RELIGIÕES E CONTROVÉRSIAS PÚBLICAS
Religiões e controvérsias Final.indd 1
21/09/2015 17:05:56
Direção Mary Lou Paris Edição e Assessoria de imprensa Daniel Navarro Sonim Administração e vendas Dominique Ruprecht Scaravaglioni Douglas Bianchi Diagramação e capa Antonio Kehl Assistente editorial Henrique Fernandes Antunes Preparação Hebe Ester Lucas Revisão Fábio Fujita
Universidade Estadual de Campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta
Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Elinton Adami Chaim - Esdras Rodrigues Silva Guita Grin Debert - Julio Cesar Hadler Neto Luiz Francisco Dias - Marco Aurélio Cremasco Ricardo Antunes - Sedi Hirano
Religiões e controvérsias Final.indd 2
21/09/2015 17:06:05
RELIGIÕES E CONTROVÉRSIAS PÚBLICAS Experiências, práticas sociais e discursos
Paula Montero organizadora
Religiões e controvérsias Final.indd 3
21/09/2015 17:06:05
Coleção Antropologia Hoje Conselho Editorial
José Guilherme Cantor Magnani (diretor) – NAU/USP Luiz Henrique de Toledo – UFSCar Renata Menezes – MN/UFRJ Ronaldo de Almeida – Unicamp/Cebrap Luis Felipe Kojima Hirano (Coord.) – FSC/UFG
Sistema de Bibliotecas da UNICAMP / Diretoria de Tratamento da Informação Bibliotecária: Helena Joana Flipsen – CRB-8ª / 5283 R279 Religiões e controvérsias públicas: experiências, práticas sociais e discursos / organizadora: Paula Montero. – São Paulo, SP: Editora Terceiro Nome; Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2015. 1. Religiões. 2. Secularismo. 3. Igreja. 4. Cultos. 5. Pluralismo religioso. I. Montero, Paula.
ISBN 978-85-7816-192-7 (Editora Terceiro Nome) ISBN 978-85-268-1290-1 (Editora da Unicamp)
CDD - 200 - 211.6 - 262 - 264 - 201.5
Índices para Catálogo Sistemático: 1. Religiões 200 2. Secularismo 211.6 3. Igreja 262 4. Cultos 264 5. Pluralismo religioso 201.5
As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade dos autores e não necessariamente refletem a visão da FAPESP. Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Copyright © Paula Montero 2015 Todos os direitos desta edição reservados a EDITORA TERCEIRO NOME Rua Cayowaá, 895 05018-001 – São Paulo – SP fone 55 11 3816 0333 www.terceironome.com.br
Religiões e controvérsias Final.indd 4
EDITORA UNICAMP Rua Caio Graco Prado, 50 – Campus Unicamp 13083-892 – Campinas – SP – Brasil Tel./Fax: (19) 3521-7718 / 7728 www.editora.unicamp.br vendas@editora.unicamp.br
21/09/2015 17:06:05
Sumário
7
Apresentação MELVINA ARAÚJO
11
Introdução PAULA MONTERO
27
Política secular e intolerância religiosa na disputa eleitoral EDUARDO DULLO
49
Igreja Universal e política: controvérsia em torno do secularismo CARLOS GUTIERREZ
75
A controvérsia em torno da liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil: justificativas e moralidades LÍLIAN SALES
97
Controvérsias sobre a educação de surdos no Plano Nacional de Educação CÉSAR AUGUSTO DE ASSIS SILVA
127
“Não cultuais imagens de escultura”: alguns aspectos do debate público acerca da tipificação jurídica da “intolerância religiosa” e da “liberdade religiosa” MILTON BORTOLETO
Religiões e controvérsias Final.indd 5
21/09/2015 17:06:05
163
Políticas públicas, religião e patrimônio cultural: mapeando a controvérsia pública sobre o uso da ayahuasca no Brasil HENRIQUE FERNANDES ANTUNES
181
A homossexualidade de um militante cristão: identidades e práticas como objetos de reflexão política e teológica ARAMIS LUIS SILVA
207
A hermenêutica dos corpos: notas sobre o pastorado das mulheres na Igreja Universal JACQUELINE MORAES TEIXEIRA
231
Vasos rebeldes: modos de distinção e autenticidade na constituição de um pastor pentecostal e sua igreja JOSÉ EDILSON TELES
275
A denúncia de Brolezzi: abusos e injustiças sofridos no Opus Dei ASHER BRUM
303
Controvérsias dos cultos, pluralismo e movimentos anticulto: “abuso espiritual” como denúncia PAULA MONTERO
Religiões e controvérsias Final.indd 6
21/09/2015 17:06:05
Apresentação MELVINA ARAÚJO
