Racionalidade – Uma história universal

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universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta

Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Elinton Adami Chaim– Esdras Rodrigues Silva Guita Grin Debert – Julio Cesar Hadler Neto Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Antunes – Sedi Hirano

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Silvio Vietta

racionalidade – uma história universal cultura europeia e globalização

tradução

Nélio Schneider

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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.

ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação V679r

Vietta, Silvio. Racionalidade – Uma história universal: Cultura europeia e globalização / Silvio Vietta; tradução: Nélio Schneider. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2015. 1. Racionalismo. 2. Irracionalismo (filosofia). 3. Cultura e globalização – Europa. I. Schneider, Nélio, 1960- II. Título.

cdd 149.7 isbn 978-85-268-1276-5 303.482094 Índices para catálogo sistemático: 1. Racionalismo 2. Irracionalismo (filosofia) 3. Cultura e globalização – Europa

149.7 149.7 303.482094

Título original: Rationalität – Eine Weltgeschichte: Europäische Kulturgeschichte und Globalisierung © 2012 by Wilhelm Fink Verlag, Paderborn/Germany Copyright © by Silvio Vietta Copyright © 2015 by Editora da Unicamp Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, dos detentores dos direitos. Printed in Brazil. Foi feito o depósito legal.

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sumário

introdução.......................................................................................................................... Teses........................................................................................................................................ A racionalidade e o irracional: Definições e contextos.. ......................................... A neurofisiologia da racionalidade............................................................................... Racionalidade, liberdade, democracia. . ........................................................................ Crítica da racionalidade . . ................................................................................................. a) Literária.............................................................................................................. b) Sociológica........................................................................................................... Max Weber.. .................................................................................................................. Luhmann....................................................................................................................... c) Filosófica.............................................................................................................. Lukács e Adorno......................................................................................................... Heidegger. . .................................................................................................................... Metodologia e subdivisão.. ............................................................................................... Racionalidade multifuncional........................................................................................ “Alemanha, Alemanha”, a velha e a nova Europa....................................................... O império da racionalidade............................................................................................. Perspectiva............................................................................................................................ Referências bibliográficas................................................................................................

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capítulo 1 – a invenção da racionalidade.................................................... A: Parte sistemática............................................................................................................ Tese.. .......................................................................................................................... Aspectos antropológico-filosóficos.......................................................................... Aspectos teológicos................................................................................................... Aspectos sociológicos................................................................................................ B: Parte histórica.................................................................................................................

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Autofundamentação da racionalidade na primeira fase da Antiguidade grega................................................................................................................................. 62 Demitologização............................................................................................................ 64 A teoria do ser de Parmênides, o mundo feito da mistura de elementos............ 66 A teoria atômica de Demócrito e a práxis como ponto de referência da racionalidade. . ......................................................................................................... 69 Autofundamentação como cisão cultural............................................................. 70 Papéis sexuais.. ......................................................................................................... 74 Segunda invenção da racionalidade na moderna teoria do sujeito.. ................. 81 Referências bibliográficas................................................................................................ 85 capítulo 2 – racionalidade e número............................................................... A: Parte sistemática............................................................................................................ Tese.. .......................................................................................................................... Aspectos político-filosóficos..................................................................................... Aspectos teológicos................................................................................................... Aspectos estéticos...................................................................................................... Aspectos sociológicos................................................................................................ B: Parte histórica................................................................................................................. O cosmo e a forma de conhecimento do número na Antiguidade: Os pitagóricos. . ......................................................................................................... O número e as artes................................................................................................. O número como forma da eternidade................................................................... A história do número: Os animais sabem contar?.............................................. Teoria dos números na Antiguidade..................................................................... Teoria numérica indo-arábica. . ............................................................................. Racionalização do pensar e do falar: Neopitagorismo da era moderna........... Pensar é calcular? Hobbes e Leibniz. . ................................................................... Lógica histórica como máquina de calcular. . ....................................................... A ideia da quantificação nas ciências naturais modernas................................. Industrialização e racionalidade como sujeitos da história............................... Quadro referencial político: Mercantilismo, desmonte das barreiras alfandegárias e racionalização das unidades de medida. . .................................. Inovações técnicas como motor da industrialização............................................ Antropologia da indústria, crise de sentido, religiões políticas. . ........................ A física como modelo para o desenvolvimento da racionalidade....................... Racionalidade e irracionalidade: A esquizofrenia alemã................................. A Europa do pós-guerra e o império da racionalidade....................................... O mar cósmico como mar de números: O Poseidon de Kafka............................ Referências bibliográficas................................................................................................

