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Primaleรณn (Venecia, Juan Antonio de Nicolini Sabio, 1534).

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Francisco de Moraes

Edição Lênia Márcia Mongelli Raúl Cesar Gouveia Fernandes Fernando Maués Ilustrações Audifax

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Coleção C lássicos Comentados

Editor Plinio Martins Filho

Universidade Estadual de Campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta

Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Elinton Adami Chaim – Esdras Rodrigues Silva Guita Grin Debert – Julio Cesar Hadler Neto Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Antunes – Sedi Hirano Unicamp Ano 50 Comissão Editorial Itala M. Loffredo D’Ottaviano Eduardo Guimarães

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sumário O ciclo dos Palmeirins 7 Informações biográficas 15 Introdução 21 Esta edição 53 Bibliografia selecionada 58 Palmeirim de Inglaterra 69 Glossário 685 Índices onomásticos 709 Genealogia dos Palmeirins 736 Índice dos capítulos 737

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil) Moraes, Francisco de Palmeirim de Inglaterra / Francisco de Moraes; ilustrações Audifax. – Cotia, sp: Ateliê Editorial; Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2016. – (Coleção Clássicos Comentados)

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Vários editores Bibliografia isbn 978-85-7480-735-5 (Ateliê Editorial) isbn 978-85-268-1335-9 (Editora da Unicamp) 1. Cavaleiros e cavalaria  2. Ficção histórica  3. Romance português  i. Audifax. ii. Título.  iii. Série. 16-04641 cdd-869.3 Índices para catálogo sistemático: 1. Romance histórico: Literatura portuguesa   869.3

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servados à

o ciclo dos palmeirins moda das narrativas cavaleirescas “cíclicas” veio da Idade Média, mais especificamente, da prosificação da chamada “matéria de Bretanha” ou “arturiana”, que Chrétien de Troyes divulgou ficcionalmente por meio de versos, no século XII. Acerca desse tema, dois “ciclos”, ambos do século XIII, passaram à posteridade – vigorosos modelos em que se abeberaram as “famílias” futuras: a Vulgata (entre 1215 e 1235) e a Post-Vulgata (antes de 1250)1, sendo o segundo uma espécie de remodelação sintetizada – e em certos aspectos ampliada – do primeiro. Reunindo largamente elementos de tradições diversas (tanto que é também conhecida por ciclo do LancelotGraal), a Vulgata compõe-se de cinco títulos: Estoire del Saint Graal; Estoire de Merlin; Lancelot Du Lac (núcleo do conjunto e sua parte mais longa); Queste del Saint Graal e Mort Artu. Personagens como Merlim ou Galaaz; pares famosos como Lancelot/ Ginevra; ou objetos misteriosos como o Graal deitaram essas “fábulas” no gosto geral. E assim se mantiveram com a Post-Vulgata, embora esta condense os enredos em torno da figura mítica de Artur e ponha de lado muitas das intrigas relativas ao Lancelot. Compreende três partes: Estoire del Saint Graal; Merlin; Queste del Saint Graal. Segundo Irene Freire Nunes, “é de uma versão tardia desta Queste que derivam as traduções ibéricas: Demanda do Santo Graal em português e Demanda del Sancto Grial em castelhano”2. Sem contar que ainda temos um “ciclo” paralelo, o do Tristan en Prose, cujas personagens circulam livremente pela Vulgata e pela Post-Vulgata, em perfeita familiaridade com seus pares. É bom registrar que a coesão desses ciclos não compromete a autonomia das partes, pois cada título tem existência independente, embora sua referência ao conjunto – principalmente no que diz respeito à linhagem dos cavaleiros – ajude a esclarecer passagens obscuras ou a identificar personagens misteriosas. Nos ciclos seguintes, quinhentistas, que inauguram novas gerações de heróis, os laços entre as obras estreitam-se, porque cada “continuação” procura contar a história do filho do protagonista da saga anterior e assim sucessivamente3. A essa estratégia se costumam atribuir os ex1. Ver, a propósito, a Introdução de Irene Freire Nunes à sua edição de A Demanda do Santo Graal, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1995, pp. 7-14. 2. Idem, p. 10. 3. Cf. Palmeirim de Inglaterra, seleção, pref. e notas de M. Rodrigues Lapa, Lisboa, Textos Literários, 1960.

