricatura estas palavras resumem ainda, alta bandeira desfraldada no vazio: “ciência burguesa, ciência proletária”. Alguns dirigentes, para defender contra o furor dos ataques burgueses um marxismo então perigosamente aventurado na “biologia” de Lyssenko, relançaram essa velha fórmula esquerdista, que fora outrora a palavra de ordem de Bogdanov e do Proletkult. Uma vez proclamada, ela dominou tudo. Sob sua linha imperativa, os filósofos com que contávamos então não tiveram escolha a não ser entre o comentário e o silêncio, uma convicção iluminada ou coagida, e o mutismo do embaraço. Paradoxalmente, foi preciso nada menos que Stalin, cujo contagioso e implacável sistema de governo e de pensamento provocava esses delírios, para trazer a essa loucura um pouco de razão. Entre as linhas de algumas páginas simples em que ele censurava o zelo daqueles que pretendiam à força fazer da língua uma superestrutura, entrevimos que o uso do critério de classe não era sem limites, e que nos faziam tratar a ciência, cujo título cobria até mesmo as obras de Marx, como a primeira ideologia. Foi preciso recuar, e, meio perturbados, retomar os rudimentos.

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Escrevo estas linhas em meu nome e como comunista, que busca em nosso passado apenas o que venha esclarecer nosso presente, em seguida iluminar nosso futuro. Não evoco nem por prazer nem por azedume esse episódio, mas para o sancionar com uma observação que o ultrapassa. Estávamos na idade do entusiasmo e da confiança; vivíamos num tempo em que o adversário se mostrava implacável, falando a linguagem da injúria para apoiar sua agressão. Apesar disso, ficamos muito tempo confundidos por essa peripécia, a que certos dirigentes, em vez de nos segurarem na encosta do “esquerdismo” teórico, nos arrastaram vigorosamente – sem que, aparentemente, os outros fizessem algo para moderá-los, nos avisar ou nos prevenir. Passávamos então a maior parte do tempo a militar, quando devíamos ter também defendido nosso direito e nosso dever de conhecer, e de simplesmente estudar para produzir. Ou seja, não tínhamos nem mesmo esse tempo. Ignorávamos Bogdanov e o Proletkult, e a luta histórica de Lenin contra o esquerdismo, político e teórico; ignorávamos a letra mesma dos textos da maturidade de Marx, demasiado felizes e com pressa de encontrar na chama ideológica de suas obras de juventude nossa própria paixão ardente. E os mais velhos do que nós? Os que tinham a responsabilidade de nos mostrar os caminhos, como viviam também eles na mesma ignorância? Toda essa longa tradição teórica, elaborada através de tantos combates e provas, testemunhada por tantos grandes textos, como podia ser para eles letra morta? Daí, viemos a reconhecer que, sob a proteção do dogmatismo reinante, outra tradição negativa, esta francesa, prevalecera sobre a primeira, outra tradição, ou antes, o que poderíamos chamar em eco à “Deutsche Misere” de Heine, nossa “miséria francesa”: a ausência tenaz, profunda, de uma real cultura teórica na história do movimento operário francês. Se o Partido Comunista Francês pudera avançar a esse ponto, dando à teoria geral das duas ciências a forma de uma proclamação radical, se pudera fazer disso o teste e a demonstração de sua incontestável coragem política, é também porque vivia de magras reservas teóricas: as que lhe deixou de herança todo o passado do movimento operário francês. De fato, sem contar os utopistas Saint Simon e Fourier, que Marx gosta tanto de evocar, sem contar Proudhon, que não era marxista, e Jaurès, que o era pouco, onde estão nossos teóricos? A Alemanha teve Marx e Engels, e o primeiro Kautsky; a Polônia, Rosa Luxemburgo; a Rússia, Plekhanov e Lenin; a Itália, Labriola, que (quando tínhamos Sorel!) se correspondia