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capítulo 3 – racionalidade e espaço.................................................................. A: Parte sistemática............................................................................................................ Tese.. .......................................................................................................................... Aspectos filosóficos................................................................................................... Aspectos estéticos...................................................................................................... Aspectos teológicos................................................................................................... Aspectos econômico-políticos.................................................................................. Aspectos antropológicos. . ......................................................................................... B: Parte histórica ................................................................................................................ A geometrização do espaço na Antiguidade. . ....................................................... Conquista do espaço pelos romanos, agrimensura, cartografia antiga.. ............ Concepções medievais de espaço, mosteiro cristão, catedral................................ A cidade ideal, perspectiva central, utopias espaciais modernas.. ...................... O espaço cartesiano e a “revolução espacial planetária”.. .................................... Revolução espacial e aniquilação em massa......................................................... Le Corbusier e a geometrização da cidade no século XX.................................... O império espacial da racionalidade e a segunda revolução espacial. . .............. Referências bibliográficas................................................................................................

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capítulo 4 – racionalidade e tempo.. .................................................................. A: Parte sistemática............................................................................................................ Tese.. .......................................................................................................................... Aspectos filosóficos................................................................................................... Aspectos teológicos................................................................................................... Aspectos estéticos...................................................................................................... Aspectos socioeconômicos. . ....................................................................................... Aspectos antropológicos. . ......................................................................................... B: Parte histórica ................................................................................................................ Construção do calendário...................................................................................... Em busca da imortalidade: Gilgamesh e Paulo.................................................. O tempo dos relógios. . .............................................................................................. Nova experiência do tempo e o cosmo como máquina do tempo........................ A vida cadenciada e a vida não cadenciada: Frederico II e Werther................ Escatologia e assassinato em massa....................................................................... Uniformização e relativização do tempo. . ............................................................ Aceleração e percepção do tempo............................................................................ Virtualização do tempo e perspectiva de futuro. . ................................................. Referências bibliográficas................................................................................................

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capítulo 5 – racionalidade e expansão............................................................ 285 A: Parte sistemática ........................................................................................................... 285

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Tese.. .......................................................................................................................... 285 Aspectos econômico-filosóficos................................................................................ 285 Aspectos teológicos................................................................................................... 287 Aspectos estéticos...................................................................................................... 288 Aspectos socioeconômicos. . ....................................................................................... 288 Aspectos antropológicos. . ......................................................................................... 289 B: Parte histórica................................................................................................................. 290 Definição de colonização. . ...................................................................................... 290 Primeira fase: Colonialismo grego, liberdade, o Império mundial de Alexandre.. ............................................................................................................... 292 Segunda fase: O imperialismo romano.. ............................................................... 300 Terceira fase: Expansão do cristianismo. . ............................................................. 315 a) No Império romano.............................................................................................. 315 b) Expansão para o norte, o ocidente e o oriente da Europa......................... 321 Quarta fase: As Cruzadas. . .................................................................................... 329 Quinta fase: Colonialismo moderno do início do século XVI ao final do século XVIII – Considerações prévias de cunho geral......................................... 341 a) América do Sul e América Central. . ................................................................. 343 b) América do Norte.. ................................................................................................ 352 c) Ásia, Nova Zelândia, Austrália. . ........................................................................ 360 Sexta fase: O império da racionalidade, o alto imperialismo moderno e a briga pela África.. .................................................................................................... 364 Crítica do colonialismo, descolonização e o homem-macaco de Kafka... 377 Sétima fase: O imperialismo pós-nacional das corporações e a União Europeia como potência colonizadora.................................................................. 380 Referências bibliográficas................................................................................................ 382 capítulo 6 – racionalidade e dinheiro. . ........................................................... A: Parte sistemática ........................................................................................................... Tese.. .......................................................................................................................... Aspectos filosóficos................................................................................................... Aspectos teológicos................................................................................................... Aspectos estéticos...................................................................................................... Aspectos socioeconômicos. . ....................................................................................... Aspectos antropológicos: Dinheiro e ganância..................................................... B: Parte histórica................................................................................................................. Dinheiro e bancos na Grécia Antiga..................................................................... O sistema financeiro romano................................................................................. A economia monetária medieval: A ascensão do banco da Ordem dos Templários...............................................................................................................