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cessos fantasiosos para que derivaram as novelas de cavalaria dos séculos XVI e XVII e a extensão às vezes desmedida que atingiram: era indispensável que as façanhas do filho superassem as do pai e que os obstáculos, portanto, fossem mais intransponíveis – ou seja, “maravilhosos”, miraculosos, mágicos, com gigantes, feiticeiros e animais fabulosos a cada página. Porém, o espelho mais imediato para o Palmeirim é o ciclo do Amadís de Gaula, narrativa cuja notoriedade não teve rivais na Península até o aparecimento do Quijote (1605; 1615), de Miguel de Cervantes. A complexa história editorial da obra – a que se poderia acrescentar a de sua paternidade – situa suas origens na primeira metade do século XIV4, com duas versões bem diferentes da que chegou até nós, esta datada de 1508 (Saragoça)5 e sob responsabilidade de Garci Rodríguez de Montalvo, nobre corregedor de Medina del Campo. Coube a ele a reformulação das versões anteriores (que eram em dois e três livros, respectivamente) e sua refundição em um texto completamente novo, agora acrescentado de um 4o livro, a que mais tarde o mesmo autor somou Sergas de Esplandián, 5o livro da série, cuja primeira edição conservada é de 15216. Com a história de Amadis e Oriana e a de seu filho Esplandián estava composto o “clã” de que brotaram, em momentos diversos, pelo menos outras sete continuações: Florisando (livro VI do Amadís), de Rui Páez de Ribera, 1510; Lisuarte de Grécia (livro VII do Amadís), de Floriano de Silva, que ignorou o Florisando e deu sequência às Sergas; com o mesmo título, Lisuarte de Grécia, Juan Diaz publica uma continuação do Florisando (livro VIII do Amadís), em 1526; Feliciano de Silva volta à carga e publica o Amadís de Grecia (livro IX do Amadis), em 1530, e Florisel de Niquea (livro X do Amadís), em 1532; ainda a Feliciano de Silva se deve o Rogel de Grecia, em duas partes (livro XI do Amadís), nome do protagonista dado a obras que seriam, na verdade, a III (1535) e IV (1551) partes do Florisel de Niquea; Pedro de Luján, continuando o Rogel de Grecia, publicou o Silves de La Selva (livro XII do Amadís), em 15467. Como se observa, a par de Montalvo, Feliciano de Silva (1491-1554) foi o mais prolífico “amadisiano” do século XVI. Ao lado da Crônica do Imperador Clarimundo (1522), de João de Barros, e do Memorial das Proezas da Segunda Távola Redonda (1567)8, de Jorge Ferreira de Vasconcelos, o Palmeirim de Inglaterra compõe os três títulos mais difundidos, dentre outros vários, 4. Garci Rodríguez de Montalvo, Amadís de Gaula, Juan Manuel Cacho Blecua (ed.), Madrid, Cátedra, 1987, 2 vols. Cf. o longo estudo introdutório por Cacho Blecua. 5. “Ningún investigador duda de que la edición de 1508 no fue la primera”, pois “antes de 1508 existieron al menos dos ediciones de Amadís”, e a nota prossegue com todas as informações acerca delas: Daniel Eisenberg e Maria Carmen Marín Pina, Bibliografia de los Libros de Caballerías Castellanos, Zaragoza, Prensas Universitarias de Zaragoza, 2000, p. 130, [634]. 6. Idem, p. 223 [1277], [1278]: também das Sergas de Esplandián há notícias de duas edições anteriores, uma de 1496 e outra de 1510. 7. De acordo com Isabel Romero Tabares, “La falta de sucesión cronológica en las distintas continuaciones de Amadís se debe a la desigual distribución de las obras y a la lentitud en las comunicaciones que impedían que los diferentes escritores tuvieran conocimiento de lo que se publicaba en otros lugares. Por otra parte, hay continuaciones cuyos argumentos pueden desarrollarse simultáneamente en el tiempo novelesco porque se refieren a diferentes personajes” (“Introducción” a Pedro de Luján, Silves de la Selva, Alcalá de Henares, Centro de Estudíos Cervantinos, 2004). 8. Convém lembrar que esta obra havia sido publicada em 1554, com o título Triunfos de Sagramor, edição desaparecida; portanto, não se sabe a razão da troca de títulos de uma edição a outra.

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dos que ficaram conhecidos por “novelas portuguesas de cavalaria” do século XVI – com as quais se dá a “nacionalização” do gênero em Portugal. A fortuna do ciclo dos Palmeirins é tão numerosa quanto a dos Amadises, com uma série de manuscritos que ainda não foram publicados9. Em linhas gerais, tem-se o seguinte quadro10:

O c i clo d os Pa lme i r i ns

Palmerín de Olivia (Francisco Vázquez?, 1511)

Primaleón (Francisco Vázquez?, 1512)

Palmeirim de Inglaterra (Francisco de Moraes, c. 1544)

(continuações manuscritas) Crônica de D. Duardos (3 partes)

Platir (Francisco Enciso Zárate?, 1533)

(continuações impressas) D. Duardos Segundo (Diogo Fernandes, 1587)

D. Clarisol de Bretanha (Baltasar Gonçalves Lobato, 1602)

O ciclo foi inaugurado pela obra anônima Palmerín de Olivia, publicada em Salamanca em 1511. Após brevíssimo intervalo de apenas seis meses, publicou-se a primeira sequência do livro, intitulada Libro Segundo del Emperador Palmerín, en que se Cuentan los Grandes y Hazañozos Fechos de Primaleón y Polendus, sus Fijos (Salamanca, 1512), obra que, a partir da edição de 1534, passou a simplesmente Primaleón. 9. O assunto foi muito bem estudado por Maria Carmen Marín Pina, “El Ciclo Español de los Palmerines”, Voz y Letra, vol. 7, n.2, 1996, pp. 3-27. Aurelio Vargas Díaz-Toledo apresenta uma síntese bastante informativa em sua edição do Palmerín de Ingalaterra (Libro I), Alcalá de Henares, Centro de Estudios Cervantinos, 2006, “Introducción”, pp. IX-XL. Ver, ainda, os artigos de Raúl Cesar Gouveia Fernandes, “Heranças Cavaleirescas: o Palmeirim de Inglaterra e seus Antecedentes”, em Lênia Márcia Mongelli (org.), E Fizerom Taes Maravilhas... Histórias de Cavaleiros e Cavalarias, Cotia, Ateliê Editorial, 2012, pp. 461-474; “As Continuações Manuscritas do Palmeirim de Inglaterra”, em Actas del XIII Congreso Internacional de la Asociación Hispánica de Literatura Medieval, Valladolid, Universidad de Valladolid, 2010, pp. 749-760. 10. Do quadro estão ausentes as contribuições italianas de Mambrino Roseo da Fabriano, que não tiveram re�percussão na Península Ibérica: cf. Anna Bognolo, “Il ‘Progetto Mambrino’: per un’ Esplorazione delle Traduzioni e Continuazioni Italiane dei Libros de Caballerías”, Rivista di Filologia e Letterature Ispaniche, vol. 6, 2003, pp. 190-202. Observe-se ainda que, no quadro, a disposição das obras em árvore não visa a indicar uma genealogia entre diferentes testemunhos, como de hábito na crítica textual; o objetivo é representar graficamente o encadeamento dos diversos livros que compõem o ciclo dos Palmeirins.

