fontes
Correspond锚ncia, dedicat贸rias e outros textos Camilo Pessanha
Correspond锚ncia, dedicat贸rias e outros textos Camilo Pessanha
Biblioteca Nacional de Portugal Editora da Unicamp Lisboa, Campinas 2012
correspondência, dedicatórias e outros textos
biblioteca nacional de portugal
Camilo Pessanha
catalogação na publicação
organização, prefácio, cronologia e notas
Daniel Pires capa
Camilo Pessanha em Macau (1899) design tvm
Designers
PESSANHA, Camilo, 1867-1926
Correspondência, dedicatórias e outros textos / Camilo Pessanha ; org., pref., cronologia e notas Daniel Pires. Lisboa : Biblioteca Nacional de Portugal ; Campinas : Editora da Unicamp, 2012. -- 333 p. – (Fontes) isbn 978-972-565-469-9 (BNP) isbn 978-85-268-0966-6 (Editora da Unicamp) I – Pires, Daniel, 1951-
revisão
A. Miguel Saraiva pré-impressão, impressão e acabamento
Rettec Artes Gráficas 2012 tiragem
CDU 821.134.3-6”18/19” 929Pessanha, Camilo.09(01) 821.134.3Pessanha, Camilo.09(01)
1000 exemplares
depósito legal
342905/12
© Biblioteca Nacional de Portugal
universidade estadual de campinas Reitor Fernando Ferreira Costa Coordenador Geral da Universidade Edgar Salvadori de Decca
Conselho Editorial Presidente Paulo Franchetti Christiano Lyra Filho – José A. R. Gontijo José Roberto Zan – Luiz Marques Marcelo Knobel – Marco Antonio Zago Sedi Hirano – Silvia Hunold Lara
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Prefácio
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Daniel Pires
Cronologia da vida e da obra de Camilo Pessanha
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Daniel Pires
Correspondência
Alberto Osório de Castro Ana de Castro Osório João Baptista de Castro Carlos Amaro Henrique Trindade Coelho Francisco António de Almeida Pessanha Maria do Espírito Santo Pereira José Benedito de Almeida Pessanha Maria Augusta de Almeida Pessanha João Pereira Vasco António Pinto de Miranda Guedes Mário Beirão Francisco Xavier Anacleto da Silva
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Anexos Dedicatórias de Camilo Pessanha Relatório sobre a atividade pedagógica das «Irmãs Canossianas» [preliminar e final] Ata secreta do Governo de Macau
Bibliografia
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Índices
Índice cronológico da correspondência de Camilo Pessanha Índice de nomes, lugares e títulos
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Prefácio Daniel Pires
I Apresentação A apetência de Camilo Pessanha pela escrita era escassa. Com efeito, a sua obra poética circunscreve-se a cinquenta e seis composições e a sua prosa – crónicas, contos, crítica literária, ensaio, escritos sobre a civilização chinesa, textos de carácter jurídico – está coligida num só volume. Igualmente breve é a sua correspondência, agora reunida. Dela constam dezanove cartas, que se encontravam parcial ou integralmente inéditas, e cinquenta e nove, que estão disseminadas por livros esgotados e por periódicos de difícil acesso. As primeiras foram-nos gentilmente cedidas por familiares dos seus destinatários; fazem parte deste grupo algumas cartas de que apenas eram conhecidos excertos, porquanto os seus possuidores consideraram que a revelação do seu teor poderia, de alguma forma, afetar o bom-nome da família. Estão nesta situação João de Castro Osório, que truncou substancialmente – três páginas – uma carta, dirigida a Alberto Osório de Castro, na qual Camilo Pessanha se referia longamente ao pedido de casamento a sua mãe, Ana de Castro Osório; a família do escritor, que foi da opinião de que a trágica perda de faculdades mentais de Manuel de Almeida Pessanha e que a rutura por ela provocada não deveriam vir para a praça pública; e os familiares de Carlos Amaro, que também julgaram pertinente