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O sistema bancário do início da era moderna no norte da Itália...................... A febre do ouro e o atraso da Espanha.................................................................. Feiras, bolsas de valores, ações, dinheiro-papel.................................................... As moedas nacionais modernas, as inflações, o marco alemão.. ......................... Euro, crises financeiras........................................................................................... A racionalidade das crises...................................................................................... Referências bibliográficas................................................................................................

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capítulo 7 – aistética e racionalidade. . .......................................................... 475 A: Parte sistemática.......................................................................................................... 475 Tese.................................................................................................................................... 475 Definição. . ................................................................................................................ 475 Aspectos antropológico-filosóficos: O primado genético humano da aistética............................................................................................................... 476 Aistética e estética. . .................................................................................................. 480 Aspectos teológicos................................................................................................... 482 B: Parte histórica................................................................................................................. 482 A mediação da teoria aistética e da teoria teológica da criação do mundo por Herder.................................................................................................. 482 C: Escatologia da racionalidade? Por uma nova cultura da aistética racional.................................................................................................................... 489 Referências bibliográficas................................................................................................ 494 índice onomástico.......................................................................................................... 497

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introdução

Teses Neste livro, partimos para uma viagem de mais de 2.700 anos pela história da cultura. Trata-se de uma viagem à qual o “livro” se presta bem como meio capaz de transportar um amplo leque de ideias. Mas por que fazer uma viagem tão longa pela história? Porque o nosso próprio presente ainda não possui um longo percurso histórico na sua superfície, mas certamente o possui em sua estrutura profunda. Porque a própria época em que vivemos é o produto de uma história de longo prazo, incluindo nisso as perspectivas de futuro que daí resultam para ela. O nosso agora, com sua rápida sucessão de eventos, deve sua dinâmica evolutiva essencialmente a uma história da racionalidade que começou na Antiguidade grega e a uma força de impulsão que foi ficando cada vez mais intensa no decorrer da história. Essa força é o motor do tempo presente e, desse modo, também do futuro. Se quisermos descrever isso com uma metá­ fora orgânica e, por conseguinte, inadequada, podemos dizer: na primeira fase da Antiguidade grega, foram lançadas as sementes que hoje estão bro­tando – de modo bastante explosivo. Com efeito – e esta é a tese central do nosso livro – os atores principais dessa história de longo prazo não são, em primeira linha, os seres humanos, não são os regentes, imperadores, ditadores, políticos, tampouco as classes sociais, como a burguesia ou o proletariado; a atriz principal da história europeia, hoje global, é uma faculdade humana, muito unilateral, mas sumamente eficiente: a racionalidade. Ela definiu coisas tão decisivas quanto os papéis a serem desempenhados por homem e mulher, produziu novas classes sociais e desban11