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A autoria dos dois livros é questão ainda em aberto. Embora muitos elementos apontem para a hipótese de um mesmo autor para ambos, Francisco Vázquez11, nenhum deles fornece indicações que permitam afirmá-lo com segurança. Apesar desta incerteza, o dado concreto é que eles gozaram de grande prestígio: o Palmerín de Olivia teve ao menos treze edições até o fim do século XVI, três delas no Exterior (duas em Veneza e uma em Évora), além de ter sido traduzido para diversas línguas (italiano, francês, inglês, alemão e holandês, já no século XVII); e o Primaleón foi impresso dez vezes, consideradas as duas edições estrangeiras (lisbonense e veneziana). Alguns episódios e temas deste último (entre os quais a famosa conquista do amor de Flérida por D. Duardos disfarçado de jardineiro) tiveram larga sobrevivência literária, servindo de sugestão, por exemplo, para o D. Duardos de Gil Vicente. Mas o inegável sucesso não impede reconhecer que a simplicidade inaugural do Palmerín de Olivia e do Primaleón distanciam-nos grandemente do tom elegante e doutrinal impresso por Montalvo ao Amadís de Gaula. Contudo, enfatize-se: as duas obras foram fundamentais no processo de consolidação do gênero. Escritas num momento em que principiava a voga dos livros de cavalarias quinhentistas, o autor do Palmerín de Olivia soube realizar sábia combinação entre elementos inspirados na matriz amadisiana e certas inovações que marcariam futuras obras congêneres: pela primeira vez, desloca o centro de gravidade das aventuras para Constantinopla (geografia secundária em obras anteriores, como o Tirant lo Blanc e o Amadís)12, e ainda introduz motivos até então desconhecidos no universo literário cavaleiresco – como o amor entre representantes de famílias inimigas (Primaleão e Gridônia)13. Nos capítulos finais do Primaleón, é sumariamente apresentada a trajetória de Platir, um dos filhos daquele herói. Nesta seção, prolonga-se sem qualquer necessidade uma narrativa que já se havia encaminhado para a conclusão, e a história de Platir torna-se enfadonha, praticamente inviabilizando o surgimento de novas sequências, porque os leitores já saberiam “o fim da história” pelo rápido resumo do Primaleón. Além disso, Platir era o quarto filho de Primaleão, o que contraria a primogenitura usual da linhagem cavaleiresca. Mas nem assim o ciclo dos Palmeirins foi interrompido: do mesmo Primaleón brotaram duas continuações paralelas, bifurcando-se – a primeira delas teria vida fugaz e pequena descendência; a outra, representada pelo Palmeirim de Inglaterra, geraria frutos até o início do século XVII. Em 1533 – mais de duas décadas depois do Primaleón, portanto – é publicada em Valladolid a terceira parte da série palmeiriniana, intitulada Platir. O autor do livro, que se crê ser Francisco Enciso Zárate, não hesita em alterar o final da obra anterior, 11. Cf. Maria Carmen Marín Pina, “Nuevos Datos Sobre Francisco Vásquez y Feliciano de Silva, Autores de Libros de Caballerías”, Journal of Hispanic Philology, vol. 15, n. 2, 1991, pp. 117-130; e ainda: L. Ferrario de Orduña, “‘Palmerín de Olivia’ y ‘Primaleón’. Algunas Observaciones Sobre su Autoría”, em Actas del VIII Congreso Internacional de la AHLM, Santander, Consejería de Cultura del Gobierno de Cantabria, 2000, pp. 718-728. 12. Luciana Stegagno Picchio, “Proto-história dos Palmeirins: a Corte de Constantinopla do Cligès ao Palmerín de Olivia”, A Lição do Texto. Filologia e Literatura. I – Idade Média, Lisboa, Edições 70, 1979, pp. 167-206. 13. Lembre-se que, quando surgiu o Palmerín de Olivia, estavam editados apenas os três primeiros títulos do ciclo dos Amadises (Amadís, Esplandián e Florisando), além de uma série de textos que estudos recentes não consideram representantes legítimos do gênero dos livros de cavalarias, tais como o Oliveros de Castilla ou o Henrique, Fijo de Doña Oliva, não acolhidos no rol da Bibliografía de los Libros de Caballerías Castellanos, op. cit.

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desmentindo-a abertamente: já no primeiro capítulo, após informar que o protagonista nascera no mesmo dia do falecimento de Palmeirim de Oliva, seu avô, o narrador observa: “aunque en Primaleón se tiene el contrario, ésta fue la verdad”. Numerosas outras retificações são inseridas por Enciso Zárate, como a mudança de nome de alguns personagens importantes: a esposa de Platir, por exemplo, que no Primaleón se chamava Sidela, agora é rebatizada Florinda. Platir parece ter sido recebido com relativa frieza pelos leitores espanhóis. Pode ser que o destaque conferido a Florinda – a qual, vestida de cavaleiro para resgatar o amado de um encantamento, protagoniza algumas aventuras e chega mesmo a conquistar o amor de outra donzela, sem que ela perceba tratar-se de mulher disfarçada14 – tenha desagradado ao público, ainda refratário a tentativas de renovação de um gênero que àquela altura estava no auge da popularidade. Mas se na Península Ibérica o Platir não voltou a ser editado depois de 1533, sua fortuna em Itália foi muito mais feliz. A tradução da obra, lançada em 1548, teve uma continuação protagonizada pelo filho de Platir, chamado Flortir, personagem já mencionado na obra castelhana de 1533. Embora os editores do Flortir apresentem a obra como tradução de original castelhano, não restam dúvidas de que o autor do livro seja Mambrino Roseo da Fabriano – o que implica reconhecer a existência de contribuições italianas ao ciclo dos Palmeirins15. Há notícias de diversas outras edições do conjunto Platir-Flortir realizadas na Itália até o início do século XVII16 – sucesso que não impediu, contudo, que eles ocupassem posição um tanto marginal no desenvolvimento da série. O famoso Palmeirim de Inglaterra – destinado a transplantar o ciclo para Portugal – liga-se diretamente ao Primaleón, desconsiderando por completo as alterações sugeridas no Platir. O protagonista das novas aventuras será seu primo Palmeirim, filho de D. Duardos e Flérida, neto do iniciador da estirpe, Palmeirim de Oliva. A diferença entre eles é que Platir descende do velho Imperador de Constantinopla por linha masculina, e no caso de Palmeirim, a descendência ocorre por via feminina. Por que esta insólita preferência pela herança matrilinear? Se no Palmeirim de Inglaterra Francisco de Moraes forjou Florendos (protagonista das aventuras no castelo de Miraguarda e filho de Primaleão, representando, portanto, a linhagem masculina), personagem que não estava no final do Primaleón, por que não conceber também um outro Palmeirim filho de Primaleão? Talvez a inovação seja fruto da predileção do autor pela figura de D. Duardos: como se sabe, este, príncipe de Inglaterra, e Primaleão, herdeiro do reino de Constantinopla, dividem o posto de protagonistas do Primaleón. Cavaleiros igualmente imbatíveis, distingue-se Primaleão pela valentia e D. Duardos, por ser amante perfeito. Diferença sutil, mas que, reforçada pela difusão do D. Duardos de Gil Vicente, talvez justifique a subversão introduzida no desenvolvimento de um ciclo de livros de cavalarias. 14. O motivo da donzela travestida de cavaleiro comparece também nos Infortúnios Trágicos da Constante Florinda, edição de Adma Muhana, São Paulo, Globo, 2006. Por enquanto, a simples coincidência de nomes não autoriza pensar que se trata da mesma personagem. 15. Verifiquem-se, a respeito da presença literária da Itália no Portugal do Renascimento, os trabalhos de Isabel Almeida, indicados, aqui, na Bibliografia Específica. 16. Cf. Maria Carmen Marín Pina em sua “Introducción” ao Platir, Alcalá de Henares, Centro de Estudios Cervantinos, 1997.