manter o sigilo relativamente ao anticlericalismo deste tribuno republicano e à forma prosaica como Camilo Pessanha pontualmente se exprimiu. Considerando a exiguidade da correspondência do escritor, incorporámos neste volume todas as cartas que, neste momento, são do domínio público. Tendo em mente a relevância literária, cultural e cívica de Camilo Pessanha, decidimos revelar outros textos desconhecidos que, de forma direta ou indireta, a ele estão vinculados. Em primeiro lugar, uma ata secreta do Governo de Macau que relata o seu inconformismo perante a provável execução, se fosse extraditado,
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de um alto dignitário chinês, perseguido pelo vice-rei de Cantão. Eis um documento inédito, revelador da personalidade do poeta e da forma como, no início do século xx, se processavam as relações políticas luso‑chinesas. Em segundo lugar, um relatório redigido pelo autor, enquanto presidente de uma comissão nomeada, por iniciativa governamental, para avaliar a praxis educativa e social de uma congregação religiosa – as Irmãs Canossianas. A sua leitura permite-nos conhecer, com mais rigor, as ressonâncias em Macau da revolução republicana de 5 de outubro de 1910. Coligimos ainda as dedicatórias de Camilo Pessanha que acompanham os seus livros e fotografias, cerca de metade das quais se encontrava inédita. Justifica-se, segundo julgamos, a sua inclusão neste volume, visto que algumas demonstram uma profunda capacidade introspetiva e apresentam detalhes assinaláveis para a compreensão da sua psicologia e obra. Finalmente, elaborámos um índice diacrónico das cartas, cuja utilidade será despiciendo assinalar. II Critérios de edição da correspondência de Camilo Pessanha 1 O estado da arte A divulgação da correspondência de Camilo Pessanha teve início na década de cinquenta do século xx e prolongou-se pelas seguintes. Camilo Pessanha: elementos para o estudo da sua biografia e da sua obra é um ensaio pioneiro, da autoria de António Dias Miguel (1956), que ultrapassa amplamente o âmbito sugerido pelo título. Nele encontram-se as primeiras cartas impressas do escritor, dirigidas a Carlos Amaro, ao pai, Francisco António de Almeida Pessanha, ao primo, José Benedito de Almeida Pessanha, e à tia, Maria Augusta de Almeida Pessanha. Por determinação dos herdeiros, parte daquelas missivas não foi então transcrita na íntegra. Pedro da Silveira, na prestigiada revista Colóquio Letras, em maio de 1974 e em janeiro de 1976, deu a conhecer, anotando-a profusa e detalhadamente, correspondência que tinha como destinatários Mário Beirão e Henrique Trindade Coelho. As Cartas a Alberto Osório de Castro, João Baptista de Castro e Ana de Castro Osório (pessanha 1985), transcritas, anotadas e organizadas por Maria José de Lancastre, apresentam dados inéditos valiosos para a clarificação de determinados aspetos da vida e obra de Camilo Pessanha. Eis um trabalho árduo e meritó-
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rio, concretizado, em grande parte, tendo como ponto de partida fotocópias que apresentam pouca legibilidade, devendo ainda acrescentar-se um óbice de peso: a letra inconstante do autor. Em 1985, Arnaldo Saraiva e Maria da Glória Padrão dedicaram, na íntegra, o número 10 e, parcialmente, o número 11 da revista Persona a Camilo Pessanha. Foram então divulgados textos relevantes para a exegese da sua poesia, bem como correspondência dirigida ao pai, à mãe e a Alberto Osório de Castro. Finalmente, no ano de 2005, em O Amor de Camilo Pessanha, António Osório, num ensaio de inequívoca qualidade, revelou duas cartas, dirigidas a Ana de Castro Osório (2005), que confirmam o pedido de casamento assina lado pela tradição, e a respetiva resposta; aquele biógrafo equacionou ainda a génese da Clepsidra e a importância do acervo de arte chinesa pelo autor metodicamente coligido. 2