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de igual para igual com Engels, depois Gramsci. Onde estão nossos teóricos? Guesde, Lafargue? Seria preciso toda uma análise histórica para prestar contas de uma pobreza, que contrasta com a riqueza de outras tradições. Sem pretender enveredar por essa análise, fixemos ao menos algumas balizas. Uma tradição teórica (teoria da história, teoria filosófica), no movimento operário do século XIX e do início do século XX, não pode prescindir das obras dos trabalhadores intelectuais. Foram intelectuais (Marx e Engels) que fundaram o materialismo histórico e o materialismo dialético, foram intelectuais (Kautsky, Plekhanov, Labriola, Rosa Luxemburgo, Lenin, Gramsci) que desenvolveram sua teoria. Não podia ser de outro modo, nem nas origens, nem muito tempo depois; não pode ser de outro modo nem agora, nem no futuro: o que pôde mudar e mudará é a origem de classe dos trabalhadores intelectuais, mas não sua qualidade de intelectuais.1 Foi assim por razões de princípio que Lenin, depois de Kautsky, nos permitiu compreender: de um lado, a ideologia “espontânea” do movimento operário não podia, entregue a si mesma, produzir senão o socialismo utópico, o trade-unionismo, o anarquismo e o anarco-sindicalismo; de outro lado, o socialismo marxista, supondo o gigantesco trabalho teórico de instauração e de desenvolvimento de uma ciência e de uma filosofia sem precedente, só podia ser realizado por homens com uma profunda formação histórica, científica e filosófica, por intelectuais de grande valor. Se tais intelectuais apareceram na Alemanha, na Rússia, na Polônia e na Itália, seja para fundar a teoria marxista, seja para se tornarem seus mestres, não foi em razão de acasos isolados: é que as condições sociais, políticas, religiosas, ideológicas e morais reinantes nesses países tornavam simplesmente impossível a atividade dos intelectuais, a quem as classes dominantes (feudalismo e burguesia comprometidos e unidos em seus interesses de classe e apoiados nas Igrejas) não ofereciam, no mais das vezes, senão empregos servis e irrisórios. Ali, os intelectuais só podiam procurar liberdade e futuro ao lado da classe operária, a única classe revolucionária. Na França, ao contrário, a burguesia fora revolucionária, soubera e pudera, de longa data, associar os intelectuais à revolução que fizera, e mantê-los a seu lado depois da tomada e da consolidação do poder. A burguesia francesa soubera e pudera realizar sua revolução, uma revolução nítida e franca, eliminar a classe feudal da cena política ( 1789, 1830, 1848), consolidar sob seu reinado na própria revolução a unidade da nação, combater a Igreja, depois adotá-la, porém, chegado o momento, separar-se dela, e cobrir-se com as palavras de ordem de liberdade e de igualdade. Ela soubera utilizar,

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ao mesmo tempo, suas posições de força e todos os títulos adquiridos no passado para oferecer aos intelectuais suficiente futuro e espaço, funções bastante honrosas, margens de liberdade e de ilusões suficientes para retê-los sob sua lei, e mantê-los sob o controle de sua ideologia. Salvo algumas grandes exceções, que foram justamente exceções, os intelectuais franceses aceitaram sua condição e não sentiram a necessidade vital de procurar a salvação ao lado da classe operária; e quando aderiram a ela, não souberam desfazer-se da ideologia burguesa que os marcava e que sobreviveu em seu idealismo e seu reformismo (Jaurès) ou em seu positivismo. Também não foi por acaso que o partido francês precisou consagrar corajosos e pacientes esforços para reduzir e destruir o reflexo de desconfiança “obreirista” contra os intelectuais, que exprimia à sua maneira a experiência e a decepção, incessantemente renascentes, de uma longa história. Foi assim que as formas mesmas da dominação burguesa privaram por muito tempo o movimento operário francês dos intelectuais indispensáveis à formação de uma autêntica tradição teórica. Será preciso acrescentar aqui ainda uma razão nacional? Ela se deve à lamentável história da filosofia francesa nos 130 anos que se seguiram à revolução de 1789, à sua obstinação espiritualista não somente conservadora, mas reacionária, de Maine de Biran e Cousin a Bergson, ao seu desprezo pela história e pelo povo, a seus vínculos profundos e limitados com a religião, ao seu encarniçamento contra o único espírito digno de interesse que produziu, Auguste Comte, e à sua inacreditável incultura e ignorância. Há 30 anos as coisas tomaram outra direção. Mas o peso de um longo século de embrutecimento filosófico oficial contribuiu muito, também, para o esmagamento da teoria dentro do próprio movimento operário. O partido francês nasceu nessas condições de vazio teórico, e cresceu a despeito desse vazio, preenchendo, o melhor possível, as lacunas existentes, alimentando-se de nossa única tradição nacional autêntica, pela qual Marx tinha o maior respeito: a tradição política. Permanece marcado por essa tradição política, e, por isso, por certo desconhecimento do papel da teoria – menos, aliás, da teoria política e econômica que da teoria filosófica. Se conseguiu congregar em torno de si intelectuais célebres, foram, antes de tudo, grandes escritores, romancistas, poetas, artistas, grandes especialistas das ciências da natureza, e também alguns historiadores e psicólogos de alta qualidade – e sobretudo por razões políticas; mas muito raramente homens com formação filosófica suficiente para considerar que o marxismo devia ser não só uma doutrina política, um “método” de análise e de ação, mas também, enquanto