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O Palmeirim de Inglaterra foi objeto de acalorada contenda entre portugueses e espanhóis que reivindicavam a paternidade da obra. A querela ocupou os estudiosos durante tantos anos que não se pode deixar de referi-la, embora a questão esteja definitivamente encerrada há mais de um século, precisamente desde 1904, quando William Edward Purser publicou o seu Palmerin of England. Some Remarks on this Romance and on the Controversy Concerning its Authorship17. Hoje não restam dúvidas de que o autor desse Palmeirim seja mesmo o português Francisco de Moraes, o qual deixou na obra inclusive registro de elementos autobiográficos, como por exemplo no “episódio das damas francesas”18. Se em Espanha o Palmeirim foi impresso uma única vez (Toledo, 1547), em Portugal há notícias de ao menos três edições no século XVI, embora até há pouco se conhecessem exemplares de apenas duas: a de 1567 (Évora, André de Burgos) e a de 1592 (Lisboa, António Álvares). É provável, contudo, que a obra tenha sido impressa pela primeira vez em 1544, edição recentemente descoberta, em português, mas talvez realizada fora de Portugal, em França19. Além de ter tido três impressões – fato único no corpus dos livros de cavalarias portugueses –, o prestígio da obra no Portugal de Quinhentos é atestado por referências de Camões a Francisco de Moraes e a Miraguarda, e pelo juízo formulado pelo cura cervantino na sempre lembrada cena do expurgo da biblioteca de D. Quixote: [...] e essa palma de Inglaterra se guarde e conserve como coisa única, e se faça para ela outro cofre, como o que achou Alexandre nos despojos de Dario, que o destinou para nele se guardarem as obras do poeta Homero. Este livro, senhor compadre, tem autoridade por duas coisas: primeiro, porque é de si muito bom; segundo, por ter sido seu autor um discreto rei de Portugal. Todas as aventuras do castelo de Miraguarda são boníssimas e de grande artifício; as razões, cortesãs e claras, conformes sempre ao decoro de quem fala; tudo com muita propriedade e entendimento20.

A difusão do Palmeirim na Europa também foi considerável. Entre 1553 e 1554 surge a tradução italiana; provavelmente em 1558, houve uma continuação da obra, composta por Mambrino Roseo da Fabriano; na França, a tradução do Palmeirim foi 17. O leitor interessado no longo percurso dessa velha discussão pode encontrá-la na cuidadosa Introdução de Aurelio Vargas Díaz-Toledo à sua edição do Palmeirim, citada na nota 9. Para a mesma finalidade, consulte-se também o trabalho de Margarida Alpalhão, que tomou por base a edição portuguesa do Palmeirim de 1544, anterior portanto à toledana de 1547: O Amor nos Livros de Cavalarias – o Palmeirim de Inglaterra de Francisco de Moraes: Edição e Estudo, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2008 (Dissertação policopiada). 18. Cf., nesta edição, “Informações Biográficas”. 19. Ver o estudo introdutório de Margarida Alpalhão à obra, citado acima, na nota 17. 20. Miguel de Cervantes Saavedra, O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, tradutores: Viscondes de Castilho e de Azevedo; comentário e notas de Artur Neves; com ilustrações de Gustavo Doré, edição comemorativa do 350o aniversário de publicação do Quixote, São Paulo, Editora Tietê, 1955, 4 vols. Vol. I, cap. VI, pp. 36-37. [... y esa palma de Inglaterra se guarde y se conserve como a cosa única y se haga para ello otra caja como la que halló Alejandro en los despojos de Darío, que la diputó para guardar en ella las obras del poeta Homero. Este libro, señor compadre, tiene autoridad por dos cosas: la una, porque él por sí es muy bueno, y la otra, porque es fama que le compuso un discreto rey de Portugal. Todas las aventuras del castillo de Miraguarda son bonísimas y de grande artifiício; las razones, cortesanas y claras, que guardan y miran el decoro del que habla con mucha propriedad y entendimento. Don Quijote de la Mancha, edición y notas de Martín de Riquer, 15a ed. Barcelona, Editorial Juventud, 2000, I Parte, cap. VI, p. 71.]

