A fórmula secreta

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a f贸rmula secreta


universidade estadual de campinas Reitor Fernando Ferreira Costa Coordenador Geral da Universidade Edgar Salvadori De Decca

Conselho Editorial Presidente Paulo Franchetti Alcir Pécora – Christiano Lyra Filho José A. R. Gontijo – José Roberto Zan Marcelo Knobel – Marco Antonio Zago Sedi Hirano – Silvia Hunold Lara

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a fórmula secreta

tartaglia, cardano e o duelo matemático que inflamou a itália da renascença

fabio toscano

Tradução

Letizia Zini Antunes


Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.

ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação T639f

Toscano, Fabio. A fórmula secreta: Tartaglia, Cardano e o duelo matemático que inflamou a Itália da Renascença / Fabio Toscano; tradução: Letizia Zini Antunes. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2012. 1. Tartaglia, Niccolò, m. 1557. 2. Cardano, Gerolamo. 3. Álgebra. 4. Álgebra – História. 5. Matemática - História. I. Título.

cdd 512 512.009 isbn 978-85-268-0989-5 510.9 Índices para catálogo sistemático:

1. 2. 3. 4. 5.

Tartaglia, Niccolò, m. 1557 Cardano, Gerolamo Álgebra Álgebra – História Matemática – História

512 512 512 512.009 510.9

Título original: La formula segreta: Tartaglia, Cardano e il duello matematico che infiammò I’Italia del Rinascimento Copyright © by 2009 Alpha Test S.rl. – Sironi Editore – Italy Copyright © by Fabio Toscano Copyright © 2012 by Editora da Unicamp

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meio de cultura Nosso cotidiano é permeado de ciência e tecnologia. Mas o que é ciência? Como é feita? Quem a faz? E a tecnologia? A coleção Meio de Cultura traz textos que, em linguagem acessível a todos (e às vezes divertida), apre­ sentam os caminhos e os descaminhos da ciência e da tecnologia. Neles encontramos histórias de sucessos e fracassos, contradições e embates, enigmas e polêmicas da ciência e da tecnologia na sociedade — uma bússola para explorar a cultura científica até as fronteiras do saber.



sumário

introdução.................................................................................................................................................

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1 o professor de cálculo. .............................................................................................. 13 2 a regra da coisa....................................................................................................................... 45 3 o desafio veneziano........................................................................................................... 83 4 convite para milão............................................................................................................. 113 5 o caderno do velho bolonhês........................................................................ 157 6 o último duelo............................................................................................................................ 187

bibliografia.............................................................................................................................................. 233



introdução

A era da matemática começou na primeira metade do século XVI, com as descobertas realizadas por um grupo pequeno e extraordinário de estudiosos italianos. Suas contribuições fo­ ram decisivas especialmente para o renascimento imperioso da “grande arte”, a álgebra, que não registrava progressos efetivos desde os tempos dos matemáticos da Antiguidade, cerca de três mil anos antes. Dos novos resultados, ao contrário, brotariam logo inú­ meros e vigorosos progressos para a álgebra, dando início a uma marcha irrefreável que, ao longo do tempo, levou essa dis­ ciplina a assumir um papel cada vez mais importante no âm­ bito do pensamento matemático e do conhecimento científico em geral. Seria um erro supor que um acontecimento do porte do reflorescimento da álgebra durante a Renascença italiana pu­ desse despertar apenas o interesse dos especialistas desse setor ou dos historiadores da ciência. Na realidade, o que é contado 9


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neste livro não apenas representa um momento-chave para a evolução da matemática, mas também abrange um conjunto de fatos tão surpreendentes e apaixonantes que podem suscitar, acreditamos, a curiosidade até mesmo do público em geral: histórias ricas de situações romanceadas — intrigas, segredos, disputas eruditas acirradíssimas — com personagens fascinan­ tes, geniais e extravagantes, capazes de sobressair, em sua épo­ ca, tanto por suas virtudes intelectuais como por suas fraquezas humanas. No centro da narrativa está um momento crucial da his­ tória da matemática: a descoberta da fórmula resolutiva das equações algébricas de terceiro grau e as demais descobertas que, imediatamente, decorreram dela, entrelaçadas com os en­ redos aventurosos da vida dos protagonistas, dentre os quais se destacam os nomes altissonantes de Niccolò Tartaglia e Gero­ lamo Cardano. Todos esses fatos podem ser encontrados — resumidos ou apenas mencionados — em diversos escritos. Entretanto, pen­ samos que mereceriam o espaço de um conto verdadeiro, cheio de detalhes, que fizesse justiça aos protagonistas, à sua genia­ lidade ou a suas fraquezas (fica por conta do leitor avaliar em que medida isso se aplica a cada um deles) e que representasse a relevância do assunto, sem a pretensão de esgotá-lo em todos os seus aspectos. Procuramos condensar a narrativa em um número de páginas não excessivo, focalizando a atenção espe­ cialmente nos assuntos que consideramos mais significativos, interessantes e sugestivos em relação aos objetivos do livro. Por isso, em vários momentos, mediante citações, passamos a pa­ lavra às personagens por acharmos que, naquelas passagens, seus testemunhos diretos seriam muito mais penetrantes e efi­ cazes do que qualquer paráfrase. Além disso, por termos con­ 10