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cou velhas estruturas, desencadeou revoluções; desde que ingressou na história, ela define as possibilidades políticas e os espaços de manobra da política de cada época. A racionalidade europeia foi a força motriz das conquistas colonialistas, foi a potência vitoriosa sobre outras culturas, estabeleceu relações de dominação, criou a industrialização e tecnicização do globo com seus efeitos colaterais e suas opções. A própria racionalidade inventou e construiu uma civilização que é moldada por suas formas de pensar, tecnologias e instituições, e cujas possibilidades de desenvolvimento ela continua tramando. A sociedade global em que vivemos hoje é produto dessa racionalidade, incluindo os irracionalismos que a acompanham. Historicamente essa nova cultura racional tomou forma no período entre os séculos VIII e V a.C. Nesse tempo foi inventada, na banda oriental do Mediterrâneo, a ciência (natural) da filosofia – nessa época, as duas ainda não estavam separadas –, foi inventada a geometrização do espaço, foram inventadas novas técnicas racionais de fazer guerra, superiores às de todas as demais culturas, foram inventadas a matematização do tempo, a economia (monetária) do dinheiro e o sistema bancário, tudo isso associado a um forte expansionismo da racionalidade, correlacionado com um novo senso de liberdade: nascera a democracia. Nessa época também foram inventados os papéis a serem desempenhados por homem e mulher e que durante 2.700 anos dominariam a história: o homem como portador do Logos, da energia geradora, da atribuição da forma e, em consequência, da parcela ativa da história, a mulher como o elemento passivo, sensível, “meramente” material e, em consequência, secundário na história. Essas estipulações foram tão efetivas porque corresponderam ao estado da racionalidade daquela época. Nessa época, inventou-se nada menos que a própria racionalidade e fundou-se sobre ela uma nova cultura, unilateral em muitos aspectos, a qual, no entanto, foi corrigindo a si mesma no decorrer da história e ainda continua se corrigindo. É claro que, nesse processo, as invenções gregas não caíram do céu. Elas já têm uma história prévia que remete à Mesopotâmia babilônica e ao Egito. Os pró­prios gregos, especialmente o seu grande historiador Heródoto, estavam bem conscientes de ser herdeiros de novos conhecimentos científicos e prag­ máticos, estavam cientes de que tinham assumido a geometria dos egípcios, a astro­nomia dos babilônios, a economia monetária dos lídios etc., mas também que haviam convertido isso tudo em algo totalmente novo, ao colocarem a própria racionalidade sobre um fundamento teórico: a ciência racional e a filosofia. 12

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introdução

E assim tem início a história da racionalidade como história contínua. Ela continua no Império romano, na medida em que os romanos aprenderam dos gregos suas mais importantes técnicas e habilidades, especialmente a técnica bé­lica e o sistema de organização, mas também o planejamento espacial e a disposição arquitetônica, a cronometria e o calendário, a economia monetária, entre outros. A Igreja cristã assumiu muitas dessas coisas e as transmitiu – reco­ di­ficadas em termos religiosos – à era moderna e a seus impérios nacionais. A própria racionalidade assume assim – passando por muitas rupturas e também por longas fases de latência da história – a linha de um movimento progres­sivo que se desprende das curvas ascendentes e declinantes dos Impérios e se torna autônoma. Ao modo de um camaleão, a racionalidade se adapta às diferentes estruturas imperiais e ajuda estas a alcançar o poder graças ao acervo de saber e às técnicas que transmite e põe ao alcance da mão. No decorrer dessa história, a Terra é explorada e colonizada – primeiramente em torno do Mediterrâneo, depois, durante a era moderna, em torno do globo. Nesse processo do colonia­ lismo moderno, surge – parte por parte – a atual sociedade mundial: um só âm­bito de poder global e gradativamente unificado, cujas estruturas são determinadas essencialmente pelas formas de pensar e pelas técnicas da racionalidade. Esse âmbito de poder desenvolve, ele próprio, uma estrutura imperial: o império da racionalidade. Os Impérios vêm e vão, mas o império da racionalidade ascende através daqueles e se consolida cada vez mais. Atravessando os reinos temporais e os âmbitos de poder – superando as rupturas –, a racionalidade desenvolve a sua própria história de longo prazo e de progresso. Nessa história da racionalidade, as suas formas de pensar e de agir, suas técnicas industriais de produção e formas de comunicação se convertem, todas elas, em parâmetro do êxito político. A própria racionalidade define as normas pelas quais funciona a sociedade mundial, e isso de forma perfeitamente diferenciada entre o centro e as zonas periféricas, entre vitoriosos e derrotados no sistema da civilização racional. Nesse sentido, a globalização atual é um produto seu de interligação em rede de todas as culturas num só espaço de comunicação e ação, que funde as diferentes culturas indígenas do mundo numa só cultura mundial, num só tempo mundial, num só mundo comercial e financeiro, e os diferentes espaços vitais humanos num só espaço global de experiência, mesmo que em muitos aspectos não passe de um espaço virtual. Contudo, diariamente também vivemos a experiência de que, na verdade, a história da racionalidade não transcorre só racionalmente. Já consta na ata 13

