Algazarra nas ruas
ALGAZARRA
COMEMORAÇÕES
NAS RUAS
DA I NDEPENDÊNCIA NA
BAHIA
(1889-1923)
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Wlamyra Ribeiro de Albuquerque
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Reitor HERMANO TAVARES Coordenador Geral da Universidade FERNANDO GALEMBECK Pró-Reitor de Desenvolvimento Universitário LUÍS CARLOS GUEDES PINTO Pró-Reitor de Extensão e Cultura ROBERTO TEIXEIRA MENDES Pró-Reitor de Graduação ANGELO LUIZ CORTELAZZO Pró-Reitor de Pesquisa IVAN EMÍLIO CHAMBOULEYRON Pró-Reitor de Pós-Graduação JOSÉ CLÁUDIO GEROMEL
E DITORA
DA
U NICAMP
Diretor Executivo LUIZ FERNANDO MILANEZ Conselho Editorial ELZA COTRIM SOARES – LUIZ FERNANDO MILANEZ MILTON JOSÉ DE ALMEIDA – RICARDO LUIZ COLTRO ANTUNES SUELI IRENE RODRIGUES COSTA
Centro de Pesquisa em História Social da Cultura IFCH – Unicamp Coordenação MARIA CLEMENTINA PEREIRA CUNHA Coordenação Editorial HENRIQUE ESPADA RODRIGUES LIMA FILHO Conselho Editorial CLÁUDIO HENRIQUE DE MORAES BATALHA – JOÃO JOSÉ REIS MARIA CLEMENTINA PEREIRA CUNHA – MARIA HELENA P. T. MACHADO MARTHA ABREU – ROBERT WAYNE SLENES – SIDNEY CHALHOUB SILVIA HUNOLD LARA Consultoria MARGARIDA DE SOUZA NEVES DÉA RIBEIRO 2 FENELON
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WLAMYRA RIBEIRO DE ALBUQUERQUE
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COMEMORAÇÕES DA INDEPENDÊNCIA NA BAHIA (1889-1923)
COLEÇÃO VÁRIAS HISTÓRIAS
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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA UNICAMP AL15a
Albuquerque, Wlamyra Ribeiro de Algazarra nas ruas: comemorações da Independência na Bahia (1889-1923) / Wlamyra Ribeiro de Albuquerque. -Campinas, SP: Editora da Unicamp/Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 1999. (Coleção Várias Histórias) 1. Brasil - Histórias - Independência nas províncias, 1822-1824 - Bahia. I. Título.
e-ISBN: 85-268-1134-7
20.CDD - 981.034
Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil - Histórias - Independência nas províncias, 1822-1824 - Bahia.
981.034
Coleção Várias Histórias Copyright © by Editora da Unicamp, 1999 Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em sistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor. Gerência de produção Carlos Roberto Lamari Assistência de produção Elisabeth Regina Marchetti Supervisão de produção gráfica Vlademir José de Camargo Supervisão de edição de textos Lucélia Caravieri Temple Editoração eletrônica Eva Maria Maschio Morais Web design Carlos Leonardo Lamari Capa Adailton Clayton Santos Editora da Unicamp Caixa Postal 6074 Cidade Universitária – Barão Geraldo CEP 13083-970 – Campinas – SP – Brasil Tel.: (0xx19)788-1015 – Tel./Fax: (0xx19)788-1100 Internet: www.editora.unicamp.br
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COLEÇÃO VÁRIAS HISTÓRIAS A COLEÇÃO VÁRIAS HISTÓRIAS divulga pesquisas recentes sobre a História do Brasil que apontam para a diversidade da formação cultural brasileira. Ao centrar seu foco nas práticas, tradições e identidades de diferentes grupos sociais, seu elenco de obras propõe uma reflexão sobre as tensões e os embates entre valores e interesses que se expressam no campo da cultura. Os trabalhos publicados estão ancorados em sólidas pesquisas empíricas e descobrem novos problemas de investigação a partir das perspectivas abertas pela história social.
VOLUMES PUBLICADOS 01 – ELCIENE AZEVEDO. Orfeu de carapinha. A trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo. Campinas: Editora da Unicamp, Cecult, 1999. 02 – JOSELI MARIA NUNES MENDONÇA. Entre a mão e os anéis. A Lei dos Sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, Cecult, 1999. 03 – FERNANDO ANTONIO MENCARELLI. Cena aberta. A absolvição de um bilontra e o teatro de revista de Arthur Azevedo. Campinas: Editora da Unicamp, Cecult, 1999. 04 – WLAMYRA RIBEIRO DE ALBUQUERQUE. Algazarra nas ruas. Comemorações da independência na Bahia (1889-1923). Campinas: Editora da Unicamp, Cecult, 1999.