Alguns dos temas tratados no livro Religiões e controvérsias públicas: experiências, práticas sociais e discursos já foram analisados em trabalhos anteriores, tais como o secularismo, as discussões em torno da liberação de pesquisas sobre as células-tronco embrionárias ou a intolerância religiosa, por exemplo. Entretanto, enquanto na maior parte das publicações que lidam com esses temas o tratamento dado a eles se insere em perspectivas que os pensam como eivados por um deslocamento da esfera religiosa para o espaço público, nos textos aqui reunidos os autores buscam se debruçar sobre eles para pensar a configuração do modelo democrático brasileiro contemporâneo, no qual o secularismo se coloca sob a forma de confrontação entre ideias advindas de diversas perspectivas religiosas. Assim, em lugar de tratar a inserção de atores religiosos em debates que têm marcado a cena pública nos últimos anos como um desvio, a ideia é a de tratá-los como constituintes de um tipo específico de democracia que está se desenvolvendo no Brasil. Nesse sentido, os autores buscam observar como os atores ligados a diversas denominações religiosas se inserem em determinados debates e terminam por conformá-lo ao modelo do confronto. E são os momentos ápices desses confrontos os privilegiados para observação e análise, já que representam momentos nos quais as ideias que esses atores têm sobre o justo são mais claramente expostas. Ou seja, ao apresentarem essas ideias sob a forma de manifestações, passeatas,
Religiões e controvérsias Final.indd 7
21/09/2015 17:06:05
8
caravanas e caminhadas, esses atores o fazem se contrapondo a outras posições, buscando deixar mais evidentes suas discordâncias em relação a elas. Ao fazer isso, esses atores buscam ressaltar, ao mesmo tempo, suas concepções de justiça e suas críticas em relação às ideias sobre o justo defendidas por aqueles que têm posições diversas das suas. Esse novo modo de apresentação de posições – sob a forma de debate – tem como uma de suas consequências a construção de uma maneira específica de conformar a opinião pública baseada numa confrontação regulada de opiniões. Por outro lado, é preciso salientar que a forma de regulação dessas posições não é dada de antemão nem existe um agente específico cuja função seria a de coibir excessos ou o uso de linguagens inadequadas ao desenrolar das controvérsias, mas sua constituição ocorre pari passo ao desenvolvimento dos debates. Assim sendo, os autores tomaram como uma de suas tarefas compreender como determinadas disputas e agenciamentos conformam a esfera pública e definem o que pode ser dito, quem pode dizer o que e em que situação pode fazê-lo. Dar conta da compreensão da conformação da esfera pública a partir da observação de disputas e agenciamentos requer a mobilização de outro tipo de esforço: o de compreender o que está em jogo quando um determinado evento vem a público. Trata-se de uma tarefa complexa, que requer o empenho não apenas na descrição da cena na qual se desenrola o evento, mas, sobretudo, na compreensão de seus elementos propulsores, ou seja, das conexões e disputas de que depende para ser conformado, bem como das justificações que os atores responsáveis por sua conformação lançam mão para apresentar seus argumentos como sendo válidos ou mais justos em relação aos argumentos dos demais partícipes da controvérsia. E isso, é preciso ressaltar, os autores deste livro fazem com primor. Também é digna de nota a forma ao mesmo tempo sensível e competente com a qual os autores descrevem o desenrolar de eventos, disputas e agenciamentos, demonstrando como, nesses processos, o político e o religioso se reinventam mutuamente, e como, ao fazer isso, modelam a cena pública. Por fim, faz-se necessário dizer que uma das grandes virtudes do livro Religiões e controvérsias públicas: experiências, práticas sociais e discursos é a de inserir a antropologia num campo de debates no qual outros cientistas sociais têm se engajado. Assim, ao tomar como orientadoras da análise questões relativas à conformação da esfera pública no Brasil, os autores aqui reunidos colaboram para recolocar a disciplina enquanto possível contribuidora no desenvolvimento de conhecimentos sobre a sociedade e na conformação de espaços de
Religiões e controvérsias Final.indd 8
21/09/2015 17:06:05
Apresentação
disputa de poder, retirando-a, com o mesmo golpe, de um lugar marginal que a restringe exclusivamente à observação e a descrição de fenômenos também considerados marginais.
9
São Paulo, 24 de abril de 2015.