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de fundação da cultura da racionalidade que ela se dissocia de outras faculdades cognitivas do ser humano: especialmente da sensibilidade e dos sentimentos do ser humano. Estes, depois de devidamente expulsos pelo menos do território da racionalidade científica, são definidos por ela como o irracional. Deixemos de lado a questão sobre se é racional ou não essa dissociação, da qual decorre também a problemática antropológica do estranhamento. Em todo caso, ela foi bem-sucedida e – não obstante todas as transformações da sociedade atual – ainda está profundamente inscrita nela. Em contrapartida, na própria racionalidade abstrata autonomizada e em sua “obsessão” por verter todas as qualidades do ser em valores numéricos, está embutida uma boa dose de irracionalidade. Na economia bancária e monetária global, como o suprassumo da nossa atual sociedade calculista, atinge o cú­mulo a abstratividade do pensamento racional posta na Antiguidade mediante a identificação de ser e número. A fixação dos conquistadores europeus por quantidades, percebida pelas demais culturas com suprema estranheza como verdadeira avidez por dinheiro e ouro, parecia aos nativos das colônias conquistadas uma qualidade literalmente “espanhola”. A atual correria do mundo financeiro e especulativo autonomizado em busca de lucros cada vez maiores está fundada na abstratividade da quantidade: esta é, ela própria, uma forma da “má infinitude” – o conceito provém da lógica de Hegel – e não tem limite máximo, se este não lhe for imposto. Por fim, no decorrer da história do império da racionalidade, sempre se associou a ele também uma forma da política de exercício do poder que produziu excrescências extremas de abuso. A história do colonialismo e dos Estados totalitários está eivada de irracionalismos dessa espécie, cuja cota de mortos excedeu a de todas as formas anteriores de crueldade da história da humani­ dade, especialmente também em razão de poder servir-se dos meios da raciona­ lidade: todo tipo de mecanismo racional foi usado também para matar. Por conseguinte, em nossa exposição diferenciaremos as formas histo­ricamente mais antigas do massacre e o moderno assassinato em massa, geralmente produzido por ideologias irracionais que se valeram, todavia, de técnicas racionais. A história da racionalidade se efetua – o que é mais claramente visível nas ciências – também como um processo permanente de autocorreção e de expansão do saber. Essa expansão do saber racional constitui um processo que nunca chega ao fim. Quanto maiores as ilhas do saber, tanto maior o mar do desconhecido que as cerca. O progresso da racionalidade é tendencialmente infin14

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introdução

dável, dissolvendo todas as verdades e também todas as ideologias que se pretendem absolutas. Porém, justamente estas surgiram numa fase avançada do desenvolvimento da racionalidade – a Alemanha propiciou um solo especialmente fértil para isso. A razão disso foi que o rápido progresso da civilização racional também gerou incertezas. Ele provocou o anseio por modelos simples de compreensão de um mundo que se tornava cada vez mais complexo e também deu origem a medos. Desse modo, a civilização racional se converteu em solo fértil para um perigoso irracionalismo, que só pode ser derrotado com o auxílio de mais e não de menos racionalidade. Os papéis históricos desempenhados por homem e mulher igualmente foram corrigidos no decorrer da história da racionalidade e por meio dela. Ninguém dotado de racionalidade afirmaria ainda hoje que o homem é, em essência, o único que participa ativamente da reprodução e que as mulheres não participam ativamente dela e que estas tampouco têm serventia para processos cognitivos lógicos ou criativos. A substituição da força masculina pela técnica racional tornou ultrapassada a imagem tradicional da masculinidade baseada na força. O desenvolvimento da racionalidade seguidamente corrigiu a sua própria história e continua fazendo isso. Além disso, o império da racionalidade tende à formação de espaços unitários abrangentes, que transpõem os espaços de tensões locais e as zonas de guerra mais antigos. A União Europeia, ao promover, se não a de­sativação completa, pelo menos uma neutralização intensa de seus âmbitos nacionalistas de poder, constitui um exemplo positivo disso. E assim o império da racionalidade na atual sociedade mundial abriga também a chance de regular a própria política mundial de modo (mais) racional e trabalhar rumo a uma sociedade mundial mais pacífica e mais justa, na qual as zonas de conflito de culturas, nações, países possam ser mais fortemente neutra­ lizadas, quando não totalmente desativadas. Para chegar a tal nova política mundial, necessitamos de mais e não de menos racionalidade e consequentemente também de políticos que ajam racionalmente, bem como de cidadãos que queiram isso e compreendam as coisas dessa forma. Por 2.700 anos a histó­ ria do império da racionalidade transcorreu expansivamente. Hoje esse mesmo império atinge em toda parte os seus limites. A era da expansão termina já no século XXI. A nova racionalidade deve reconhecer reflexivamente a sua própria situação-limite. Não há mais “espaços novos” nem recursos adicionais que ela possa descobrir e explorar depois de ter tomado e conquistado a Terra. A nova racionalidade reflexiva terá de recorrer a um vínculo estético, ou seja, adaptado 15