A presente edição
Como se pode inferir do que ficou exposto, a presente edição teve precursores que realizaram um trabalho de vulto, sendo portanto credores do nosso reconhecimento. Para a concretizar, levámos, obviamente, em linha de conta o pecúlio já reunido; corrigimos aspetos que o estádio da investigação atual relativamente ao poeta desmentiu; preenchemos lacunas que algumas cartas apresentavam; trouxemos à colação documentos inéditos entretanto descobertos e, beneficiando do facto de termos residido alguns anos em Macau, contextualizámos as cartas de forma mais exaustiva. Transcrição dos autógrafos originais Apesar de algumas cartas terem sido anteriormente publicadas, decidimos consultar, sempre que disponíveis ao público, os autógrafos originais. Na verdade, só esta opção nos permitiria fazer uma transcrição uniforme, que estivesse em sintonia com os critérios por nós perfilhados, necessariamente diferentes daqueles que os nossos antecessores seguiram. Compulsámos apenas cerca de metade dos mencionados manuscritos. O mau estado de conservação de alguns – resultante de borrões, falta de páginas, rasgões – dificultou sobremaneira a sua transcrição. Acresce, por outro lado, a letra irregular de Camilo Pessanha, que se alterava com o seu estado de espí rito, e a forma, nem sempre cuidada, como redigia, designadamente as termi
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nações das palavras. Com efeito, por vezes, não é possível determinar se estamos em presença de singulares ou de plurais. Avulta ainda que a contração das preposições e as próprias preposições nem sempre são claramente percetíveis: por exemplo, «de», «da», «do», aparentemente, encontram-se grafados da mesma forma. Transcrição de cartas cujo autógrafo original se desconhece Estão neste caso muitas daquelas que foram publicadas em jornais, revistas e em livro. Na impossibilidade de consultarmos os autógrafos originais, perfilhámos a transcrição proposta, corrigindo, se necessário, gralhas evidentes, e anotámo-las. Transcrição feita a partir de fotocópias dos originais Cerca de metade das cartas foi transcrita tendo como suporte fotocópias dos originais: todas as que foram disponibilizadas pelos herdeiros dos destinatários e aquelas que são dirigidas a Alberto Osório de Castro, as quais estão depositadas na Biblioteca Nacional de Portugal. Problemas de vulto se levantaram, especialmente no que às últimas con cerne: por terem sido efetuadas há cerca de cinquenta anos, o seu teor tende a desaparecer, tornando-se, deste modo, gradualmente ilegíveis. Ao contrário do que indicam as aparências, a leitura de uma fotocópia poderá ser bastante mais difícil do que aquela que um manuscrito original faculta, especialmente se estivermos em presença de uma forma de grafar pouco coerente, como é o caso de Camilo Pessanha. No presente volume apresentamos um texto inédito perturbante: uma ata secreta do governo de Macau, registada, em 1904, dado o seu carácter sigiloso, num livro especial. Um século mais tarde, a usura do tempo e o clima adverso daquele território fizeram-se sentir: o trabalho de traça e a interferência recí proca do teor das folhas frente e verso ficaram registados nas fotocópias, tor nando a sua transcrição árdua e suscetível de inexatidões, designadamente porque a sua compreensão e a pontuação ficaram afetadas. Este problema seria ultrapassável com a consulta presencial do documento; porém, o Arquivo Histórico de Macau encontra-se a cerca de treze mil quilómetros de Portugal, tendo sido inexequível deslocarmo-nos àquele território.