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editada em 1552-1553; em Inglaterra, publicou-se o livro nas últimas décadas do século XVI; em 1602, foi lançada a tradução da sequência italiana do Palmeirim. O interesse pelo livro nunca desapareceu de todo, fato confirmado pelas reedições portuguesas de 1786 e 1852, além da brasileira de 1946. Apesar disso, a maior parte da bibliografia crítica que lhe foi dedicada ficou circunscrita à polêmica da autoria; resolvida a contenda em favor dos portugueses, esfriou o interesse. Em 1587, portanto cerca de quarenta anos depois da primeira edição do livro de Francisco de Moraes, é editada a Terceira e Quarta Parte da Crônica de Palmeirim de Inglaterra, na qual se Tratam as Grandes Cavalarias de seu Filho o Príncipe D. Duardos Segundo, de Diogo Fernandes (Lisboa, Marcos Borges), reeditada em 1604 (Lisboa, Jorge Rodrigues)21. Em 1602, Baltasar Gonçalves Lobato traz a lume sua continuação do ciclo, retomando a trama do ponto deixado por Diogo Fernandes, com a Quinta e Sexta Parte de Palmeirim de Inglaterra. Crônica do Famoso Príncipe D. Clarisol de Bretanha (Lisboa, Jorge Rodrigues). Sobre os dois autores, Lobato e Fernandes, há pouquíssimas informações; essa escassez sugere que ambos não teriam tido acesso ao restrito círculo cortesão como João de Barros, Francisco de Moraes e Jorge Ferreira de Vasconcelos, que privavam com altos personagens da corte portuguesa e até com príncipes e reis. Estaríamos diante de uma democratização do gênero?22 O D. Duardos Segundo e o D. Clarisol, como obras tardias, evidenciam já alterações no gênero. Talvez a mais saliente delas seja o pronunciado gosto pelo excepcional, pelo extraordinário. Abundam referências a animais de regiões longínquas, como o tigre e o elefante, e também os marcos geográficos são expandidos, abrangendo a África. Aparecem figuras da mitologia clássica, numa fusão de estilos que só faz acentuar os contrastes. Embora a necessidade de superação dos antecedentes seja uma constante nos livros de cavalarias, conforme vimos, os processos de amplificação e hipérbole das aventuras narradas parecem ter atingido o limite. Exemplifique-se com o Clarisol de Gonçalves Lobato, posto a combater com todos os famosos cavaleiros da Antiguidade e com personagens mitológicos; vencendo-os, o herói legitima-se perante uma galeria de antepassados que já haviam realizado proezas insuperáveis. Tal exotismo pode apontar certa saturação do público, que, massacrado por doses maciças de bizarria, talvez precisasse de fórmulas cada vez mais extravagantes para despertar do entorpecimento. Não se perca de vista que, quando o Clarisol foi lançado, a prosa de ficção tomava novos rumos, como o da novela pastoril, que contribuiu para suplantar a voga dos livros de cavalarias em Portugal no início do século XVII23. 21. É preciso notar que o Palmeirim de Inglaterra já era dividido em duas partes, daí Diogo Fernandes continuá-lo a partir da terceira. Além disso, não se deve confundir o D. Duardos Segundo, de Diogo Fernandes, com a Crônica de D. Duardos, obra manuscrita e anônima, recentemente editada: Raúl Cesar Gouveia Fernandes, Crônica de D. Duardos (Primeira Parte). Cód. BNL 12904. Edição e Estudo,Tese de Doutoramento apresentada à Universidade de São Paulo (USP), 2006, 2 vols. (policopiada). A segunda e terceira partes desta obra também tiveram edição recente: Nanci Romero, Edição da Crônica de Dom Duardos (Segunda e Terceira Partes), Tese de Doutoramento apresentada à Universidade de São Paulo (USP), 2012, 3 vols. (policopiada). 22. É a hipótese levantada por Isabel Almeida: Livros Portugueses de Cavalarias, do Renascimento ao Maneirismo, Lisboa, Universidade de Lisboa, 1998, pp. 65-67 (tese policopiada). 23. Embora o gênero já fosse cultivado em Espanha desde meados do século XVI, a novela pastoril só se afirma nas letras portuguesas a partir da publicação de A Primavera, de Francisco Rodrigues Lobo, em 1601. Cf. a “Introdução” de Maria Lucília Gonçalves Pires a sua edição de A Primavera, Lisboa, Vega, 2003, pp. 7-11.

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informações biográficas á muito os investigadores vêm pesquisando sobre a vida e a obra de Francisco de Moraes e, apesar dos dados que se foram aos poucos acrescentando a essa biografia desde o século XVII, e de algumas fontes documentais novas, muitas informações continuam nebulosas – principalmente por discordâncias de datação por parte dos estudiosos e por desencontros decorrentes da homonímia, tão comum ao tempo. Terá nascido por volta de 1500 – em Bragança? em Lisboa?, e terá morrido em torno de 1572 – em Évora? em Lisboa? Complica o esforço dessa reconstituição a diversidade documental à disposição dos investigadores – de obras genealógicas à correspondência autógrafa, de papéis de chancelaria ao romance novelesco que celebrizou o autor, de registros paroquiais a notações descritivas. Nada pode ser subestimado, quando menos pelo teor muito pessoal quer de sua ficção, quer de seus escritos “oficiais”, tantas vezes estreitamente entrelaçados. Sabe-se com certeza que a maior parte de sua vida Moraes a passou no meio cortesão. Foi criado em casa de D. António de Noronha, 1o conde de Linhares, a cuja família esteve sempre ligado, principalmente ao filho do conde, D. Francisco de Noronha; passou depois ao serviço do rei, ocupando funções de “moço de câmara” de D. Duarte, um dos filhos de D. Manuel, e de seu irmão D. Afonso. Sua ascensão social foi gradativa: de “escudeiro-fidalgo”1, temo-lo, em 1564, na posição de “cavaleiro fidalgo” (talvez por missões no Oriente?) em casa do cardeal Infante D. Henrique, onde obteve o cargo de “recebedor do almoxarifado da cidade de Évora”. Dois fatos, datados, acrescidos das circunstâncias que os cercam, têm sido considerados os mais relevantes para reconstituir a trajetória de Francisco de Moraes: trata-se das duas viagens que fez à França, a primeira, de 1540 a 1544; a segunda, de 1547 a 1548. Há inclusive quem sustente que uma parte do Palmeirim de Inglaterra possa ter sido escrita em terras francesas2. Quanto ao primeiro deslocamento, viajou como secretário de D. Francisco de Noronha, o qual estava como embaixador de D. João III 1. Ver as considerações de José Hermano Saraiva sobre esta posição social: “Camões, Escudeiro”, A Vida Ignorada de Camões, Lisboa, Publicações Europa-América, 1978, pp. 297-323. 2. “He wrote about one quarter of the book before going to France, and the rest in that country” (William Edward Purser, Palmerin of England. Some Remarks on This Romance and on the Controversy Concerning its Authorship, London, Browne and Nolan, 1904, p. VI).