Religiões e controvérsias Final.indd 9
21/09/2015 17:06:05
ReligiĂľes e controvĂŠrsias Final.indd 10
21/09/2015 17:06:05
Introdução
11
Introdução PAULA MONTERO
Este livro reúne os principais resultados dos trabalhos desenvolvidos no âmbito do projeto Religiões e controvérsias públicas (2011-2014) apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)1. Como anunciado já no título desta obra, a noção de controvérsia, tanto como inspiração teórica quanto como critério de escolha dos casos aqui apresentados, tornou-se o eixo central sobre o qual se articulou nosso modo particular de organizar o problema, já clássico, das relações entre religiões e a constituição da esfera pública moderna. Pela sua centralidade nesta pesquisa, parece-nos necessário descrever rapidamente o modo como esse conceito foi analiticamente apropriado, e até mesmo transformado por este projeto, além de explicitar as razões que nos levaram a atribuir-lhe posição tão estratégica em nossa forma de observação e interpretação das configurações da esfera pública brasileira nas últimas décadas. Ainda que não caiba no escopo deste trabalho nos deter nas razões históricas, sociais e políticas das transformações da sociedade civil brasileira e o papel das religiões na sua formação, esforço já parcialmente empreendido em trabalhos anteriores (MONTERO, 2006, 2009), as investigações que deram origem a este livro partem da percepção de que está em curso uma profunda mutação no modo como os brasileiros se percebem como parte de uma so1
Agradecemos à FAPESP o apoio concedido ao projeto Religiões e controvérsias públicas: experiências, práticas sociais e discursos, n. 11/02948-6.
Religiões e controvérsias Final.indd 11
21/09/2015 17:06:05
12
ciedade. Essa matéria, devemos reconhecer, é por demais complexa para ser abarcada de uma só vez; além disso, muito já foi escrito a esse respeito pela via do papel das religiões e, em particular, da Igreja Católica, na formação de nossa nacionalidade (BRANDÃO, 1988; PEREIRA DE QUEIRÓZ, 1988; SANCHIS, 2001). Não é nossa intenção voltar aqui a esse tema, ao menos não por essa via. Há algumas décadas as ciências sociais deixaram para trás a identidade nacional como problema de investigação. Digamos, para chegar mais rapidamente ao ponto que aqui nos interessa, que as questões da nacionalidade deram lugar, nas últimas décadas, às questões relativas à construção da cidadania. Nesse novo cenário, cujo marco temporal pode ser situado nos anos 1980, década que assistiu a promulgação da nova Constituição cidadã em 1988, o paradigma do sincretismo – até então elo imaginário integrador de diversidades raciais e culturais – vai cedendo lugar ao paradigma da inclusão que nomeia a sociedade a partir de um leque muito mais vasto de diferenças: de crenças, de cor, de posição social, de gênero, etc. Essa mutação, à primeira vista de pequena monta, tem significado, a nosso ver, uma revolução coperniciana com relação ao modo como a sociedade se autorrepresenta e atua sobre si mesma. O deslocamento das questões de nacionalidade para as questões da cidadania tem obrigado ao exercício cada vez mais explícito e desafiador do “desacordo regulado de opiniões”2, na feliz expressão de Binoche, como forma de fazer parte da dinâmica social. Ainda que a forma debate seja, a nosso ver, relativamente recente como característica marcante do modo de operação da sociedade civil brasileira, ao relacionar o problema da construção da cidadania aos processos de formação das opiniões, nosso trabalho entra em interlocução com as questões inauguradas por Jürgen Habermas em seus escritos sobre a formação da esfera pública moderna. Tornou-se consensual na literatura recente atribuir a esse autor a proposição axiológica do debate como forma de invenção e funcionamento do espaço público. Independentemente do conjunto de críticas de que essa invenção foi objeto, a proposição nos pareceu bastante estimulante: ela nos sugeria uma pista desafiadora para compreender como esse novo modo de apresentar-se publicamente, que exige que todas as certezas (religiosas ou não) sejam capazes de objetivar-se e relacionar-se a diversos pontos de vista (MONTERO, 2009), começa a afetar, no caso brasileiro, tanto as configurações de seu espaço público quanto as maneiras como as narrativas religiosas contemporâneas passam a disputá-lo. A hipótese de fundo que orientou esse conjunto de investigações 2
Expressão utilizada por Bertrand Binoche (2012) para descrever como a noção de opinião pública passa a constituir-se, no lugar da religião, em novo elo da vida civil.
