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universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta
Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Esdras Rodrigues Silva – Guita Grin Debert João Luiz de Carvalho Pinto e Silva – Luiz Carlos Dias Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Antunes – Sedi Hirano
universidade estadual do Ceará Reitor José Jackson Coelho Sampaio Vice-Reitor Hidelbrando dos Santos Soares
Conselho Editorial Editor Erasmo Miessa Ruiz Antônio Luciano Pontes – Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes Emanuel Ângelo da Rocha Fragoso – Francisco Horácio da Silva Frota Francisco Josênio Camelo Parente – Gisafran Nazareno Mota Jucá José Ferreira Nunes – Liduina Farias Almeida da Costa Lucili Grangeiro Cortez – Luiz Cruz Lima Manfredo Ramos – Marcelo Gurgel Carlos da Silva Marcony Silva Cunha – Maria do Socorro Ferreira Osterne Maria Salete Bessa Jorge – Silvia Maria Nóbrega-Therrien
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Benedict Anderson
Sob três bandeiras
anarquismo e imaginação anticolonial
Tradução Sebastião Nascimento
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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.
ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação An23s
Anderson, Benedict. Sob três bandeiras: Anarquismo e imaginação anticolonial / Benedict Anderson; tradução: Sebastião Nascimento. – Campinas, sp: Editora da Unicamp; Fortaleza, ce: Editora da Universidade Estadual do Ceará, 2014. 1. Anarquismo e anarquistas – Filipinas. 2. Anarquismo e anarquistas – Cuba. 3. Nacionalismo – Filipinas. 4. Nacionalismo – Cuba. 5. Movimentos anti-imperialistas – Filipinas. 6. Movimentos anti-imperialistas – Cuba. I. Nascimento, Sebastião. II. Título. cdd 320.5709599
320.57097291 320.5409599 320.54097291 isbn 978-85-268-1222-2 (Editora da Unicamp) 325.3599 isbn 978-85-7826-239-6 (Editora da Universidade Estadual do Ceará) 325.37191
Índices para catálogo sistemático: 1. Anarquismo e anarquistas – Filipinas 2. Anarquismo e anarquistas – Cuba 3. Nacionalismo – Filipinas 4. Nacionalismo – Cuba 5. Movimentos anti-imperialistas – Filipinas 6. Movimentos anti-imperialistas – Cuba
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Título original: Under Three Flags: Anarchism and the anti-colonial imagination First published by Verso 2005 Copyright © by Benedict Anderson Copyright © 2014 by Editora da Unicamp Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, dos detentores dos direitos. Printed in Brazil. Foi feito o depósito legal. Direitos reservados a Editora da Unicamp Rua Caio Graco prado, 50 – Campus Unicamp cep 13083-892 – Campinas – sp – Brasil Tel./Fax: (19) 3521-7718/7728 www.editora.unicamp.br – vendas@editora.unicamp.br
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Editora da Universidade Estadual do Ceará – EdUECE Av. Dr. Silas Munguba, 1700 – Campus do Itaperi – Reitoria cep: 60714-903 – Fortaleza – Ceará Tel: (085) 3101-9893. Fax: (85) 3101-9893 www.uece.br – eduece@uece.br
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Em homenagem a Herman Melville. Em memĂłria de Tsuchiya Kenji. Para Kenichiro, Carol e Henry.