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na corte francesa de Francisco I; quanto ao segundo, integrou novamente a comitiva do conde, agora em missão de enviado extraordinário à França. No princípio da década de cinquenta, esteve em Ceuta, como de costume acompanhando D. Francisco de Noronha. O episódio tornou-se inesquecível, porque nesta viagem estava também o jovem D. António de Noronha, de apenas dezessete anos, filho do conde, que ali viria a perecer, em 1553, ao lado do tio capitão, D. Pedro de Meneses, vítimas de armas mouras. Camões, contemporâneo de Francisco de Moraes3, fora preceptor do rapaz e à sua memória dedicou textos como o soneto “Em Flor vos Arrancou, de Então Crescida” e a elegia “Aquela que de Amor Desmedido”4, externando profundo sentimento de pesar pela morte traumática que abalou a corte portuguesa. Das várias obras de Francisco de Moraes de que se tem notícia, as que chegaram aos dias de hoje são em número pequeno e nem sempre em bom estado de conservação. Cartas, relações informativas, diálogos, a Desculpa de uns Amores (conforme se resume o longo título), alguma poesia e uma densa narrativa cavaleiresca de entroncamento cíclico – eis a sua produção conhecida até o momento. Se o Palmeirim de Inglaterra passou muito justamente à tradição como dos melhores exemplares do gênero, cartas e diálogos não devem ser igualmente esquecidos: não só testemunham a extraordinária habilidade estilística de Moraes, sua precisão no manuseio da língua, como também oferecem um saboroso painel da vida áulica quinhentista, com suas festas e suas disputas – por poder, por terras, por amores. O trânsito de Francisco de Moraes entre as cortes de Portugal e França e sua estreita convivência com a nobreza fizeram dele um observador sagaz e não raras vezes certeiramente crítico. Sua obra epistolar é poderosamente imagética – e três das missivas autógrafas são bastante significativas: 1. Em uma carta de 1542 a Fernão de Álvares, que a editora identifica como sendo “sogro de Francisco de Noronha” e com “função de Tesoureiro-mor”5, Moraes descreve uma festa de Carnaval na corte de Francisco I (1494-1547), realizada assim “que a corte de França veio ter a esta cidade de Paris”, em meio às indisposições contra as pretensões imperiais de Carlos V e à expectativa de que “o Turco virá este ano, com grogíssima6 armada, que por aqui dizem que tem feita em Costantinopla”7 – tal qual no desfecho do Palmeirim. Impressiona o detalhismo na descrição das indumentárias e dos trajes carnavalescos, dos costumes típicos da galanteria amorosa, da garridice do Rei e de alguns de seus privados, dos jogos de entretenimento e das justas. Todo esse aparato, contudo, não fechou os olhos do atento espectador para os “trajos de muito custo, porque nisto vai esta corte de monte a monte, especialmente no vestir das molheres, que é tam sem ordem, que me afirmam 3. José Maria Rodrigues: “O valor literário do Palmeirim, a circunstância de haver esta obra sido dedicada à infanta D. Maria e o empregar-se nela a linguagem apropriada aos feitos épicos explicam facilmente a in­ fluência que da sua leitura se nota na maioria das estâncias dos Lusíadas” (“Camões e Francisco de Morais”, Fontes dos Lusíadas, 2. ed., Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa, 1979, pp. 401-509). 4. Luís de Camões, Rimas, texto estabelecido e prefaciado por Álvaro J. da Costa Pimpão, Coimbra, Almedina, 1994, pp. 191 e 237, respectivamente. 5. Margarida Alpalhão, “Um Texto Desconhecido de Francisco de Moraes? Uma Carta a Fernão Álvares”, Instituto de Estudos Medievais, Lisboa, FCSH-UNL, 2007, p. 5. 6. Grogíssima: grossíssima; enorme, muito grande. 7. Margarida Alpalhão, op. cit., p. 9.