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PRÓXIMOS VOLUMES 05– CARLOS EUGÊNIO LIBANO SOARES. A capoeira escrava no Rio de Janeiro, 1808-1850. Campinas: Editora da Unicamp, Cecult, 2000. 06– S UEANN C AULFIELD . Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro, 1918-1940. Campinas: Editora da Unicamp, Cecult, 2000.
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Para Joรฃo Reis, Beto Herรกclito e Sr. Albuquerque. 7
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A GRADECIMENTOS Foram muitos os colaboradores deste trabalho; será difícil mencionar todos em poucas linhas. Desde já peço desculpas àqueles aos quais eu não puder registrar aqui meus agradecimentos. Este texto é o resultado de minha dissertação de mestrado defendida no Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia em 1997. A orientação atenta de João José Reis foi decisiva: reuniões para discutir o trabalho tornavamse preciosas aulas de história da Bahia. João Reis apontou problemas, corrigiu erros e sugeriu caminhos de abordagem, sempre com seus comentários irônicos e bem-humorados. No Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, contei com a solicitude de dona Augusta, de Márcia Paim, no Arquivo Municipal, e de Marina Santos, na Biblioteca do Mestrado de História, UFBA. Durante a coleta dos dados, o trabalho de Karina Fernandes foi imprescindível para o acesso a informações dispersas em diversas fontes. Ainda tive o privilégio de contar com contribuições de muitos amigos. Com Alberto Heráclito tive inúmeras discussões sobre o ofício do historiador e aprendi muito com as suas interpretações da sociedade baiana. Jailton Brito, Nélia Santana, Nancy Sento Sé e Carlos Zacarias indicaram documentos, sugeriram leituras e compartilharam das angústias próprias (agora eu sei) da fase de pesquisa e redação. Sara Farias merece destaque. Afinal foi a ela que, em incontáveis ligações telefônicas, lamentei sobre as dificuldades de acesso a fontes, localização de documentos e redação dos textos. Algumas vezes, recebi em troca as suas queixas sobre os mesmos infortúnios, noutras, considerações debochadas sobre as minhas aflições. Também devo agradecimentos a Vilma Mota, sempre disposta a resolver questões práticas tão caras a uma mestranda. 9
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Raimundo Nonato, Amélia Maraux, Marli Santana, Zé Carlos Oliveira, Bruno Ferreira e Rosa Itaraci contribuíram nas minhas ponderações dos limites da reclusão necessária para o trabalho intelectual. Estar com eles era também ter a oportunidade de pensar em celebração. Não posso deixar de agradecer à antropóloga Luzania Rodrigues, tão atenta às questões gramaticais quanto às possibilidades de interpretação da cultura urbana. Ao Departamento de Educação da Universidade Estadual de Feira de Santana (BA) e aos meus alunos do curso de história, por compreenderem os dilemas de uma professora ocupada com o cotidiano da sala de aula e a redação monográfica. Ao CNPq e à C APES que, em diferentes períodos do mestrado, concederam-me bolsa de estudos. Também ao CECULT–UNICAMP e à FAPESP. O empenho destes em incentivar a pesquisa histórica foi fundamental para a publicação deste texto. E, principalmente, aos meus pais, Albuquerque e Marisa, e irmãos, por entenderem as minhas ausências e, principalmente, por sempre terem acreditado na realização deste trabalho.