Religiões e controvérsias Final.indd 12
21/09/2015 17:06:05
Religiões e controvérsias Final.indd 13
Introdução
diz respeito, pois, ao declínio progressivo da identificação imaginária, no caso brasileiro, entre Igreja Católica e sociedade civil. E, como sugere Binoche (2012, p. 15-16), quanto mais essa disjunção se aprofunda, mais as religiões passam a ser relativas, ficando progressivamente reduzidas “a simples opiniões irredutivelmente plurais”. Esse modelo de democracia subjacente à reflexão do autor supõe que nenhum corpo substantivo de crenças consegue mais, sozinho, regular a totalidade da vida coletiva, e, consequentemente, a doutrina política da tolerância vai ganhando força como princípio de normatividade, tornando-se gradualmente o modo correto de sancionar a convivência entre as diferenças. No caso brasileiro, o processo de relativização das religiões está apenas se iniciando, uma vez que o substrato cristão da sociedade é ainda claramente hegemônico. Mesmo assim, como veremos adiante, nos diversos casos aqui analisados, os agentes religiosos (ou não) já são obrigados a se justificar e, por consequência, objetivar suas posições publicamente. Embora em nenhum dos casos em estudo neste volume a democracia se constitua como objeto das controvérsias, não resta dúvida, pelo jargão encenado nas narrativas, que o jogo dos confrontos é jogado no tabuleiro do que poderíamos chamar de uma democracia liberal. Com efeito, a acusação de intolerância, por exemplo, tem sido cada vez mais acionada nas últimas três décadas por agentes religiosos de todos os horizontes (inclusive católicos) para disputar posições na arena pública brasileira. Mas é interessante destacar as peculiaridades do caso brasileiro quando comparado com os processos europeus descritos por Binoche. Na França, a noção de tolerância entendida como um desacordo regulado de opiniões se tornou a solução histórica para responder aos desafios de uma vida comum desprovida de fé comum (BINOCHE, 2012, p. 109). No Brasil, ao contrário, o desenvolvimento do pluralismo religioso como conceito político e como prática vem acompanhado do confronto religioso. Isso porque a forma como as religiões disputam a definição e sua presença no espaço público está intimamente associada ao modo como, historicamente, a sociedade brasileira se produziu como secular. Se, no caso francês, o conceito de “opinião pública” pode ser considerado o efeito da ideia de “religião privada”, no caso brasileiro, como demonstramos em trabalhos anteriores, a esfera civil foi se construindo no processo de separação da Igreja Católica em relação ao Estado. Uma vez que as dinâmicas de diferenciação das esferas apenas começavam a produzir efeitos e a própria esfera pública estava em gestação, a privatização da religião não se colocava nem como tema, nem como problema (MONTERO, 2006, 2014). Nossa expectativa é que os estudos aqui apresentados venham a iluminar as configurações específicas do modelo democrático brasileiro contemporâneo e permitam compreender essa nova maneira de as religiões se colocarem na cena
13
21/09/2015 17:06:05
14
pública pelo confronto. Foi levando em conta essa novidade que o conceito de controvérsia nos pareceu estratégico para pensar esse novo momento no qual a diversidade religiosa passa a ter um papel fundamental na formação e no exercício da ideia de opinião pública. A abordagem das dinâmicas sociais pelo viés da noção de controvérsia não é propriamente uma novidade. Cyril Lemieux (2007), aluno de Luc Boltanski, a associa ao surgimento, na França da década de 1980, de uma sociologia pragmática3 ou praxeológica que procurou colocar em novos termos as teorias do conflito de Alain Touraine e Pierre Bourdieu. O ambicioso programa de pesquisa a que se propôs essa nova abordagem é extremamente vasto, envolvendo influências que vão da herança pragmática de John Dewey, William James e George Mead à fenomenologia de Paul Ricoeur e à filosofia da linguagem de Wittgenstein (CEFÄI, 2009)4. Mas, no que dizem respeito ao seu diálogo crítico com a obra de Jürgen Habermas, muitas de suas análises introduziram a questão do “público” em vários níveis que aqui nos interessam: em contraponto com as teorias do processo político se interrogam sobre a emergência de um “senso cívico” (PHARO, 1985), enfatizando as experiências e as perspectivas dos atores engajados na ação coletiva; em contraste com a literatura dos movimentos sociais que os definem como “infraestrutura material de mobilização”, destacam seu papel no agenciamento de objetos, coisas e pessoas e no ordenamento de uma “praxeologia da opinião pública” que se volta para o que os indivíduos podem fazer, ver ou dizer, ou, em oposição à uma sociolo-
3
O autor se refere a uma diversidade de trabalhos de autores franceses, como Luc Boltanski e Bruno Latour, que colocam no centro da análise o conceito de “épreuve”, que consiste em privilegiar os processos de disputa na observação sociológica. O autor prefere chamar essa corrente de uma “sociologie des épreuves” por considerar que o pragmatismo como corrente filosófica inspira uma gama muito mais variada de autores, de Durkheim a Pierce, passando por Dewey.