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Agradecimentos
Muitas pessoas e instituições ofereceram-me ajuda indispensável na preparação deste livro. Entre os indivíduos, minha maior dívida foi com meu irmão Perry, por sair incansavelmente à caça de materiais para ampliar e refinar meu pensamento e por suas críticas tipicamente meticulosas e perspicazes. Incomparáveis, senão a ele, foram Carol Hau e Ambeth Ocampo. Outros a quem gostaria de agradecer profundamente são Patricio Abinales, Ronald Baytan, Robin Blackburn, Karina Bolasco, Jonathan Culler, Evan Daniel, Neil Garcia, Benjamin Hawkes-Lewis, Carl Levy, Fouad Makki, Franco Moretti, Shiraishi Takashi, Megan Thomas, Tsuchiya Kenichiro, Umemori Naoyuki, Wang Chao-hua, Wang Hui, Susan Watkins, Joss Wibisono e Tony Wood. As quatro instituições que gentilmente colocaram materiais raros à minha disposição foram o Internationaal Instituut voor Sociale Geschiedenis, em Amsterdã, a Biblioteca Nacional das Filipinas, a Biblioteca da Universidade das Filipinas e a Biblioteca da Universidade Ateneo de Manila, especialmente os bibliotecários da Coleção Pardo de Tavera. Devo-lhes a todos minha gratidão.
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Em todos os meridianos deste mundo, deve haver auxílio mútuo. Nós, os canibais, devemos ajudar esses cristãos. (Queequeg)*
* Cf. tradução de Berenice Xavier: Herman Melville, Moby Dick. Rio de Janeiro, Ediouro, 2004, p. 76. (N. do T.)
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Sumário
Prefácio à edição brasileira . . .......................................................... 15 Introdução ....................................................................................... 19 1. Prólogo: O ovo do galo .............................................................. 29 A nova ciência ................................................................................. As riquezas do conhecimento local .................................................... Irmãos da floresta ............................................................................ Estranhas belezas.............................................................................. Reflexões comparativas. . ....................................................................
31 34 35 37 41
2. Allá... Là-bas . . ............................................................................. 47 Bibliotecas transnacionais................................................................. Nitroglicerina na romã...................................................................... Um legado de Baltimore? . . ................................................................ Um estudante da homeopatia............................................................ Là-bas.............................................................................................. Flaubert e um futuro assassino.......................................................... Prazeres jamais provados.................................................................. O luxo do francês.............................................................................. Escrevendo a vingança...................................................................... Os filhos de Rodolphe........................................................................ Risos e suicídio.. ................................................................................ Colaboração e emulação....................................................................
48 50 51 53 55 56 59 61 62 63 65 67
3. Sob a sombra global de Bismarck e Nobel ................................ 77 Passagem para a Europa.. .................................................................. 80
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Bismarck e a nova geografia do imperialismo..................................... 87 Le Drapeau Noir . . ............................................................................. 91 Espanha caciquista . . .......................................................................... 103 As ordens: Despossuídos e possessos................................................... 107 Asas negras ...................................................................................... 109 Um amigo do peito. . .......................................................................... 110 A primeira volta para casa................................................................ 112 Um cisma no nacionalismo dos emigrados......................................... 115 Uma biblioteca perdida? ................................................................... 124 Interpretando El filibusterismo: Transcontinentalismo e prolepse .................................................... 128 Transposições.................................................................................... 129 Dansons la Ravachole....................................................................... 132 Um sorriso enigmático.. ..................................................................... 137