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às necessidades reais de vida do ser humano como ser sensível e emocional. Sendo assim, a nossa viagem cultural termina com a apologia de uma nova cultura racional-reflexiva e estética do ser humano.

A racionalidade e o irracional: Definições e contextos O que é racionalidade? Oferecemos aqui, de saída, uma definição que, no entanto, só será diferenciada e complementada no decorrer de nossa viagem pela história da cultura: Racionalidade é um tipo específico de pensamento humano na forma de uma relação “fim-meio” de cunho lógico-causal que leva ao objetivo do modo mais linear possível, relação na qual um objeto é processado em termos cognitivos e/ou práticos com os meios da calculação, visando torná-lo útil. Diferentemente da percepção estética primária, que capta a impressão das qualidades emocionais-sensíveis que o seu objeto causa sobre ela, a racionalidade abstrai disso e enfoca as quantidades calculáveis do objeto. Estas são medidas escalonáveis na ciência, valores econômicos taxáveis na racionalidade econômica, meios calculáveis para a manipulação eficiente de objetos nas técnicas ligadas à aplicação prática. Em termos de história da cultura, a “racionalidade ocidental” (Max Weber) é fundada como potência determinante da cultura nos séculos VIII-V a.C. Isso acon­tece mediante a dissociação da aisthesis. Nessa forma, ou seja, numa forma abstrata de pensar, a racionalidade funda as ciências quantitativas, submete o espaço a uma geometrização, matematiza o tempo, seculariza a religião, inventa a economia monetária, assim como a autodeterminação político-democrática do ser humano, e associa tudo isso a um ímpeto expansionista de cunho geopolítico. Etimologicamente racionalidade deriva do latim ratio, no sentido de “entendimento”, “cálculo”, “plano”, “razão motivadora”, “conclusão racional” (Historisches Wörterbuch der Philosophie, verbete Ratio). O verbo que está na base é reri: “calcular” e também “opinar”. Cícero traduz a palavra grega lógos por ratio. “Racionalidade” é derivada de rationalis ou então rationabilis, referindose às qualidades que correspondem ou então são produzidas pela ratio. O Padre da Igreja latina Tertuliano emprega a palavra rationalitas em conexão com a teoria platônica da alma para caracterizar a parte superior, “racional” da alma. Importante em nosso contexto é o núcleo de significado “cálculo” contido em 16

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ratio, dado que, na história da cultura ocidental, a racionalidade de fato se manifesta e atua como uma faculdade cognitiva calculadora. Do ponto de vista da história das religiões, a racionalidade está estreitamente ligada com uma forma de demitologização, o que foi cunhado por Wilhelm Nestle num estudo já mais antigo na seguinte fórmula: Vom Mythos zum Logos [Do mito ao Logos]. Associada a isso está uma nova polarização do pensa­mento que se afasta das divindades telúricas – entre os gregos, a Mãe-Terra Gaia – e se acerca das novas divindades orientadas para a luz e para o céu, e de novas arqui­teturas religiosas, como a forma do templo na Antiguidade (Figura 1) e a arquitetura gótica na Idade Média cristã. O tipo arquitetônico do “arranhacéu” no planejamento urbano moderno ainda segue essa linha vertical que ascende ao céu. As atuais novas formas de construção dos templos antigos, que primeiramente foram construídos em madeira e a partir do século VI esculpidos em pedra, andam de mãos dadas com novas técnicas racionais de construção, como o cálculo dos segmentos de colunas, a distância entre os eixos das colunas, conjuntos geometricamente projetados, técnicas estas descritas no capítulo 3 como geometrização do espaço. antiga cidade de Poseidônia/Paestum – chamado “basílica” –, de um templo vizinho cerca de cem anos mais novo. Dado que a cidade estava sob a proteção do deus do mar, Poseidon, supôs-se que também esse templo lhe tenha sido dedicado. Achados votivos nos templos, porém, tornam mais provável a suposição de que os templos tenham sido dedicados à mãe dos deuses, Hera, e a Zeus. A coluna dotada de cane­ luras em primeiro plano tem uma altura de 6,45 m e se adelgaça fortemente de 1,45 m na parte inferior para 0,98 m na parte superior. A capacidade de sustentação da coluna é acen­ tuada pelo acabamento saliente (equino), a placa quadrática do ábaco sobre a qual se assenta perpendicularmente a arquitrave. A antiga cidade de Poseidônia fazia parte das colônias da Magna Grécia e mantinha relações com os pitagó­ricos em Crotona, que desenvolveram a sua própria teoria matemática da harmonia, e com a cidade de Eleia, a apenas 35 km de distância, onde ensinou o filósofo Parmênides. Fonte: Borbein, Das alte Griechenland.