4
Em seu balanço das pesquisas de viés praxeológico desenvolvidas na França na década de 1980, Daniel Cefäi (2009) menciona três grandes centros de irradiação: o Centre de Sociologie de l’ Étique, criado por Paul Ladrière, François-Isambert e Jean Paul Terrenoire em 1978 na École des Hautes Études en Sciences Sociales e que, em diálogo com a obra de Jürgen Habermas, dá atenção aos sentimentos morais e aos procedimentos de avaliação ética; o Centre d’ Études des Mouvements Sociaux, fundado por Alain Touraine em 1970 também na EHESS e dedicado à análise dos movimentos sociais por meio de suas lideranças e instituições políticas (sindicatos, partidos, movimentos sociais, etc.). Com seu afastamento nos anos 1990, as novas gerações sob a liderança de Louis Quéré e Patrick Pharo se distanciaram dessa abordagem, interessando-se pelas dinâmicas infraestruturais e infraestatais das formas de engajamento e reivindicação. Nesse período introduziram novas problemáticas como a do “espaço público” e “experiências-limite”, experimentando novas metodologias e rearticulando a pesquisa sobre mobilizações em torno de uma teoria das arenas públicas e de uma praxeologia da opinião pública; e, finalmente, o grupo de Sociologie Politique et Moral fundado em 1985 por Luc Boltanski e Laurent Thévenot, cujos esforços se concentram em um projeto de investigação gramatical das formas de justiça, de denúncia ou de reivindicação em público.
Religiões e controvérsias Final.indd 14
21/09/2015 17:06:05
Introdução
gia dos grupos, propõem que as dinâmicas de mobilização são correlativas às dinâmicas de “problematização” e “publicização” (QUÉRÉ, 1990); ou, ainda, em reação à noção de ação instrumental tão predominante na ciência política, descreve a gramática das formas de falar em público, as formas de justificação, de denúncia e de reivindicação (BOLTANSKI, 2000, 2002).
15
Os trabalhos aqui apresentados estão em diálogo mais ou menos explícito com esse conjunto de problemas, com sua inspiração teórica e modos de trabalhar a questão da publicidade. Ainda assim, deles se diferenciam pelo menos em duas dimensões estratégicas: no lugar heurístico atribuído ao conceito de controvérsia e no espaço privilegiado atribuído ao agenciamento religioso, e não aos movimentos sociais em geral, na produção de um “senso cívico” ou na “praxeologia da opinião” (CEFÄI, 2009).
A controvérsia como publicidade O modo como as controvérsias foram compreendidas e trabalhadas nas correntes de uma sociologia dos conflitos é bastante amplo e variado. Lemieux (2007, p. 191-192) sugere que hoje duas grandes correntes metodológicas se oferecem aos pesquisadores das ciências sociais que se interessam pelo estudo das controvérsias: a mais clássica, que a entende como um meio de revelar relações de força, posições institucionais ou redes sociais dificilmente acessíveis à observação direta. Nessa ótica, o pesquisador se dá como programa a observação das mudanças sociais e institucionais, a trajetória dos atores e o tipo de recurso que mobilizam e, enfim, o curso de uma controvérsia e sua conclusão. Uma segunda abordagem, iniciada pela história das ciências e retomada na França pela corrente pragmática acima mencionada – seja no campo de uma “sociologia do confronto” no sentido dado a ela nos trabalhos da antropologia das ciências de Bruno Latour (2005) e Michel Callon (2001), seja no sentido de uma sociologia dos regimes de ação de Luc Boltanski (2002) –, consiste em tomar os processos de disputa como objeto privilegiado de investigação e, mais precisamente, “ações coletivas que conduzem à transformação do mundo social”. Esta corrente que toma como objeto os regimes de ação e de visibilidade nos pareceu particularmente útil para pensar os processos de formação do pluralismo na sociedade brasileira e as dinâmicas que envolvem o aprendizado do exercício da opinião. No volume de 2007 da Mil neuf cent. Revue d´histoire intelectuelle, inteiramente dedicado ao tema das controvérsias, elas se apresentam como uma abordagem metodológica que renovou, em primeiro lugar, o campo da história
Religiões e controvérsias Final.indd 15
21/09/2015 17:06:05
16