introdução

cebido e redigido o livro pensando nos leitores desprovidos de conhecimentos técnicos específicos, buscamos explicar as questões e as fórmulas matemáticas referidas no texto numa linguagem que fosse, dentro do possível, plana, simples e clara. Ao encerrar esta breve introdução, gostaria de agradecer de todo o coração a Paola Borgonovo, por seu excelente e es­ crupuloso trabalho de revisão, que melhorou sensivelmente a qualidade do texto, conferindo-lhe leveza e corrigindo algumas imperfeições. Agradeço imensamente também a Silvia Taglia­ ferri, que revisou as provas, e a Andrea Morando, pelo esplên­ dido projeto gráfico da capa. E, finalmente, agradeço a minhas amigas Paola Rigon, da Biblioteca Classense de Ravenna, pela quantidade imensa de material documentário que conseguiu para meu trabalho, por meio do empréstimo entre bibliotecas nacionais e interna­ cionais, e a Martha Fabbri, que, na qualidade de editora da coleção Galápagos, incentivou a publicação deste livro, acom­ pa­n hando as fases da redação com grande dedicação e ­paciência impa­gável. Obviamente, a responsabilidade por lapsos, lacunas e er­ ros remanescentes é só minha.

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capítulo 1

o professor de cálculo

A noite acabara de esvair-se, escura e carregada de tensões. As tropas francesas tinham cercado a cidade, prontas a desfechar um ataque, enquanto o martelar dos sinos chamava o povo às armas e à defesa. Era o dia 19 de fevereiro de 1512, quinta-feira de Carnaval, e Bréscia estava prestes a viver um dos dias mais trágicos de sua história. A futura Leoa da Itália tinha caído sob o domínio francês, em maio de 1509, após mais de 80 anos de governo da Serenís­ sima República de Veneza. A sábia e liberal administração vê­ neta, que transformara Bréscia numa das cidades mais prós­ peras da Lombardia, foi substituída pelo jugo transalpino arrogante e opressor, causando grave insatisfação entre os ci­ da­dãos. Com o objetivo de restabelecer a situação política ante­ rior, algumas figuras notáveis da cidade — dentre elas, o conde Luigi Avogadro e outros representantes da aristocracia local — começaram a tramar conjuras e rebeliões contra as autoridades francesas, tendo, ao final, encabeçado a insurreição vitoriosa 13


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de 3 de fevereiro de 1512. Naquele dia, graças ao esvaziamento do quartel das tropas francesas (cujo contingente maior estava sitiando a cidade de Bolonha) e à ajuda dos soldados venezia­ nos, Bréscia pôde expulsar o invasor estrangeiro, obrigando as milícias francesas supérstites a buscar abrigo no Castelo1. O júbilo da população, porém, estava destinado a apagar-se num instante. O jovem general francês Gaston de Foix, com apenas 23 anos de idade, teve de deixar Bolonha e voltar correndo para as terras da Lombardia, chegando, no dia 17 de fevereiro, com suas tropas, aos pés das muralhas de Bréscia. Em pouco tempo, o Exército transalpino cercou a cidade: De Foix intimou os in­ surrectos a render-se, garantindo a clemência de sua majestade Luís XII, rei da França, mas a resposta foi uma recusa irredu­ tível. Na noite entre 18 e 19 de fevereiro, o jovem comandante mandou que penetrassem no Castelo — onde ainda resistiam os soldados franceses que tinham escapado do levante ocorrido duas semanas antes — cerca de 500 lanceiros e 6 mil soldados da infantaria, prontos para entrar em ação. O sinal do ataque foi dado pouco depois do alvorecer, e logo aconteceu o massacre. Os soldados desceram do Castelo de Bréscia, superando as primeiras linhas venezianas da artilharia e, junto com as tropas guiadas por De Foix, dirigiram-se para o centro da ci­ dade. Os combatentes de Bréscia e as tropas vênetas tentaram opor a mais valorosa resistência, mas a disparidade de forças e a melhor organização dos transalpinos esmagaram rapidamen­ 1 Conhecido ainda hoje como o “Falcão da Itália”, o Castelo de Bréscia ergue-se no morro Cidneo, que, com seus 250 metros de altura, domina o centro histó­

rico da cidade. A respeito dessa fortaleza imponente e sugestiva, uma das mais bem conservadas da Itália setentrional, ver, por exemplo, AA. VV., Il Castello di Brescia. Bréscia, Grafo, 1986.