Figura 1 – Aspecto visto a partir da colunata do templo dórico do século VI a.C., situado na

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Com o conceito da racionalidade já está posto o conceito antônimo do irracional. Do ponto de vista histórico, esse conceito só apareceria no final do século XVIII em conexão com o problema matemático das proporções, que, na forma de frações, não podem ser reduzidas a números inteiros. Com efeito, a palavra latina ratio também significa: fração matemática. Com esse problema já se depararam os pitagóricos no cálculo das diagonais ou então de seu próprio símbolo secreto, o pentagrama, cujas proporções geométricas tampouco podiam ser reduzidas a valores numéricos inteiros “racionais”. No Iluminismo alemão, o conceito passa, então, a ser usado também para caracterizar problemas que não podem ser resolvidos racionalmente e, no início do século XX, avançou à condição de conceito positivo em moda para caracterizar problemas e estados de consciência que se distinguem expressamente da racionalidade ou resistem conscientemente a ela. No assim chamado Movimento da Germanidade [Deutschkundebewegung] do século XX, o irracional é associado com o aspecto romântico, faustiano, essencialmente alemão. Alfred Baeumler, que tinha afinidade com o nazismo, aplica a designação “problema da irracionalidade” em sentido estrito, à esfera dos juízos estéticos do gosto e dos sentimentos (cap. 7, p. 481). Na Alemanha, especialmente o Romantismo é posto em conexão com o “Irracionalismo”, e isso no sentido da hostilidade à razão e de uma índole alemã, “faustiana”, mais profunda, que estava sendo propagada. Retomaremos com mais detalhes essa cisão alemã específica entre racional e irracional (pp. 46-47 e cap. 2, p. 140 e ss.). Do ponto de vista do objeto em questão, o conceito do irracional obtém seu fundamento de dois lados: de um lado, o “irracional” define o que foi excluído da ratio. Os filósofos gregos associam esse aspecto com o conceito da aisthesis, isto é, com as percepções dos sentidos e também com as emoções. Aquilo que só pode ser percebido com os sentidos ou que “só” se percebe emocional­mente é considerado “irracional” nesse sentido, e o irracional pode constituir o ­ponto de partida de uma aclaração racional; nesse caso, segundo Hegel, que trata o tema em conexão com a geometria, ele já porta em si o “vestígio da racionalidade” (Hegel, Enzyklopädie, § 231*). Porém, denominamos “irracionais”, num sentido mais rigoroso, não as coisas que estão prestes a ser racionalmente aclaradas, mas os juízos que resistem conscientemente a uma aclaração e, desse *

G. W. F. Hegel, Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio, vol. I: A ciência da lógica. Trad. Paulo Meneses. São Paulo, Loyola, 1995, p. 363. (N. do T.)