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Estrutura No que em particular diz respeito à organização da correspondência de Camilo Pessanha, duas hipóteses foram ponderadas: apresentá-la por ordem cronológica ou por destinatários. Embora ambas sejam pertinentes, optámos pela última. Evitámos, deste modo, a frequente repetição de dados de contextualização, sendo, por outro lado, maior a inteligibilidade das cartas. Redigida nos finais do século xix e no início do seguinte, a presente correspondência, se não for devidamente enquadrada, encerra escolhos de vulto. Com efeito, hoje em dia, uma parte considerável dos seus leitores desconhece as linhas de força históricas, literárias, sociais e políticas que nela se encontram, bem como as pessoas e os episódios mencionados. Acresce ainda que muitas cartas têm Macau como pano de fundo; ora, a realidade daquele território, no mencionado período, é quase inteiramente ignorada em Portugal. Tornou-se, portanto, imperiosa a sua contextualização, concretizada pelo recurso a notas, tanto quanto possível exaustivas. O ordenamento dos núcleos de destinatários decorreu do grau de impor tância do seu conteúdo para o conhecimento da obra e da biografia de Camilo Pessanha, bem como, naturalmente, da época em que viveu. A seriação das cartas, como é usual, foi feita cronologicamente. A atualização da grafia pareceu-nos ser a opção mais curial, pois permite uma leitura mais fácil. III Relevância da correspondência de Camilo Pessanha A correspondência faculta, grosso modo, um caudal informativo substancial. Poderá convidar – se o destinatário for familiar ou amigo e, sobretudo, se exis tirem afinidades eletivas – ao intimismo, à escrita confessional, à partilha de segredos, projetos, ideais, anseios, conjeturas e temores. Poderá ainda espelhar facetas desconhecidas e inesperadas da personalidade que não se identificam com a imagem pública, tantas vezes esmeradamente cultivada, a qual nem sempre prima pela autenticidade, ou se pauta pela genuinidade possível. Há, na verdade, uma esfera pública e uma esfera privada no ser social, uma fronteira indelével que a correspondência, por vezes, esmaece, ou anula. Os expatriados escrevem, com alguma frequência, compulsivamente para compensar a ausência das pessoas dos seus afetos. É uma forma de, igualmente, estarem em contacto com a sua cultura, com a sociedade que os configurou, que lhes deu rosto. A título de exemplo, o pecúlio epistolar de Wenceslau de Moraes,
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que percorreu as sete partidas do mundo e se radicou, durante cerca de quarenta e dois anos, em Macau e no Japão, ascende a cerca de dois mil exemplares. Ao contrário de Voltaire – e, recorde-se, são cerca de dez mil as missivas que se estimam da autoria deste paradigma do Iluminismo francês –, Camilo Pessanha era muito parco em notícias. Durante alguns anos não escreveu uma linha sequer, como o próprio afirma, justificando a sua prolongada reclusão. Uma «abulia sem remédio», corolário de uma «fatalidade» inelutável, assim se definia após rigorosa introspeção. Diagnóstico que repetiu na abertura da Clepsidra: Eu vi a luz em um país perdido. A minha alma é lânguida e inerme. Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído! No chão sumir-se, como faz um verme…
Sendo a sua «alma inerme», indefesa, nos antípodas dos valores prevale centes, o poeta optou por se refugiar no limbo da sociedade, mais propício à serenidade, à vivência interior e à quietude búdica, numa solidão de eremita. E a morte, em última instância, constituía uma forma de ultrapassar o sofrimento que o dilacerava: Porque o melhor, enfim, É não ouvir nem ver… Passarem sobre mim E nada me doer! […] E eu sob a terra firme, Compacta, recalcada, Muito quietinho. A rir-me De não me doer nada.
Esse corte radical, quer com Macau, quer com Lisboa – cidade onde foi «amachucado e sovado durante cinco angustiosos meses»1 –, é extensivo aos seus afetos. Nestes incluem-se os familiares mais próximos, com quem entrara em colisão devido à forma de perspetivar o futuro do irmão Manuel, e os amigos de longa data. Numa carta dirigida a Carlos Amaro, Camilo Pessanha equaciona o seu mutismo:
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Carta a Henrique Trindade Coelho, 8 de novembro de 1916.