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te qualquer pretensão de defesa. Em pouco tempo e num ba­ nho de sangue, Bréscia voltou para as mãos dos franceses, cober­ ta de cadáveres, já no fim daquela quinta-feira de Carnaval. Mas isso não foi suficiente: reconquistada a cidade, os sol­ dados franceses, tendo recebido autorização para aplicar uma punição exemplar, iniciaram, imediatamente, a depredação das riquezas locais com ferocidade brutal. Por dois dias seguidos saquearam e incendiaram as casas, trucidaram homens e crian­ ças, abusaram das mulheres. Muitos rebeldes foram justiçados publicamente, com execuções capitais cruéis, que foram o hor­ ror dos horrores: o conde Avogadro, o principal responsável pela rebelião, “teve sua cabeça cortada barbaramente e, em se­ guida, exposta na torre do Povo”, e seus restos mortais “foram pendurados nas portas da cidade, tão baixos que os cães pude­ ram comê-los”2. A fúria das tropas transalpinas não se deteve nem mesmo diante dos lugares sagrados, que também foram invadidos e despidos de seus paramentos preciosos. Apesar disso, muitos cidadãos transtornados e apavorados buscaram refúgio na ca­ tedral e, no meio deles, estava uma pobre viúva com seus dois filhos: um garoto de 12 anos, Niccolò, e uma menina menor. Os cruéis opressores invadiram, sem escrúpulo nenhum, aquele lugar sagrado, perpetrando saques e violências. Durante o assal­to à catedral, um soldado francês apontou o sabre para Niccolò e lhe desferiu um golpe brutal na cabeça. Depois outro e mais outro. Enquanto o sangue começava a jorrar da cabeça, o rapaz foi atingido por mais dois golpes no rosto: inexorável, o sabre abriu um corte na boca, quebrando os dentes e dilace­ 2 AA. VV., Storia di Brescia. Vol. II. Giovanni Treccani degli Alfieri (org.). Brés­ cia, Morcelliana, 1963, p. 270.

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rando o maxilar, a mandíbula e o céu da boca. Ao todo, cinco ferimentos, sendo que cada um deles poderia ter sido fatal. No entanto, Niccolò conseguiu sobreviver. Nas semanas que se seguiram, a mãe teve de cuidar sozi­ nha do filho, porque não tinha condição de pagar os médicos e os remédios. Por muito tempo, Niccolò não conseguiu nem falar nem comer, alimentando-se, com muito sacrifício, so­ mente de líquidos. Recuperou a saúde em alguns meses, graças aos cuidados maternos, porém, na idade adulta, usava sempre a barba cerrada para esconder as cicatrizes profundas e indelé­ veis que desfiguravam seu rosto. Aos poucos, recomeçou a fa­ lar, mas com muita dificuldade. E foi assim que, por causa da gagueira provocada pelas feridas na boca, seus pequenos coe­ tâneos lhe aplicaram o apelido zombeteiro, que ele acabou ado­ tando como sobrenome e que hoje está gravado em ouro na história da matemática: Tartaglia, ou seja, Gagueja. Nascido em Bréscia, provavelmente em 1499, Niccolò Tar­ taglia era um dos filhos de “Miguelzinho do Cavalo”, um hu­ milde estafeta do serviço postal a cavalo, de quem o célebre matemático herdou, pelo menos, a baixa estatura3. O próprio

3 Na falta de uma certificação arquivística exaustiva e incontestável, como tam­

bém de informações explícitas por parte do interessado, o ano de ­nascimento de Niccolò Tartaglia não pode ser estabelecido com exatidão. A hipótese de que ele tenha nascido em 1499 baseia-se em dois livretos de registro civil de 1529, referentes à vila veronense de Santa Maria Antica: entre outros, en­ contra-se o registro da família de Tartaglia (que, naquela época, conforme ve­ remos, vivia em Verona); ao lado do nome de Niccolò está indicada a idade de 30 anos. Esses dois livrinhos, que trazem os números 586 e 587, encontram-se, atualmente, no Arquivo de Estado de Verona. Embora os registros da época fossem comumente imprecisos, o ano de nascimento de Tartaglia que se pode deduzir desses documentos veronenses concorda, substancialmente, com o ano (por volta de 1500) extraído, por aproximação, das memórias do mate­ mático de Bréscia.