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introdução

modo, escapam a uma argumentação lógico-causal. Quem, na era do esclarecimento racional, ainda vê o relâmpago no céu como um sinal do destino enviado por Deus, pode até fazer isso, mas, ao proceder assim, está ignorando a fundamentação racional dessas descargas elétricas. Quem, no ano de 1923, na Alemanha, dizia “os judeus são culpados de tudo”, não quis tomar conhecimento de que a responsabilidade pela miséria alemã não era deles, mas da Primeira Guerra Mundial, pela qual a Alemanha foi essencialmente corresponsável, da inflação desencadeada pela guerra e dos tratados de Versalhes. Esse exemplo também ensina que as fundamentações irracionais frequentemente buscam por “bodes expiatórios” para contextos históricos complexos, as quais são “irracionalmente” projetadas sobre eles para que a raiva e a frustração possam ser descarregadas nesses “bodes expiatórios”. Do outro lado, porém, o conceito do irracional também está ligado ao estreitamento da própria racionalidade. Justamente a cegueira parcial da racionalidade, a sobrelevação compulsiva da quantidade, leva nesse sentido muitas vezes a ações “irracionais”. Se os pescadores pescarem com dinamite, eles aumentam momentaneamente a quantidade pescada, mas ao mesmo tempo destroem a ova e junto com ela anos de pesca. O pensamento fixo nos lucros de curto prazo usa de muitas formas técnicas racionais de forma irracional e sem qualquer senso de sustentabilidade. Como veremos sobretudo no capítulo 5, a história da racionalidade seguidamente foi acompanhada por processos de exploração excessivos e, nesse sentido, irracionais. Também os lucros obtidos em mercados financeiros, que hoje são extremamente exagerados, bem como, associados a eles, os honorários autodeterminados dos seus funcionários, são avaliados como “irracionais” na medida em que essa maneira de pensar e agir “extrapola toda e qualquer medida razoável”. Se examinarmos mais acuradamente esse e outros exemplos, veremos que não é o próprio meio, mas o ma­nejo desse meio que deve ser considerado irracional. O dinheiro per se é um meio racional que mede objetos no quadro de uma escala quantitativa de valores, podendo, no entanto, levar a uma busca irracional do ganho e do lucro que “ex­trapola todas as medidas” e, ao fazer isso, deixar para trás um rastro de devas­ tação. Essa tendência para a extrapolação está fundada, como veremos, na p­ rópria categoria da quantidade como uma forma da – por Hegel assim chamada – “má infinitude” (Hegel, Logik, I, 2 C). Porém, as piores excrescências da política do século XX aconteceram mediante a aplicação irracional de meios racionais, pois, só em virtude daquela, estes puderam ter um efeito tão destrutivo. 19

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A neurofisiologia da racionalidade Quando e sob que condições tomou forma a racionalidade na perspectiva da história da evolução e que conhecimentos sobre isso nos oferece a anatomia do cérebro que se constituiu nesse processo? A partir desse campo, obtemos também informações sobre as formas e as delimitações do modo de pensar próprio de cada uma. Como se sabe, o cérebro humano se formou no decorrer de milhões de anos até apresentar a “arquitetura” que tem hoje (Figura 2a), associada com determinadas atribuições funcionais que possuem importância destacada para a vivência e o comportamento humanos (Figura 2b). Relativamente ao desenvolvimento da racionalidade, isso significa que as funções sensoriais do cérebro, a serem associadas à aistética* e que são alimentadas diretamente pelos aparelhos da percepção, encontram-se mais nas áreas posteriores e médias (centrais) do cérebro. As funções cognitivas mais abs­tratas encontram-se preponderantemente no lobo frontal do cérebro. Essa configuração e especialização funcional das zonas frontais do cérebro, que foram observadas bem tardiamente na história da evolução, comportam centros de controle da atenção e da memória operativa, resultando nos processos executi­ vos e intelectuais mais elevados que influenciam de modo determinante a solu­ ção de problemas e a capacidade de decisão do ser humano. Nesses processos, as informações recebidas pelos centros sensoriais e processadas nos córtices associativos dos lobos parietal e temporal são convertidas no lobo frontal em ação consciente e direcionada para um objetivo – portanto, em ação racional. Nessa conversão, a estimativa de causalidades desempenha um papel decisivo. No âmbito humano, essas funções cerebrais, mais elevadas naturalmente, sempre contam também com a participação dos centros da fala, que possibi­ litam a compreensão da fala (área de Wernicke do lobo temporal) e a motricidade da fala (área de Broca do lobo frontal). Lesões na parte frontal do cérebro causam transtornos na atenção, na antevisão de consequências da ação, transtornos na motivação, transtornos motores da fala e transtornos no desempenho da memória.

* Cf. o cap. 7 deste livro a respeito da diferença de significado entre os termos “aistética” e “estética”. (N. do T.) 20

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