4. Tribulações de um romancista ................................................... 155 A questão de Chernychevsky.............................................................. 155 Terra de Conrad . . .............................................................................. 157 La Liga Filipina. . ............................................................................... 159 A segunda volta para casa................................................................. 162 Uma Sibéria tropical......................................................................... 166 A insurreição de Martí...................................................................... 169 Rizal em Cuba?................................................................................. 175 Novas conjunturas. . ........................................................................... 177 Deixando Dapitan.. ........................................................................... 179 Últimas jornadas.............................................................................. 183 Weylerismo em Manila. . .................................................................... 187 Três reflexões.................................................................................... 191
5. Montjuïc. . ........................................................................................................... 205
A cruzada de Tárrida........................................................................ 205 Paris radicalizada............................................................................. 209 O Parti Ouvrier Belge e O germinal.. ................................................. 216 O caso Dreyfus. . ................................................................................ 217 Patriota das Antilhas: Doutor Betances. . ............................................ 220 Angiolillo: De Foggia para Santa Águeda........................................... 224 Para dentro do Maelström................................................................. 229 Vá para o leste, meu jovem................................................................ 234 Quem é o inimigo?............................................................................ 236
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Um cavalheiro globalizado................................................................ 240 Blumentritt....................................................................................... 243 Os antilhanos. . .................................................................................. 245 Os japoneses..................................................................................... 247 Conexões chinesas ............................................................................ 253 Pawa: Internacionalizando a guerra.................................................. 255 Malatesta em Manila........................................................................ 257 Crepúsculo no Ocidente: Isabelo de los Reyes.. .................................... 262 Crepúsculo no Oriente: Mariano Ponce.............................................. 263
Posfácio . . .......................................................................................... 279 Bibliografia . . .................................................................................... 281 Índice remissivo e onomástico ....................................................... 287
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prefácio à edição brasileira
Um inquieto observador das estrelas Mônica Dias Martins
Pesquisadores do Observatório das Nacionalidades que compartilharam, em julho de 2005, de alguns dias de estudos na companhia de Benedict Anderson, certamente recordam seu depoimento acerca do novo livro que, então, finalizava. Sob três bandeiras: Anarquismo e imaginação anticolonial, dizia ele, mais do que uma tentativa de corrigir a ideia de que nações constituem identidades fixas, representa certa mudança no paradigma de como se estudam os nacionalismos. À semelhança das estrelas, que, embora aparentem ser estáticas, se relacionam umas com as outras, as nações estão em permanente movimento, atravessando suas próprias fronteiras nacionais e possuindo campos gravitacionais, como, por exemplo, as forças políticas e econômicas. Talvez, por isso, o autor afirme na introdução que o livro constitui um experimento do que poderia ser chamado de astronomia