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S UMÁRIO PREFÁCIO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 ABREVIATURAS UTILIZADAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 INTRODUÇÃO A “VELHA BAHIA” NA “NOVA ORDEM REPUBLICANA”. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 Notas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26 Capítulo 1
OS LETRADOS E A MODERNIDADE QUE NÃO VEIO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27 1. O IGHBA : a preservação da memória histórica e o anúncio da modernidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30 2. “Vem ahi a imigração!”. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36 3. Bahia: entre a preta quituteira e a Athenas brasileira. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40 Notas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49 Capítulo 2
FESTEJOS POPULARES, FESTEJOS CÍVICOS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53 1. A procissão cívica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57 2. Dos espetáculos de gala no Teatro Politheama aos sambas no beco do Gilu . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68 Notas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84 Capítulo 3
CABOCLOS — OS SÍMBOLOS DA INDEPENDÊNCIA
E A DEVOÇÃO POPULAR. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89
1. Os símbolos da Independência e as entidades encantadas do candomblé. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93 11
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2. “Os civilizados de improviso” e os “romeiros” da Lapinha. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96 3. O Senhor do Bonfim contra os caboclos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105 Notas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 108 Capítulo 4
“AS ESTRADAS ALAGADAS DE SANGUE” E OS “SALÕES REPLETOS DE FLORES” — O DOIS DE JULHO NA HISTÓRIA NACIONAL. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111 1. 1823: “a epopéia baiana”. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112 2. 1923: a redenção da Bahia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117 Notas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124 CONSIDERAÇÕES FINAIS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127 LISTA DE FONTES. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131 BIBLIOGRAFIA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133 CADERNO DE FOTOS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139
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P REFÁCIO O Dois de Julho é uma mistura de festa popular e comemoração cívica. Conforme nós, baianos, aprendemos desde cedo na escola, celebra-se a “independência da Bahia”, ou seja, a expulsão, naquela data de 1823, dos portugueses que ocupavam a cidade de Salvador, depois de quase dois anos de conflito. Os baianos acharam este feito tão importante para a fundação do Brasil, que no século XIX tentaram várias vezes transformar o dia em feriado nacional. A festa cívica reproduz o trajeto da entrada triunfal das tropas brasileiras na capital. Constitui-se do desfile de disciplinadas bandas colegiais e militares, de graves autoridades políticas, mas também de festa popular de grupos carnavalescos organizados, de políticos de oposição e manifestantes que protestam, além dos festeiros independentes, do povo que circula, dança, bebe, come e reza ao Caboclo, símbolo maior da comemoração e divindade do panteão afro-baiano. A festa de Dois de Julho mobiliza muitos atores que se aliam e se opõem, celebrando uma baianidade que tem uma variedade de sentidos. Ela parece ter sido definitivamente contaminada pelo episódio que lhe deu origem. A luta pela independência na Bahia foi vencida não apenas contra os portugueses, foi também a vitória de um projeto de nação concebido nos termos da elite local. Não teria de ter sido assim. Não parecia que seria assim aos olhos de muitos dos que viveram aqueles anos de animação patriótica. A sociedade que viu nascer a Bahia independente era escravocrata, mas constituída por escravos nada passivos. Ao longo das duas décadas iniciais do século, antes, portanto, de acontecerem os primeiros conflitos luso-baianos em 1821, as senzalas da região já haviam assustado suas casas-grandes em diversas ocasiões. Aquelas revoltas e conspirações não tiveram 13
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um projeto de nação para o Brasil, mas foram em grande parte resultado do movimento de grupos que se entendiam, orientavam e se mobilizavam como nações africanas — nagôs, haussás, jejes etc. —, o que hoje chamamos de grupos étnicos. Durante os conflitos luso-baianos, os escravos se rebelaram em algumas ocasiões, numa delas contra as tropas brasileiras. Derrotados neste episódio, foram selvagemente punidos com a execução sumária de algumas dezenas por ordem do general Pedro Labatut, que comandava o exército nacional. Melhor sorte tiveram os muitos escravos que escaparam de seus senhores aproveitando a confusão da guerra, e, se muitos foram depois recapturados, pelo menos circularam alguns meses com ares, modos e afazeres de libertos. Naqueles meses, os que comandavam ambos os lados do conflito colonial queixaram-se da formação de um certo “partido negro”, que estaria ganhando forma contra brancos nacionais e