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ciência, o domínio teórico de uma investigação fundamental, indispensável ao desenvolvimento não apenas da ciência das sociedades e das diversas “ciências humanas”, mas também das ciências da natureza e da filosofia. O partido francês precisou nascer e crescer nessas condições, sem a herança e o auxílio de uma tradição nacional teórica, e, o que é sua decorrência inevitável, sem uma escola teórica da qual pudessem sair mestres. Tal é a realidade, fomos obrigados a aprender, e a aprender sozinhos. So­ zi­nhos, pois não tivemos entre nós, em filosofia marxista, verdadeiros e gran­ des mestres para guiar-nos os passos. Politzer, que poderia ter sido um, se não tivesse sacrificado a grande obra filosófica que trazia em si a tarefas econômicas urgentes, deixara-nos apenas os erros geniais de sua Crítica dos fundamentos da psicologia. Morrera, assassinado pelos nazistas. Não tínhamos mestres. Não falo dos homens de boa vontade nem de espíritos muito cultos, eruditos, letrados e outros. Falo de mestres de filosofia marxista, saídos de nossa história, acessíveis e próximos de nós. Esta última condição não é um detalhe supérfluo. Pois herdamos, ao mesmo tempo que esse vazio teórico do nosso passado nacional, esse monstruoso provincianismo filosófico e cultural (nosso chauvinismo) que nos faz ignorar as línguas estrangeiras e praticamente desconsiderar o que se pode pensar e produzir para além de uma cadeia de montanhas, do curso de um rio ou do espaço de um mar. Será um acaso que o estudo e o comentário das obras de Marx tenham permanecido tanto tempo entre nós obra de alguns germanistas corajosos e tenazes? Que o único nome que podemos expor além de nossas fronteiras é o de um pacífico herói solitário, que, ignora­do pela Universidade Francesa, prosseguiu, durante anos, minuciosos estudos sobre o movimento neo-hegeliano de esquerda e o Jovem Marx: Auguste Cornu? Essas reflexões podiam esclarecer-nos sobre nossa penúria, mas não aboli-la. É a Stalin que devemos, no seio do mal cujo maior responsável é ele, o primeiro choque. É à sua morte que devemos o segundo choque – à sua morte e ao XX Congresso. Mas, entrementes, a vida entre nós também fizera sua obra. Não se cria, de um dia para o outro ou por simples decreto, nem uma organização política, nem uma verdadeira cultura teórica. Quantos, entre os jovens filósofos chegados à idade adulta com a guerra ou o pós-guerra, se tinham consumido em tarefas políticas extenuantes, sem tempo para o trabalho científico! É também um traço de nossa história social que os intelectuais de origem pequeno-burguesa que vieram então para o partido se sentissem obrigados a quitar com pura atividade, senão com ativismo político, a Dívida imaginária