política! Tão notável quanto seu testemunho foi o modo de fazer pesquisa durante sua permanência em Fortaleza. Em reunião com estudantes, perguntado se era correto usar o conceito de comunidade imaginada na análise de obras arquitetônicas do governo Vargas, respondeu com naturalidade que, uma vez difundidas, as ideias ganham pernas e correm o mundo. Perspicaz, Anderson indagava acerca do anarquismo no Brasil e, depois de animadas conversas, partia para contatos com conhecedores do tema e visitas ao teatro São José, onde observava minuciosamente aquele local de antigas manifestações operárias, e aos sebos, à procura de dicionários, escritos anarquistas, produções literárias e textos sobre o cinema brasileiro, uma de suas paixões. Nessas ocasiões, buscando detalhes com os quais ninguém parecia se importar, mostrava como trabalhar com um paradigma epistemológico ancorado nos sinais: o método indiciário, que emerge nas ciências humanas na década de 1870, conforme observa Carlos Ginzburg, em Mitos, emblemas e sinais: Morfologia e história (1989). Em seu livro, Anderson torna explícito o vínculo, nem sempre percebido, entre a imaginação nacional e o anarquismo, corrente dominante no pensa
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mento da vanguarda socialista após a morte de Marx. Apesar das conhecidas divergências com Bakunin quanto ao fim do Estado, ambos evitaram conceituar a nação e associar as lutas da classe operária às múltiplas manifestações das nacionalidades. No entanto, sob o impacto de duas guerras mundiais, a emergen te comunidade nacional mostrou todo seu potencial mobilizador e se impôs inclusive aos militantes anarquistas como referência para a ação política. Tal constatação alimentou as reflexões em curso no grupo de pesquisa acerca dos significados do nacionalismo e do internacionalismo, entendidos como fenômenos complementares, o que nos levou a refutar o suposto antagonismo entre os termos. Era gratificante ter um interlocutor para discutir a internacionalidade da nação! Apostamos nesse caminho promissor. A fragilidade dos que buscam explicar a nação com base em critérios objetivos – território, idioma, população, recursos naturais, vida econômica, cultura etc. – está em dispensar pouca atenção aos processos de integração mundial que deram origem à entidade política reconhecida como legítima no âmbito doméstico e pela comunidade de Estados nacionais. As ambiguidades e contradições próprias dessa forma de organização decorrem da dinâmica de um sistema de produção de bens materiais e imateriais amplamente acatado: o capitalismo. As lembranças da presença de Ben no nosso meio ajudam a contextualizar sua obra, mas é hora de contar ao leitor brasileiro os principais achados de um intelectual dotado de imaginação, ousadia e rigor científico, cujo objeto de pesquisa está em constante expansão e cujo estilo narrativo mistura simplicidade e erudição com pitadas de ironia. Haveria algo mais raro do que um prólogo intitulado “o ovo do galo”? Publicado em 2005, Sob três bandeiras é um texto saboroso, repleto de histórias de personagens que viveram, no final do século XIX, as vicissitudes e esperanças de uma época denominada pelo autor de globalização incipiente. No tocante ao fenômeno do colonialismo praticado pelos impérios espanhol e inglês, um paralelo pode ser traçado com a obra Holocaustos coloniais. Nela, Mike Davis (2001) retrata os trágicos efeitos do imperialismo nos últimos anos da era vitoriana, quando uma seca devastadora afeta simultaneamente regiões do Brasil, da China e da Nigéria, com uma estimativa de aproximadamente 50 milhões de vítimas nas áreas rurais desses países. O interesse de Anderson pelas nações pequenas e pelo capitalismo editorial, firmado em Comunidades imaginadas, mantém-se; contudo, ele inova ao se debruçar sobre as experiências transcontinentais de militância política e socia bilidade cultural que alimentam ideias de nação marcadas por uma caracteriza ção identitária internacionalista. Comumente tido como avesso ao naciona16
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lismo, o movimento anarquista desempenhou papel significativo nas revoluções anticoloniais. Na fase de preparação deste livro, foram decisivos tanto o acesso a materiais preciosos nas bibliotecas de Amsterdã e Manila quanto a leitura pelo próprio autor de boa parte dos documentos na língua original. Por sua sincronia temporal, as insurreições nacionalistas em Cuba (1895) e nas Filipinas (1896) revelam, além dos laços entre militantes de várias partes do mundo, os processos que possibilitaram a emergência de uma coordenação transglobal das lutas anticoloniais, assim como das ações repressivas do decadente Império Espanhol e do novo aspirante ao posto, os Estados