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Niccolò Tartaglia, numa página autobiográfica de sua obra Quesiti et inventioni diverse [Quesitos e invenções diversas] (publicada pela primeira vez em 1546)4, fala afetuosamente do pai e menciona a composição de sua família de origem, duran­ te um diálogo com Gabriele Tadino, cavalheiro de Rodes e prior de Barletta5. PRIOR […] Diga-me, então, como se chamava seu pai? NICCOLÒ Meu pai chamava-se Miguel. E, tendo sido a natu­ reza muito parcimoniosa na hora de dar à sua pessoa um tama­ nho conveniente, […] foi chamado Miguelzinho. PRIOR Certamente, se a natureza foi muito parcimoniosa na hora de dar à pessoa de seu pai um tamanho conveniente, tam­ bém com o senhor ela foi pouco generosa. NICCOLÒ Mas eu gosto disso, porque o meu tamanho tão pequeno prova que eu realmente sou filho dele […] embora, ao morrer, ele não [tenha deixado] para mim, para meu irmão e

4 Niccolò Tartaglia, Quesiti et inventioni diverse, reprodução fac-similar de 1554,

edição e partes introdutórias Arnaldo Masotti. Bréscia, La Nuova Carto­grafica, 1959. Nesse escrito, Tartaglia conta o episódio de seu ferimento por mãos fran­ cesas durante o saque de Bréscia de 1512 (Livro VI, Quesito VIII, f. 69v). 5 Nascido em Martinengo, província de Bérgamo, tendo vivido, aproximada­ mente, entre 1480 e 1543, Gabriele Tadino foi engenheiro militar e guerreiro valente. Recebeu glória e honrarias (entre outras, o governo de Barletta) por sua heroica participação, em 1522, na defesa da ilha de Rodes, sitiada pelos turcos. Aqui combatera sob as insígnias da Ordem Hospitalária de São João de Jerusalém de Malta, ficando gravemente ferido em um olho. Um retrato dele, pertencente à coleção do banco Cassa di Risparmio di Ferrara, é atribuído ao pintor vêneto Ticiano Vecellio. Sobre a figura de Tadino e, em particular, sobre seu relacionamento com Tartaglia, ver, respectivamente: Guido Tadi­ ni, Gabriele Tadino priore di Barletta. Bérgamo, Bolis, 1986; Arnaldo Masotti, “Gabriele Tadino e Niccolò Tartaglia”, Atti dell’Ateneo di Scienze, Lettere e Arti di Bergamo. Vol. 38, 1973-1974, pp. 361-74.

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minhas duas irmãs quase [nada], a não ser uma boa lembrança dele; pelo que me diziam muitas pessoas que ele conhecia e frequentava, meu pai era um homem de bem, e isso me dá mais alegria e satisfação do que se ele me tivesse deixado riquezas com um nome malfalado. PRIOR Qual era a ocupação do seu pai? NICCOLÒ Meu pai tinha um cavalo, e com ele trabalhava para o correio a cavalo de Bréscia, ou seja, levava cartas da Ilustrís­ sima Senhoria de Bréscia para Bérgamo, Crema, Verona e ou­ tros lugares como esses6.

Em seguida, Niccolò declara ignorar o sobrenome do pai e acrescenta que, quando seu pai morreu, ele tinha por volta de 6 anos e que essa desgraça deixou a família em graves condi­ ções de indigência. PRIOR […] Qual é a linhagem [de seu pai]? NICCOLÒ Juro por Deus que não sei, não me lembro nem da linhagem nem do sobrenome, só lembro que sempre, desde criança, ouvi chamá-lo simplesmente pelo nome Miguelzinho do Cavalo. Pode até ser que ele tivesse outro nome ou sobreno­ me, mas eu desconheço, porque, como já disse, meu pai morreu quando eu tinha mais ou menos 6 anos, e assim ficamos eu, meu irmão (um pouco mais velho do que eu) e uma irmã (menor do que eu) junto com nossa mãe viúva e desprovida de bens, e com ela, logo em seguida, fomos tão maltratados pela sorte que, se eu fosse contar o que aconteceu, seria uma história muito longa.