das ciências, e generalizou-se em seguida como uma nova abordagem para a história das ideias. No entanto, fora desses campos, a controvérsia ainda não foi objeto das ciências humanas em geral. Bruno Latour (2000) e Fabiani (2007) procuram estender o interesse pelo estudo das controvérsias para uma sociologia da crítica, mas que permaneceu em grande parte associada aos debates científicos e intelectuais. Talvez tenham sido os autores Luc Boltanski e Laurence Thévenot, ao procurarem integrar a filosofia política à pragmática dos julgamentos morais, os primeiros a alargar o conceito de modo a que pudessem abranger as formas de debate exteriores ao mundo das ideias e aos campos acadêmicos. Para esses autores, o desenvolvimento das disputas, “quando eliminam a violência, revelam constrangimentos fortes na busca de argumentos, apoiados sobre provas sólidas, manifestando esforços de convergência no coração do diferendo” (1991, p. 27, tradução nossa). Embora os autores prefiram a noção de crítica à de controvérsia, essa orientação teórica também implica, no plano do método, privilegiar os momentos de confronto como eixo principal da observação. Além disso, o modo como essa abordagem pelo diferendo e pela justificação problematiza a noção do público interessa particularmente a muitos dos trabalhos que compõem este livro. Diferentemente dos estudos mencionados anteriormente, de uma forma geral nosso trabalho não se desenvolveu, entretanto, no interior do campo de uma sociologia da crítica. Na verdade, em diálogo com a vasta literatura sobre o secularismo (ASAD, 2003; CALHOUN, 2012; CASANOVA, 1994; 2007; MODOOD; LEVEY, 2009; TAYLOR, 1998; 2007), desde o primeiro momento interessava-nos compreender a formação e a configuração recente do espaço público na sociedade brasileira e o relevante papel dos agenciamentos religiosos nessa construção. Como se pode notar a partir dos casos aqui analisados, a dissensão e a crítica começaram a tornar-se o modo de ação cada vez mais recorrente dos agentes religiosos na sua relação entre si e na sua relação com o Estado. Esse fato passou a nos interessar, embora não soubéssemos, em um primeiro momento, como abarcá-lo e reuni-lo de um modo sistemático e abrangente. O conceito de controvérsia nos ofereceu um caminho para a construção de um paradigma analítico a partir do qual toda forma de confronto nesse campo pudesse ser compreendida como parte de um mesmo problema: uma manifestação das configurações singulares do secularismo brasileiro cujo modelo pretendíamos descrever. A noção de “momento crítico” de Luc Boltanski (2000) – momentos de manifestação mais ou menos pública de indignação ou desacordo – nos permitiu diferenciar a observação do que fazem os atores (acusações, denúncias, críticas e justificações) da controvérsia entendida como forma que só pode
Religiões e controvérsias Final.indd 16
21/09/2015 17:06:05
Introdução
ser alcançada analiticamente. Mas nossa intenção ao observar as formas de dissenso não era tanto a de atestar a competência crítica dos atores, como no caso de Boltanski, e sim a de identificar e descrever a particular configuração social do secularismo que emerge dessa dinâmica que associa atores, textos, instituições e acontecimentos. É com base nesse enquadramento teórico que Eduardo Dullo parte da nota de repúdio da Arquidiocese de São Paulo, em 2012, a um texto escrito pelo pastor Marcos Pereira, coordenador da campanha do candidato à prefeitura, Celso Russomano, pelo Partido Republicano Brasileiro (PRB); Carlos Gutierrez, da cerimônia de posse de Rogério Hamm, também do PRB, à Secretaria do Desenvolvimento Social do Governo de São Paulo em 2013; Lílian Sales, da audiência pública convocada pelo Superior Tribunal de Justiça para definir o “início da vida”; César Silva, da ameaça de fechamento pelo Ministério da Educação das escolas bilíngues para surdos em 2010 de inspiração protestante; Milton Bortoleto, do evento da quebra de imagens em um centro espírita do Rio de Janeiro por jovens evangélicos em 2008; Henrique Antunes, da inserção da Banisteriopsis, um dos vegetais que compõem a ayahuasca, na lista dos produtos proscritos pelo Ministério da Saúde; Aramis Luis Silva, da fala do papa Francisco aos jornalistas, em 2013, sobre a posição da Igreja Católica a respeito da homossexualidade; Jacqueline Moraes Teixeira, do enorme sucesso do livro de Cristiane Macedo, filha de Edir Macedo – fundador da Igreja Universal do Reino de Deus –, em 2007, destinado à mulher, Melhor que comprar sapatos; José Edilson Teles, do ciclo de fundadores de microigrejas pentecostais e a disputa por autenticidade de suas atividades, tomando como recorte empírico o caso da revelação divina sonhada por José Ribamar que o levou a fundar a Igreja Manjedoura de Cristo; Asher Brum, do livro de memórias publicado em 2006 por Antonio Carlos Brolezzi, que denuncia abusos perpetrados contra ele pelo Opus Dei; Paula Montero, da denúncia publicada pela revista Época em 2009 do ex-pastor Gustavo Alves da Rocha sobre os abusos cometidos contra ele por Edir Macedo.