Unidos. A vitória na Guerra Hispano-Americana não apenas assegurou aos EUA o controle de territórios insulares no Caribe e de um vasto arquipélago (mais de 7 mil ilhas) no Pacífico, mas também ajudou a forjar a unidade nacional estadunidense, fortemente abalada por um sangrento conflito entre os escravocratas sulistas e os abolicionistas, assinalando o início do expansionismo ianque. Uma leitura atenta de Sob três bandeiras pode fornecer pistas de como sociedades nacionais distantes dos centros do poder mundial influenciaram o jogo de forças políticas entre as potências hegemônicas no limiar do século XX e em sua primeira década, culminando na Grande Guerra. Engana-se, no entanto, quem espera encontrar um texto com considerações geoestratégicas, organizado segundo os parâmetros da racionalidade acadêmica. A sutileza de Anderson reside em partir da subjetividade inerente à literatura rumo ao campo da política, levando-nos a pensar na complexa rede intercontinental formada, simultaneamente, pela Europa continental dominada por Bismarck, pela movimentação global das classes trabalhadoras materializada na Comuna de Paris e pelas lutas de libertação nacional que apressaram o fim do imperialismo ibérico. Quanto à estrutura narrativa do livro, esta guarda afinidades com a de um romance ou, quiçá, um filme, rica de exemplos e fatos, descritos em porme nores e de forma entrelaçada, ilustrados por inúmeras imagens. Trata-se de um esforço de apreender o mundo e de produzir conhecimentos assentado, em boa parte, na teoria literária, cuja matéria-prima é a imaginação, ou mais especificamente, a imaginação anticolonial que emerge das obras de Isabelo de los Reyes (1887) e José Rizal (1891), bem como da numerosa correspondência com filipinos e estrangeiros do amigo comum dos dois escritores, Mariano Ponce. O tratamento esmerado dos romances El folk-lore filipino e El filibusterismo convida a uma aproximação, do ponto de vista da análise do enunciado literário, entre os conceitos de nacionalidade e de exotopia. Para Bakhtin 17
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(2011), essa categoria tem como pré-condição o relacionamento autor-personagem expresso na criação estética verbal, o que, no campo social, pode ser entendido como a interseção de duas consciências: o eu versus o outro. Na ótica de Anderson, o texto literário contribui de modo inequívoco para a construção da comunidade imaginada. Limitada e soberana, a nação é forjada por encontros e desencontros entre nós e os de fora, por intensa camaradagem a despeito das renitentes diferenças entre seus integrantes, por expectativas de liberdade e direitos iguais, além de memórias e esquecimentos compartilhados. Sob três bandeiras nos conduz a uma viagem através de mundos diversos: o Pacífico, o Caribe e o Mediterrâneo. As trajetórias de Isabelo, Rizal e Martí, que se consideravam educadores políticos de seus povos, anunciam a crescente tensão mundial resultante, entre outros fatores, do enfrentamento desproporcional entre Estados poderosos e destemidos revolucionários. Apesar de minha familiaridade com o pensamento de Martí – pai da nação cubana e mentor de Nuestra América –, não atinava para a real dimensão de sua influência na guerra de independência das Filipinas e dos estreitos vínculos entre os anarquistas. Sem dúvida, a centralização em Montjuïc das cruéis práticas repressoras do governo espanhol, relatadas por prisioneiros políticos, propiciaram trocas de saberes e alianças decisivas para os movimentos nacionais do conturbado período da incipiente globalização, tão bem narrado por Anderson. Instigada pela leitura, foi-me possível verificar a sintonia das lutas sociais em termos de contexto histórico e geográfico, como se observa nas comparações a seguir, tomando o exemplo do Brasil: 1848 – Primavera dos povos e Revolução Praieira; 1917 – Revolução Russa e Ano Vermelho (greves e manifestações operárias); 1968 – Revoltas estudantis de maio e Passeata dos cem mil; 2011 – Insurreições árabes e Movimento Passe Livre. Não temos explorado devidamente essa série de acontecimentos simultâneos. Ora, crises profundas, graves confrontos e mudanças intensas correspondem aos momentos mais fecundos de elaboração do conhecimento, trazendo desafios epistemológicos: as coisas, as gentes e as ideias movem-se em múltiplas direções; alteram-se as sensações e noções de próximo-distante, lento-rápido, passado-futuro, particular-universal. As questões desafiadoras da atualidade política global mostram que vivemos um desses momentos. O público brasileiro com acesso precário a informações sobre o que ocorre fora do universo televisivo certamente descobrirá no livro as conexões entre o universal e o particular, tema apaixonante por suas implicações em nosso cotidiano. 18