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que por aqui se vaza todo o tesouro de França”8. 2. Não menos festiva foi outra carta do ano anterior, sobre o casamento do Duque de Clèves com a Princesa de Navarra9, escrita a D. Francisco de Noronha, atendendo a reclamações dele sobre a escassez de notícias acerca de uma das cortes mais poderosas da Europa de então. Missas, cantorias, saraus, justas e mais justas – que em nada ficam a dever a tantas batalhas semelhantes desenvolvidas nos livros de cavalarias – ocuparam vários dias de suntuosidade e de excessos, pompa que suscitou a admiração de Moraes e a inevitável comparação com as diferenças de hábitos relativamente a Portugal. Mas a nota ácida lá está, condenando o enlace “forçado” (por alianças políticas) e a prepotência real: “... quanto mais este cazamento, a que achão mil inconvenientes para sempre o duvidarem, e comfeção que a nenhũa das partes vem bem. Da Rainha de Navarra ouvi sempre dizer que muito contra sua vontade o consentira, mas como El-Rei de França faz tudo o que quer, em seu reino hé absoluto, não há contradiser-lhe couza de sua vontade...”. Tal franqueza beira a descortesia, quando trata das mulheres: “Trouve mais nove donzelas vestidas à italiana, em palafréns russos guarnessidos por milagre e elas tão ricamente ataviadas de ouro e pedraria quanto me eu não atrevo a gavar, nem também poso acabar comiguo de dizer bem destes, mas quá me ficou para vingança pareserem-me todas feas”10. A partir de certa altura (p. 281), os comentários quase configuram um “tratado de cavalaria”, a que não falta sequer o “ermitão”, que, a modo do Velho do Restelo camoniano, admoesta contra “os maos custumes que algu[n]s com soberba hofania querião pôr em seo reino”. 3. A terceira carta é de 155011 e a que mais notoriedade teve, por relatar um torneio em honra do príncipe D. João, em Xabregas, sítio de Lisboa, festividade de que Jorge Ferreira de Vasconcelos ofereceu uma versão em seu Memorial das Proezas da Segunda Távola Redonda12 – testemunho contundente da estreita afinidade entre realidade e ficção na Península quinhentista. A destinatária, “Raynha de França”, era D. Leonor de Áustria, irmã do imperador Carlos V (1500-1558) – arqui-inimigo de Francisco I – e ligada a Portugal por laços estreitíssimos: viúva de D. Manuel, madrasta de D. João III e mãe da infanta D. Maria13, a quem está dedicada a edição do Palmeirim de 156714. Se o “tom” geral da carta é o de um ufanismo patriótico nada excepcional em período de Descobrimentos e Expansionismos; se a descrição do torneio ombreia as mirabilia postas em moda pela matéria arturiana, o ponto alto da carta é a vivacidade do olhar que Moraes – à Fernão Lopes – deita sobre a multi  8. Idem, p. 11.   9. Aurelio Vargas Díaz-Toledo, “Recuperação de um Texto de Francisco de Moraes: Relação das Festas que Francisco I Fez das Bodas do Duque de Clèves com a Princesa de Navarra no Ano de 1541”, Península – Revista de Estudos Ibéricos, 4:267-300, 2007. Na apresentação ao texto, o editor situa-o no contexto histórico e político do momento, envolvendo França, Espanha e Portugal. 10. Idem, pp. 281 e 282, respectivamente. 11. Data defendida pelo editor: António Dias Miguel, “Carta que Francisco de Morais Enviou a Raynha de França em que lhe Escreve os Tor/neos, e Festa que se fes em Xabregas era / de 155...”, Arquivos do Centro Cultural Português, Lisboa, XXXVII:127-154, 1998. 12. Jorge Ferreira de Vasconcelos, Memorial das Proezas da Segunda Távola Redonda, impresso pela primeira vez no anno de 1567, 2. ed. Lisboa, Typ. do Panorama, 1867, cap. XLVII. 13. Atualmente, deve-se a Isabel Almeida o mais completo estudo biobibliográfico sobre Francisco de Moraes. Cf. “Morais, Francisco de”, Dicionário de Luís de Camões, Vítor Aguiar e Silva (coord.), Lisboa, Caminho, 2011, pp. 607-613. 14. Cf., nesta edição, p. 77.

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dão, apinhada, irrequieta e curiosa em torno dos festeiros combatentes luxuosamente paramentados, buscando o melhor ângulo de visão, por mar ou por terra, para nada perder das representações. A chegada do Príncipe é apoteótica, [...] porque alem do povo, e nobres com geral contentamento, folgarem de ver hũ Princepe seu natural señor filho de El Rey tão amado de todos, em idade de treze annos armado e com espírito e animo tão vivo que estavão enchergando nelle grandes maravilhas, todas as luminárias se acenderão de novo, e o Monte dos frades com sua claridade nacida de vivas chamas, descobrio da outra parte do mar os outeiros, e serras que com as trevas da noite estavão cubertas, o ar foi subitamente coalhado com tiros de fogo sahindo de todas as partes muitos foguetes com tamanho impeto e fúria que parecia quererem conquistar os Ceos15.

Na Desculpa de uns Amores16, com edição póstuma de 1624, Francisco de Moraes assume perspectiva autobiográfica, confessional, introspectiva e fala de seus amores frustrados – passagem curiosamente inserta no Palmeirim e conhecida como o “episódio das damas francesas”, capítulos de 137 a 197. A sua dame sans merci, uma das acompanhantes da Rainha Dona Leonor, é a jovem Claudia Blosset de Torcy, que o rejeita publicamente na corte francesa, mesmo estando ele “ajoelhado em terra” diante dela, num esforço para vencer a timidez: “Não sei se de ufana de si mesma, se do lugar onde estava, se de enfadada de me não entender, me disse que não era contente que a amasse tanto, mandando-me que o não fizesse dali por diante”. Para completar a humilhação, a negativa vem acompanhada de zombaria: “... e virando o rosto para uma dama, que estava da outra parte, me deixou e praticou com ela; parece-me a mim que à minha custa”17. Dentro da mais legítima tradição das cantigas de amor trovadorescas e do modelo cortês, Moraes discorre sobre os infortúnios de Amor e seus contrários, no caso agravados pela dificuldade de comunicação do par – porque nem ela entendia bem o português, nem ele o francês –, colocando-o a um passo do ridículo. Humildemente ele o reconhece, não sem certa perplexidade: “Não sei que isto foi, que em idade já desviada de pensamentos ociosos cobrei um cuidado novo, que, além de me atormentar mais do que eu me atrevo a sofrer, cercou-me de desconfianças, e temor, e pouca esperança, para que de nenhuma parte a vida achasse repouso”. E prossegue: “Não cuidava que em tal idade amor tivesse poder...”18. Diz a tradição que em paixão serôdia o desengano é maior, e no Palmeirim Moraes pôde externar uma espécie de réplica à recusa feminina, ao oferecer um retrato nada simpático de Torsi ou ao expor sua dose de misoginia no trato com as mulheres em geral – sintetizadas na bela Miraguarda e sua indiferença para com seus fiéis cortejadores. Assinale-se, contudo, que esse vão arroubo de Francisco de Moraes não o impediu de deixar numerosa descendência do casamento com Bárbara Madeira. 15. Antonio Dias Miguel, op. cit., p. 151. 16. Cujo título completo é Desculpa de uns Amores que Tinha em Paris com uma Dama Francesa da Rainha Dona ­Leonor, per Nome Torsi, Sendo Português, pela qual Fez a História das Damas Francesas no seu Palmeirim. Este texto consta do Apêndice da edição de Geraldo Ulhoa Cintra do Palmeirim de Inglaterra, São Paulo, Anchieta, 1946, pp. 890-897. Citaremos por esta edição. 17. Idem, p. 894. 18. Idem, p. 891.