17
Desse modo, tomando como referência eventos pontuais que envolveram entidades religiosas diversas – um debate público, uma denúncia, uma decisão governamental, um sucesso editorial ou conflitos entre pastores e igrejas –, o esforço inicial dos trabalhos foi o de descrever a cena na qual o evento se manifesta e circunscreve, e compreender o que está em jogo no modo como ele aparece publicamente. É por essa razão que, em nossa perspectiva, não estamos tomando as controvérsias como fenômenos empíricos a descrever. Se subjacentes a todos os casos estudados podem-se reconhecer dinâmicas de conflito, a passagem do evento à controvérsia dependeu, em maior ou menor grau em função de cada caso, de uma construção analítica que procurou, como
Religiões e controvérsias Final.indd 17
21/09/2015 17:06:05
18
sugere Boltanski, ordenar agências heterogêneas. Estamos trabalhando, pois, com o conceito de controvérsia ao mesmo tempo como um método para reunir e recortar casos empíricos colocando-os em relação e como instrumento heurístico que nos permitiu observar acontecimentos e práticas reunidos de um modo mais ou menos arbitrário (a não ser pelo fato de que todos remetem necessariamente a entidades religiosas). Levando-se a sério o que dizem os personagens envolvidos na cena, procuramos compreender simultaneamente o que está em disputa e como diferentes formas discursivas em interação conformam o espaço público enquanto secular. A nosso ver, tal formulação foi capaz de produzir, no campo de estudos das religiões, os deslocamentos necessários sugeridos por Michel Foucault5 em sua abordagem das genealogias e disciplinas. Em vez de observarmos instituições religiosas e/ou grupos tomando-os de antemão como entes empíricos, a abordagem pelo caminho das controvérsias nos levou a observar antes práticas discursivas do que lógicas institucionais, cosmologias, valores e comportamentos. Isso porque, como reconhece a corrente pragmática, na esteira dos trabalhos de Austin, a linguagem não se restringe à função de descrição ou representação do mundo, mas também faz o mundo. Essa nova perspectiva teórica nos fez ver que certa tradição de estudos das religiões que privilegiava a descrição das cosmologias, dos rituais e das instituições foi instrumento ativo na produção dos próprios fenômenos que pretendia explicar. Desse modo, uma desontologização dos grupos religiosos nos pareceu atual e necessária, uma vez que, ao contrário do que pretendem os estudiosos com suas definições e seus sistemas de classificação, os grupos empíricos não preexistem às linguagens usadas para descrevê-los e recortá-los. O mesmo se pode dizer do “religioso”. As práticas discursivas o constroem e o distribuem. Nas condições contemporâneas tornou-se difícil localizá-lo; parafraseando Bruno Latour com relação ao social, “o religioso parece estar diluído em toda a parte (e em lugar nenhum)”. Se não há nada que se possa definir como específico ao religioso, o recorte pela controvérsia nos permite observar como entidades variadas se conectam em função de contextos, produzindo um tipo de mundo que se acorda a respeito das configurações necessárias de uma sociedade secular.
5
Descentramento com relação às instituições (prisões, hospitais e, acrescentaríamos, igrejas), deixando de estudá-las a partir de suas lógicas internas; descentramento com relação às funções esperadas das instituições (cura, regeneração); descentramento com relação aos objetos empíricos e já dados das instituições (doença mental, criminosos, etc.) (FOUCAULT, 2008, p. 156-158).
Religiões e controvérsias Final.indd 18
21/09/2015 17:06:05
Em sua crítica à teoria dos problemas públicos de Jürgen Habermas, Louis (Queré 2011)6 se pergunta sobre o modo como os problemas são constituídos enquanto tal na esfera pública. A seu ver, antes de se tornarem problemas públicos e serem objeto de debate, os acontecimentos são elaborados e organizados em diferentes níveis até ganhar importância e se constituir em “campo problemático”, na expressão cunhada por Deleuze.