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Introdução
Se olharmos para um céu noturno tropical, sem lua ou nuvens, veremos um manto cintilante de estrelas estacionárias, conectadas por nada, exceto a escuridão visível e a imaginação. A beleza serena é tão imensa que exige certo esforço recordar que essas estrelas estão, na verdade, em perpétuo e frenético movimento, impelidas para cá e para lá pela força invisível dos campos gravitacionais dos quais são parte ativa e inelutável. Tal é a elegância caldeia do método comparativo, que certa vez me permitiu, por exemplo, justapor o nacionalismo “japonês” ao “húngaro”, o “venezuelano” ao “americano”, o “indonésio” ao “suíço”. Cada um deles brilhando com sua própria luz independente, uniforme e unitária. Quando a noite caiu sobre o Haiti revolucionário, tropas polonesas contaminadas pela febre amarela, comandadas pelo general Charles Leclerc, enviadas por Napoleão para restaurar a escravidão, ouviram seus adversários não muito distantes entoarem a Marseillaise e Ça ira!. Reagindo a tal admoestação, recusaram-se a cumprir uma ordem para massacrar prisioneiros negros1. O Iluminismo escocês foi decisivo para modelar a insurreição anticolonial americana. Os movimentos nacionalistas de independência hispano-americanos são inseparáveis das correntes universalistas do liberalismo e do republicanismo. Por sua vez, o romantismo, a democracia, o idealismo, o marxismo, o anarquismo e, eventualmente, até mesmo o fascismo foram, de distintas maneiras, compreendidos em sua capacidade de se espalhar pelo mundo e interligar nações. O nacionalismo, esse elemento com a maior valência entre todos, combinou-se com todos os outros de diversas formas e em diversos momentos. Este livro é um experimento envolvendo aquilo que Melville poderia haver chamado de astronomia política. Procura mapear a força gravitacional exercida pelo anarquismo entre nacionalismos militantes situados em lados opostos do planeta. Em seguida ao colapso da Primeira Internacional e à morte de
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Marx, em 1883, o anarquismo, em suas formas tipicamente diversificadas, foi o elemento dominante na esquerda radical autoconscientemente interna cionalista. Não se trata apenas do fato de que em Kropotkin (nascido 22 anos depois de Marx) e Malatesta (nascido 33 anos depois de Engels) o anarquismo engendrou um filósofo persuasivo e um líder ativista pitoresco e carismá tico de uma geração mais jovem, sem equivalente na corrente central do marxismo. A despeito do imponente edifício do pensamento de Marx, do qual o anarquismo foi com frequência tributário, o movimento não desprezou os camponeses nem os trabalhadores agrícolas numa época em que os vultosos proletariados industriais estavam em grande medida confinados à Europa Setentrional. Estava aberto aos escritores e artistas “burgueses” — em nome da liberdade individual — de uma forma que, naquela época, o marxismo institucional não estava. Igualmente hostil ao imperialismo, não sustentava preconceitos teóricos contra nacionalismos “menores” e “anistóricos”, incluindo aqueles do mundo colonial. Os anarquistas também foram mais ágeis ao capitalizar as vastas migrações transoceânicas do período. Malatesta passou quatro anos em Buenos Aires — algo inconcebível para Marx ou Engels, que jamais deixaram a Europa Ocidental. O Primeiro de Maio celebra a memória de anarquistas imigrantes — não marxistas — executados nos Estados Unidos em 1886. O foco temporal deste livro nas décadas finais do século XIX tem ainda outras justificativas. A quase simultaneidade da última insurreição nacionalista no Novo Mundo (Cuba, 1895) e a primeira na Ásia (Filipinas, 1896) não resultou de um venturoso acaso. Nativos dos últimos remanescentes do lendário império global espanhol, os cubanos (assim como porto-riquenhos e dominicanos) e os filipinos não leram meramente a respeito uns dos outros, mas mantinham ligações pessoais cruciais e, em certa medida, coordenavam suas ações — a primeira vez na história mundial em que uma coordenação transglobal dessa ordem se tornou possível. Ambas foram finalmente suprimidas, uma poucos anos após a outra, pelo mesmo brutal aspirante à hegemonia mundial. Porém, a coordenação não ocorreu diretamente entre a combalida província montanhosa de Oriente e Cavite*, mas foi mediada por
* Conhecida como Província de Santiago de Cuba antes de 1905, Oriente foi uma das seis pro-
víncias de Cuba até 1976. Esse nome ainda é utilizado em referência à porção oriental do país. Cavite é o nome tanto de uma cidade filipina quanto da província que a abriga, localizada na margem meridional da Baía de Manila. (N. do T.)
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