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Com os Diálogos19, editados pela primeira vez em Évora em 1624, Francisco de Moraes envereda para uma outra direção: a dos colóquios entre pessoas que discorrem sobre diversos temas – políticos, literários, filosóficos, morais – como pretexto para abordar assuntos polêmicos. Afinal, conversas assim são herança clássica, em que pese às diferenças, e Francisco Rodrigues Lobo, em Corte na Aldeia (1618), iria colocar a estratégia na ordem do dia. Os três diálogos de Moraes são igualmente instigantes e, mais uma vez, apontam o cortesão bem informado: no Diálogo I falam um “fidalgo” e um “escudeiro”20; cada um a seu modo e defendendo acirradamente o próprio ponto de vista, insere no centro do debate a pergunta “o que é que confere ‘fidalguia’ a alguém?” Ela é adquirida por “herança de sangue”, através de um “tronco ilustre”, da “pureza da linhagem”? Ou é mais legítimo obtê-la por serviços prestados à coroa? Às respostas e argumentos que vão sendo formulados por um e outro não faltam as alfinetadas irônicas, bem ao gosto de Moraes, como a que dispara audaciosamente o escudeiro: “... olhai que neste nosso Portugal a cousa com que mais injúria cuidais que fazeis a um homem, é com chamar-lhe escudeiro; e até nisto empeceis a vós mesmos: porque já não há algum que se não chame fidalgo...” – remoque semelhante aos que iriam soar tão ferinamente, mais tarde, na pena de um Camilo Castelo Branco. E esse escudeiro-letrado vai ainda além, quando lembra os deveres morais implícitos a uma “nobreza” de extração antiga, alcançada “ou per obras imortais, dignas de fama e glórias, ou por vida qualificada em virtudes”. No fundo, com isto concorda também o fidalgo, embora defendendo que pretensões tais deveriam ser vedadas a escudeiros. No Diálogo II a disputa é entre um “cavaleiro” e um “doutor”, instrumentos para colocar frente a frente o valor de conquista pelas “armas” ou pelas “letras”. E logo surge a pergunta: “... quem tem mais merecimento ante a majestade real, a fidalguia ociosa exercitada com vaidades, ou aqueles que, por sua discrição e letras, sustentam o reino em tranquilidade e paz...”? O que está em causa, no discurso do cavaleiro, são aqueles que, “por defesa da pátria e serviço de seu príncipe oferecem as vidas à morte, e trazem assinados das armas de seus imigos, e as mãos calejadas de pelejar”; já o doutor chama de “pais da Pátria” os que evitam “derramamento de sangue”, “pois está claro que a discrição de uns fez ganhar a fama a outros”. Também aqui divertidas ironias são postas pelo cavaleiro: “Bem aviado estaria quem com palavras esperasse vencer-vos: u’a mercê me fizesse Deus, e morresse logo, que visse um batalhão de turcos, e um de doutores, para ver como passavam”. Sisudo, o doutor rebate: “Um de vós outros, se peleja, peleja por si só, mas o doutor, que governa, peleja por todo o povo...”. Idas e vindas não os fazem chegar a resultado harmônico e conciliatório: “... até Túlio, que nas letras foi único, e na paz governou por excelência, olhai na guerra que mostras deu de si; e enfim que tão contrárias são as armas das letras, e dos juízos mui aparelhados a elas, quanto o é a guerra da paz”. Recorrendo a uma espécie de paródia do amor refinado, dito “cortês”, no Diálogo III conversam “uma regateira” e “um moço de estribeira”, em que Moraes se revela 19. Também publicados em Apêndice à edição do Palmeirim por Geraldo Ulhoa Cintra, op. cit. 20. O texto acaba de ser criticamente editado por Aurelio Vargas Díaz-Toledo, que o data entre 1541-1543: “O Diálogo Entre um Fidalgo e um Escudeiro, de Francisco de Moraes”, eHumanista: vol. 22, 2012, pp. 476-515 (HTTP://www.ehumanista.ucsb.edu/volumes/volume_22/index.shtml).

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o excelente retratista que é, à maneira de Gil Vicente, definindo, pela linguagem, a classe social dos interlocutores e os curiosos percalços de sua vida amorosa. À guisa de exemplo, atente-se para esta fala da regateira, dando ao moço suas “provas” de fidelidade por meio de cartas que lhe teria escrito e que ele não recebera: Pois digo-vos que eram as melhores do mundo. Fui ao pelourinho velho, e fez-mas Burgos o pequenino, que crede leva as lampas a todos: pela primeira lhe dei cinco reais, depois me fez outra por dez, que levava já mil máguas, quando veio a de vintém, houvéreis já dó de mim, escrita de uma banda e da outra com tinta mais negra que um azeviche, que era para mover as pedras.

Ou para esta resposta do moço, pressuroso em “provar” também sua persistência e, galante, em ressaltar os encantos da amada – descrição que é uma espécie de reverso da ambiência que se viu nas cartas: Ia-me muitas vezes à ribeira, ou na praça de Almeirim (parece-me que o vejo agora!), via-vos entre as outras, parecíeis senhora delas, vestida de fraldilha azul, com refegos muito altos, mantilha tirada da amostra do pano, cingidouro de cataçol com maçanetas nos cabos, colarzinho de búfaro tomado por diante com fita de seda encarnada, camisa de gorgeira lavrada de prêto, vossas botinas muito justas com vossos alquorques, que parece que não púnheis pé no chão; eu com isto finava-me, chovia, se Deus dava água, e eu estava em corpo com calças de gardalate branco, e barguilha debruada de veludo preto, sapatinhos abrochados, a lama perto do artelho, e, por me não conhecerem, embuçava-me com a manga do pelote.

Em suma, mesmo que, para além do Palmeirim de Inglaterra, seja numericamente acanhada a obra de Francisco de Moraes que nos chegou, importa reconhecer a qualidade dela – não só literária como histórica. E talvez represente uma oportunidade nada desprezível para se constatar, de fato, a fragilidade de fronteiras entre realidade e fantasia quando estão em foco os romances de cavalaria.

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