estrangeiros. Rigorosamente, nunca houve o tal partido, e sim manifestações múltiplas, às vezes coletivas, outras vezes individuais, de negros escravos que acreditavam poderem libertar-se juntamente com o país, e negros e mestiços livres desejosos de uma melhor posição no país que se libertava. O médico mestiço Francisco Sabino Alvares da Rocha, por exemplo, iniciaria no calor da guerra uma longa carreira de revolucionário liberal e federalista que culminaria, em 1837-38, com o movimento da Sabinada. Como ele, outros patriotas, independentemente da cor da pele, pensaram um Brasil diferente, mais liberal, até republicano, embora a maioria não desafiasse a estrutura escravista da sociedade. No seio da própria elite, não faltaram desacordos sobre os rumos da independência. Havia aqueles que apostavam numa ruptura que eliminasse a rede comercial dominada pelos portugueses, substituindo-os pelos ingleses e outros parceiros de uma outra Europa. Outros logo desejaram restabelecer a antiga dependência econômica portuguesa, satisfazendo-se com os louros da autonomia política. Muitos, aliás, só optaram pela independência para não a ver dirigida às águas agitadas do oceano social. Todos eram, sobretudo, escravocratas convictos. O Dois de Julho foi então jogo duro, como reza um reggae baiano. Sua celebração, desde a primeira vez que aconteceu, 14
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no ano seguinte à retomada de Salvador, continuaria rememorando, às vezes em conflitos reais, a multiplicidade de vontades políticas que o conflito enfechou e, de certa forma, abafou. Ao longo do século XIX, a festa foi tomando a forma que a caracterizaria na Bahia republicana. Paralelamente ao centro da festa, constituído pelos protagonistas e símbolos oficiais, se desenvolveria uma periferia popular, formada pelos excluídos sociais, raciais, políticos, culturais. Mas o jogo nunca foi e não é tão simples. Isto porque o objetivo da periferia não é fixo, não é exatamente tomar de assalto o centro, mas dele participar das mais diversas maneiras. Lutam todos, desde há muito, por estar perto do carro do Caboclo, mas enquanto (quando) isso não acontece, os excluídos desenvolvem muitas festas que se desenrolam à margem do desfile principal. O Dois de Julho, durante muito tempo, também aconteceu fora do tempo e do espaço centrais das comemorações. A festa se dava nos bairros afastados do centro da cidade, em datas afastadas daquela estabelecida oficialmente. Periferia espacial e temporal. Podia ser dezembro no Cabula, maio em Itapagipe, podiam ser outros bairros em outras datas. Era como se a população decidisse subverter o calendário oficial com o fim de estabelecer e marcar sua independência cultural, acionando a solidariedade e a identidade vicinais como veículo de celebração da pequena pátria baiana. Infelizmente, esse aspecto centrífugo dos festejos foi vencido e hoje eles acontecem apenas na data aprazada e ao longo do trajeto do cortejo oficial. Como também acontecem muitos protestos e carnavais ali por perto, resta o consolo de imaginar que o centro de alguma maneira assimilou a periferia e esta encontrou um pequeno lugar sob o sol do Caboclo. Mas este é apenas um modo de ver as coisas. O Caboclo pode ser visto como uma representação baiana da utopia popular, totem da justiça e da abundância. Afinal ele representa ou não a vitória sobre a tirania e o estabelecimento do império da liberdade? Acontece que a Utopia existe para ser alcançada, não para que simplesmente ilumine os que a perseguem. Neste sentido, o povo que ama o Caboclo ainda não o possui, e, apesar de estar mais perto dele, muitas vezes sente-se por ele abandonado. Para libertar o povo da tirania, o Índio quer mais. Por isso ele retorna a cada ano para receber novas deferências, no15
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vos sacrifícios, novas e melhores oferendas na forma de orações, ebós e fogos de artifício. A idéia do Caboclo como Utopia enfecha, talvez, a proposta de um messianismo que historicamente não tem muito espaço na mentalidade do baiano de beira de praia. Aqui, o símbolo maior do Dois de Julho, talvez até pela proximidade do mar que nos une ao além-mar, tem as características de um deus criado para que com ele se negocie, daquela maneira como se faz com os santos católicos trazidos da Europa e os orixás, vodus e inquices trazidos da África. Os caboclos são entidades espirituais associadas ao Candomblé, e aquele que desfila na festa da Independência talvez seja a figura pública maior desse numeroso clã de divindades inventado neste novo mundo. Como seus pares, santos e orixás, mais do que a promessa da Utopia, ele ajuda seus devotos a sobreviver, ou a viver melhor, no dia-a-dia: a ter emprego, casa, comida, roupa, dinheiro, saúde, amor. Seria em torno dessas necessidades mais imediatas geradas pelo trauma social que se desenrola a trama religiosa da participação popular no Dois de Julho. A festa apresenta assim uma dimensão religiosa que atualiza uma longa tradição em que o sagrado e o profano se entrelaçam e se complementam. Ela também possui muitas das características de (mais um) interregno carnavalesco do extenso calendário festivo baiano. Como é também festa da ordem, daquele tipo que reafirma explicitamente as estruturas sociais e políticas estabelecidas, resulta numa manifestação híbrida cujos contornos precisos demandam uma reflexão contextualizada. Isto porque, em momentos diferentes de sua história, a combinação entre o cívico, o religioso e o carnavalesco deve ser também diferente. É certo, no entanto, que para bem entendê-la será sempre necessário conhecer o investimento político dos indivíduos, grupos sociais e instituições que dela participam ou nela disputam um espaço. É nessa perspectiva que Wlamyra Albuquerque escreveu este animado livro. Os estudos sobre essa festa fascinante foram, durante muito tempo, resultado exclusivo do labor de folcloristas e jornalistas. Eles nos legaram ricos registros de sua realização e mesmo sua transformação, mas em trabalhos descritivos, pouco 16