Introdução
Agenciamentos religiosos e praxeologia da opinião
19
Estamos de acordo com Quéré quanto à necessidade de levar em conta os modos como os problemas se instituem como públicos. Ainda assim, nos casos aqui em estudo, muitos dos processos relativos à formação e configuração da esfera pública como contraparte do Estado são de longa duração. Os acontecimentos, aqui analisados em suas dinâmicas de visibilidade, agenciam questões cujos termos já estão relativamente bem estabelecidos no plano temporal. Com efeito, ao fazermos uma leitura transversal dos casos apresentados neste volume, pode-se perceber que apenas à luz de “campos problemáticos” de longa duração na história política brasileira é possível compreender os nexos que agenciam os elementos das controvérsias em análise. É no campo do debate sobre a laicidade, por exemplo, que se jogam as denúncias contra o PRB e a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) descritas por Dullo e Gutierrez; é no campo do debate entre fé e ciência que se desenvolvem os argumentos em torno do início da vida descritos por Sales; é no campo do debate entre universalismos nacionais e particularismos étnicos que Assis Silva situa a disputa pela escola bilíngue para surdos; é no campo do debate sobre liberdade religiosa que Bortoleto e Antunes discutem a regulação do religioso; é no campo dos direitos humanos e do planejamento familiar que Brum, Silva e Teixeira descrevem o debate sobre religião, sexualidade e aborto; é no campo do debate que opõe seita à igreja que Teles e Montero analisam a instituição e a legitimidade da autoridade pastoral evangélica. Ainda que os problemas públicos aqui em estudo se articulem de maneira recorrente a esses “campos problemáticos” mais ou menos pactuados historicamente ao longo dos processos de ordenamento republicano e democrático, ao observarmos o que diz e faz o variado leque de agentes quando está em litígio a noção de bem coletivo, pode-se perceber um rearranjo ou redefinição das questões “clássicas” que disputa seus sentidos contemporâneos. Essa dinâmica que, a exemplo de Quéré, chamamos de “praxeologia da opinião”, 6
Entrevista concedida para Leandro Lage e Tiago Salgado e publicada na revista EcoPos-UFRJ, v. 14, n. 2, 2011.
Religiões e controvérsias Final.indd 19
21/09/2015 17:06:05
20
coloca sob as lentes de nossa observação as ações discursivas e pedagógicas do poder pastoral nos mais diferentes níveis. Inspira-nos a proposição de Boltanski de que é possível supor a existência de múltiplas gramáticas de justificação capazes de propor reivindicações coletivas, até mesmo antitéticas, com relação a um regime cívico-republicano tal como, por exemplo, a campanha do pastor Tupirani “Bíblia sim. Constituição não” mencionada no trabalho de Bortoleto. A ideia central não é, pois, afirmar simplesmente que os “valores religiosos” exercem poder de influência sobre a vida pública, mas sim examinar as formas contemporâneas de percepção do que é justo ou injusto em diferentes situações e compreender como elas estruturam o campo de ação das pessoas. A exigência de que todas as certezas, mesmo religiosas, sejam capazes de objetivar-se e negociar com diferentes pontos de vista nos parece uma novidade no processo de secularização que merece ser investigada. Em trabalho anterior, já havíamos chamado a atenção para a necessidade de enfrentar de uma nova maneira a questão das relações entre religião e política, deixando de privilegiar o problema da “invasão” da esfera política pelos agentes religiosos e tomando o próprio secularismo como objeto privilegiado da reflexão da antropologia e das ciências sociais (MONTERO, 2013). Como parte dessa agenda, os trabalhos que compõem esta obra colocaram o contraponto entre enunciados e o modo como as categorias são agenciadas no centro de sua observação. Demo-nos como tarefa compreender como disputas e agenciamentos modelam a esfera pública definindo o que pode ser dito, como pode ser dito e por quem. Boltanski e Thévenot (1991) nos proveram de instrumentos úteis para examinar e descrever essas formas discursivas de qualificação e codificação do “bem comum” e da “justiça”. Os trabalhos de Dullo, Gutierrez, Sales, Bortoleto, Antunes e Brum se beneficiaram diretamente dessa abordagem. Interrogando-se sobre as formas de desaprovação, de denúncia, de reivindicação e de mobilização, como sugere Pharo (1985), foi possível perceber as dinâmicas de uma configuração particular de senso cívico (e de religião). Além disso, levando-se em conta que as formas de julgamento se apoiam em certezas de como o mundo é ou deve ser, e que as percepções do bom e do justo só podem ser compreendidas de maneira situada, alguns trabalhos se moveram na direção de examinar certos contextos da experiência associados a organizações religiosas. Partindo de algumas “situações-problema”, tal como aparecem nos casos aqui elencados, procuramos tratar essas organizações como conjunturas prático-sensíveis, como sugere Cefäi, que agenciam objetos, normas e pessoas ordenando o que os participantes de uma rede ou organização podem fazer ou dizer (2009, p. 19). Assim, os trabalhos de Gutierrez, Silva, Teixeira, Teles, Brum e Montero procuram descrever as mutações das experiências e os processos de codifica-
Religiões e controvérsias Final.indd 20
21/09/2015 17:06:05