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que pensavam ter contraído por não terem nascido proletários. Sartre, à sua maneira, pode servir-nos de honesta testemunha a esse batismo da história: nós também fomos de sua raça; e é sem dúvida um ganho dos tempos que nossos camaradas mais jovens pareçam livres dessa Dívida, que pagam talvez de outra maneira. Filosoficamente falando, nossa geração sacrificou-se, foi sacrificada nos combates unicamente políticos e ideológicos, quero dizer: sacrificada em suas obras intelectuais e científicas. Muitos cientistas, e às vezes mesmo historiadores, ou até alguns raros literatos, puderam safar-se, sem danos ou evitando o pior. Não havia saída para um filósofo. Se escrevia ou falava de filosofia para o partido, estava limitado aos comentários e a pequenas variações no uso interno das Célebres Citações. Não tínhamos audiência entre nossos pares. O adversário jogava-nos na cara que não passávamos de políticos; nossos colegas mais esclarecidos, que devíamos começar por estudar nossos autores, antes de julgá-los, e por justificar objetivamente nossos princípios antes de proclamá-los e aplicá-los. Para incitar os melhores de seus interlocutores a lhes dar ouvidos, certos filósofos marxistas viram-se constrangidos, e constrangidos por um movimento natural no qual não entrava nenhuma tática refletida, a se disfarçar – a disfarçar Marx de Husserl, Marx de Hegel, Marx de Jovem Marx ético ou humanista –, com o risco de confundir num momento ou noutro a máscara e o rosto. Não exagero, conto os fatos. Vivemos ainda hoje suas consequências. Estávamos política e filosoficamente convencidos de ter aportado na única terra firme do mundo, mas sem saber demonstrar filosoficamente sua existência e firmeza; em verdade, já ninguém acreditava que tínhamos terra firme sob os pés e não apenas convicções. Não falo da irradiação do marxismo, que felizmente pode nascer de outras esferas que não a do astro filosófico; falo da existência paradoxalmente precária da filosofia marxista como tal. Nós, que pensávamos deter os princípios de toda filosofia possível, e da impossibilidade de toda ideologia filosófica, não conseguíamos sustentar a prova objetiva e pública da apodicticidade de nossas convicções. Uma vez posta à prova a vacuidade teórica do discurso dogmático, restava à nossa disposição um único meio para assumir a impossibilidade de pensar verdadeiramente nossa filosofia: pensar a própria filosofia como impossível. Conhecemos então a grande e sutil tentação do “fim da filosofia” de que nos falavam textos enigmaticamente claros da Juventude ( 1840-1845) e do corte (1845) de Marx. Os mais militantes e os mais generosos chegavam ao “fim da filosofia” por sua “realização”, e celebravam a morte da filosofia na ação, em sua realização política e sua realização proletária, pondo sem reserva a seu

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serviço as famosas “Teses sobre Feuerbach”, em que uma linguagem teoricamente equívoca opõe a transformação do mundo à sua explicação. Daí ao pragmatismo teórico não havia, jamais há, senão um passo. Outros, de espí­rito mais científico, proclamavam o “fim da filosofia” no estilo de certas fórmulas positivistas de A ideologia alemã, onde não são mais o proletariado e a ação revolucionários que se encarregam da realização, logo, da morte da filosofia, mas a ciência pura e simples: Marx não nos incita a cessar de filosofar, ou seja, de desenvolver devaneios ideológicos, para passar ao estudo da própria rea­ lidade? Politicamente falando, a primeira leitura era a da maioria de nossos filósofos militantes que, entregando-se totalmente à política, faziam da filosofia a religião de sua ação; a segunda leitura, ao contrário, era a dos críticos, que esperavam do discurso científico acabado que ele cobrisse as proclamações vazias da filosofia dogmática. Mas uns e outros, se se punham em paz ou em segurança com a política, pagavam-no forçosamente com má consciência a respeito da filosofia: uma morte pragmático-religiosa, uma morte positivista da filosofia não são verdadeiramente mortes filosóficas da filosofia. Empenhamo-nos então em dar à filosofia uma morte digna dela: uma morte filosófica. Ainda a esse respeito, apoiávamo-nos noutros textos de Marx, e numa terceira leitura dos primeiros. Avançávamos a partir do entendimento de que o fim da filosofia não pode ser, como o subtítulo d’O capital proclama quanto à Economia Política, senão crítica: que é preciso ir às coisas mesmas, acabar com a ideologia filosófica, e empenhar-se no estudo do real, mas, e era o que parecia nos proteger do positivismo, voltando-nos contra a ideologia, a qual víamos constantemente ameaçar “a inteligência das coisas positivas”, sitiar as ciências, turvar os fatos reais. Confiávamos então à filosofia a perpétua redução crítica das ameaças da ilusão ideológica, e, para lhe confiar essa tarefa, fazíamos da filosofia a pura e simples consciência da ciência, reduzida em tudo à letra e ao corpo da ciência, mas simplesmente virada do avesso, como sua consciência vigilante, sua consciência do exterior, para esse exterior ne­ gativo, para reduzi-lo a nada. Era o fim da filosofia, visto que todo seu corpo e seu objeto se confundiam com o da ciência, e, no entanto, ela subsistia, como sua consciência crítica evanescente, apenas o tempo de projetar a essência positiva da ciência sobre a ideologia ameaçadora, apenas o tempo de destruir os fantasmas ideológicos do agressor, antes de retomar seu lugar, reencon­trar os seus. Essa morte crítica da filosofia, idêntica à sua existência filosófica evanescente, dava-nos enfim as razões e as alegrias de uma verdadeira morte filosófica, realizada no ato ambíguo da crítica. A filosofia então não tinha por desti-

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