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reflexivos e amiúde preconceituosos. Recentemente, antropólogos e historiadores entraram na festa. Este livro resulta de uma reflexão histórica cheia de sensibilidade antropológica, trabalho ao mesmo tempo descontraído e interpretativo, o primeiro livro sobre o tema escrito de uma perspectiva da história social da cultura. Na verdade, o único livro de história sobre o Dois de Julho. Nele Wlamyra Albuquerque discute como a festa se deu na Primeira República, mapeando, discernindo, decompondo os atores sociais e as disputas que travaram pelo espaço festivo, as práticas culturais que acionaram e o aparato simbólico que conceberam para definir e significar seus interesses na festa e fora dela. Conceitos já consagrados da historiografia recente são aqui trabalhados, como apropriação, circulação, mediação e negociação culturais. Mas o leitor não encontrará neste livro os conceitos descolados da base empírica, de maneira que a percepção sobre o assunto se amplia e ganha maior nitidez. Através do Dois de Julho, a autora também permite que penetremos na Bahia de uma época em que a elite local ainda acreditava ser possível esmagar o espírito indisciplinado e crítico da cultura popular que se expressava no meio e em torno da comemoração cívica. No núcleo dessa cultura, encontramos o elemento dinâmico, transformador e em transformação, representado pelo mundo negro, seus homens e mulheres, suas práticas e representações. Dentro do espírito da Belle Époque tropical, os homens da elite quase branca baiana, com raras exceções, se acreditavam portadores da civilização branco-européia, em cruzada contra o que consideravam a barbárie dos costumes de origem africana. Esse embate era antigo, vinha de pelo menos a primeira metade do século XIX e não se restringia à Bahia, assumindo, no entanto, diferentes contornos e linguagens em outras regiões do país. Pelo que é hoje o Dois de Julho e as demais festas populares baianas, a impressão que se tem é que não houve vencedores naquelas velhas batalhas da Primeira República. Como escrevi lá atrás, negociou-se ao longo do tempo uma espécie de compromisso entre poderosos e populares, um compromisso que vai além dessa festa cívica, integrando muitos lances do que hoje se entende por renascimento cultural baiano, em que 17
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o predomínio do repertório “africano” é fenômeno sobejamente conhecido. As próprias elites políticas e econômicas, nos dias que correm, lançam mão da coisa africana, com o inevitável apelo da mestiçagem cultural, para definir a baianidade diante do resto do Brasil e do mundo. Ou seja, aquilo que na República de princípio do século era barbárie, na República de fim de século vem a ser identidade. Ou, ainda, o que era o bárbaro=boçal tornou-se o bárbaro=bacana. Há, no entanto, correntes fortíssimas, explosivas da história, que permanecem basicamente inalteradas, talvez ainda mais robustecidas. A maior parte dos festeiros do Dois de Julho e dos muitos carnavais baianos continua a ser, com as exceções de praxe, os mesmos pretos e mestiços pobres e discriminados do passado. O compromisso em torno de símbolos e práticas culturais não resultou de transformações sociais significativas e, portanto, teve desdobramentos sociais medíocres. A paz da festa é precária. Festa, aliás, não é sinônimo de paz. Ao adotar o Carnaval como espaço de protesto ao longo das últimas três décadas, o movimento negro baiano, através de seus blocos afros, sugere que festa e revolta também combinam. A própria história registra vários episódios em que os escravos baianos, ancestrais dos atuais negros rebeldes, fizeram essa combinação muitas vezes no passado. Este livro nos ajuda a entender essa Bahia paradoxal, a sua história profunda. Ele talvez até ajude a inventar uma outra Bahia, a Bahia da utopia cabocla, cujos paradoxos sejam mais toleráveis, e até desejáveis, já que não há festa sem eles. Mesmo quem gosta de permanecer na superfície e apenas curtir o passado como diversão aproveitará de sua leitura. A festa que Wlamyra explica com êxito e estilo não desanimará ninguém por ter sido assim explicada. João José Reis Outubro, 1999
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A BREVIATURAS
UTILIZADAS
APEBA: Arquivo Público do Estado da Bahia APMS: Arquivo Público Municipal de Salvador IFBA: Instituto Feminino da Bahia IHGB: Instituto Histórico Geográfico Brasileiro IGHBA: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia IGHSP: Instituto Histórico Geográfico de São Paulo
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