6 Niccolò Tartaglia, Quesiti et inventioni diverse, f. 69r.

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Tudo isso fez com que eu me preocupasse com algo muito dife­ rente do que investigar o nome da linhagem do meu pai7.

Mais tarde, porém, em seu testamento, Tartaglia mencio­ nará “Zuampiero Fontana” como “irmão legítimo carnal” 8. Esse fato levou alguns pesquisadores à conclusão de que “Fon­ tana” devia ser o sobrenome verdadeiro de Niccolò, mas, na realidade, os resultados das pesquisas em arquivos, destinadas a verificar essa circunstância, não permitem confirmações de­ finitivas9. Não há dúvida, entretanto, que Niccolò quis adotar o apelido “Tartaglia” como sobrenome para lembrar o drama pessoal sofrido durante o saque de Bréscia de 1512 — “para lembrar aquela minha desgraça”10, escreve nos Quesitos —, e talvez para lembrar também a piedade da mãe, que cuidou dele com grande dedicação naqueles dias de sofrimento11.

7 Idem, op. cit., f. 69r. Com base na documentação disponível, não é possível

esclarecer por que, nesse trecho, Tartaglia menciona apenas uma irmã, uma vez que, no trecho anterior, tinha mencionado duas. Em seu testamento (ver a nota seguinte), Niccolò vai citar uma irmã de nome Catarina. 8 Em outras passagens do mesmo documento, “Zuampiero” aparece como “Zampiero”. O testamento de Tartaglia, lavrado pelo tabelião Rocco De Be­ nedetti, no dia 10 de dezembro de 1557 e conservado, atualmente, no Ar­ quivo de Estado de Veneza, foi publicado em Arnaldo Masotti (org.), Atti del convegno di Storia delle Matematiche, 30-31 maggio 1959: quarto centenario della morte di Niccolò Tartaglia. Bréscia, La Nuova Cartografica, 1962, figu­ ras XXXI-XXXIII. 9 Ver Giovanni Battista Gabrieli, Nicolò Tartaglia. Una vita travagliata al servizio della matematica. Bagnolo Mella, Grafica Sette, 1997, pp. 13-5. 10 Niccolò Tartaglia, Quesiti et inventioni diverse, f. 69v. 11 A hipótese é formulada por Luigi Bittanti, Di Nicolò Tartaglia matematico bres­ciano. Bréscia, Apollonio, 1894, p. 5. Em nenhum escrito Tartaglia revela o nome de sua mãe ou dá outras informações sobre ela.

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Durante a conversa com o prior Tadino, Tartaglia fornece também algumas informações sobre seus primeiros estudos. Lê-se, por exemplo, que, entre os 5 e os 6 anos de idade, pouco antes da morte de seu pai, foi mandado por alguns meses à “escola de ler” de um preceptor cujo nome não lembra12. Mais tarde, por volta dos 14 anos, frequentou “espontaneamente por cerca de 15 dias a escola de escrever de um professor chamado Francesco”, que lhe ensinou “a fazer o abecê até o k da escrita chanceleresca” (um tipo de escrita cursiva difundida, naquela época, em diversas cidades da Itália centro-setentrional e uti­ lizada nos documentos e livros comerciais escritos em língua vernácula; caracterizava-se, especialmente, pelo formato re­ dondo do corpo das letras e pela riqueza de ligaduras)13. À pergunta seguinte, previsível, do seu interlocutor — “por que somente até a letra k?” —, Niccolò responde: Porque o acordo para o pagamento (com aquele professor) era dar um terço logo no começo das aulas, mais um terço quan­ do eu tivesse aprendido a fazer o tal abecê até o k, e o restante quando eu tivesse aprendido a fazer todo o abecedário. Dado que, na hora do último pagamento eu estava sem dinheiro (mas desejava aprender), procurei obter alguns de seus Alfabetos,

12 Niccolò Tartaglia, Quesiti et inventioni diverse, f. 69v. 13 Ibidem. Sobre a escrita chanceleresca, ver, por exemplo, Irene Ceccherini, “La

genesi della scrittura mercantesca”, in Otto Kresten e Franz Lackner (orgs.), Régionalisme et internationalisme. Problèmes de Paléographie et de Codicologie du Moyen Âge. Actes du XVe Colloque du Comité International de Paléographie Latine (Vienne, 13-17 septembre 2005). Verlag der Österreichischen Akademie der Wissenschaften [Academia Austríaca de Ciências]. Viena, 2008, pp. 123-37.

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