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Há muito que deveria ter-lhe escrito, – pelo menos para felicitá-lo pelo advento da nova era2, cuja violência tanto abrasava o seu coração de profeta, e para agradecer-lhe esses piedosos mementos, quase isocrónicos, cuja notícia tem sido aqui, na completa solidão da minha alma, o meu único conforto moral. Não mo tem, porém, permitido a minha própria enorme tristeza (de um destino sombrio já de há muito reconhecido irrevocável), – a qual, desde que há três anos, aqui desembarquei, me fez renunciar a todo o convívio intelectual ou afetivo. Não escrevo, nunca escrevo, senão, e com que horror!, aquilo que sou obrigado a escrever nos trabalhos forçados do meu emprego. Escrever, principalmente cartas às pessoas amadas, é refletir, e refletir é esgravatar em todas as feridas, para sempre doridas, do passado, tomar as alturas à situação presente, sondando os abismos da minha miséria, o perscrutar nas trevas do futuro, onde todas as esperanças de alegria morreram… E, pior do que tudo, é arriscar‑me a ter o conhecimento de outras desgraças que adivinho e cujo pressentimento me traz a alma constantemente de luto3.
Dirigindo-se a António Pinto de Miranda Guedes, Camilo Pessanha justifica uma vez mais a ausência de contatos epistolares: Não lhe escrevi, porque o meu querido amigo bem sabe que daquela sepultura não escrevo a ninguém. Escrever às pessoas queridas é para mim debruçar ‑me sobre as minhas próprias dores, tomar nas mãos a minha própria alma, toda em uma chaga viva. Tolhe-me de medo só a ideia dessa tortura4.
Idêntica declaração faz a Carlos Amaro: Apesar do meu horror à escrita, já são, com esta, três cartas que no ano corrente lhe escrevo5.
Tal «fobia» – «longos anos estive sem escrever a ninguém», confessa a Alberto Osório de Castro – é extensiva à criação poética. Conhecem-se, na verdade, apenas cinquenta e seis poemas da sua autoria, situando-se o período mais fértil da sua produção literária, sensivelmente, entre 1887 e 1901.
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A República, implantada a 5 de outubro de 1910. Carta de 8 de março de 1912. Carta a António Pinto de Miranda Guedes, 27 de novembro de 1915. Carta de 22 de dezembro de 1912.
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Em 1907, por um lado, a publicação de Flores de Coral de Alberto Osório de Castro, e, por outro, a sua quase total incapacidade física, provocada por uma doença contumaz, desencadearam alguns laivos de inspiração que o levaram a registar, num caderno, alguns poemas e a enviá-los para aquele seu dileto amigo, então magistrado em Timor. Lampejos fugazes, fulgurações que se desvaneceram como um cometa no espaço sideral. Só em 1912 há notícia de um projeto poético que se veio a saldar, dois anos mais tarde, na tradução de oito breves elegias chinesas. Em 1916, regressado a Portugal em período de férias, incentivado por uma plêiade de escritores que o ouvia discretear sobre os sortilégios e os mistérios insondáveis da China e o desafiava a revelar as sonoridades encantatórias da sua poesia, Camilo Pessanha – por sugestão de Ana de Castro Osório, proprietária de uma editora – pôs a hipótese de publicar um livro; entregou-lhe então dezoito manuscritos, dezasseis dos quais foram dados à estampa, em 1916, na Centauro. Não há notícia de qualquer reação sua e o exemplar da revista que lhe pertenceu apenas apresenta correções de pormenor. Apesar de ter garantido à sua irmã maçónica que enviaria outros poemas, a sua promessa diluiu-se, após o seu regresso ao Extremo Oriente, nos fumos do ópio. Numa carta dirigida a Henrique Trindade Coelho, em 1917, incluiu dois, elaborados sob o efeito daquele estupefaciente, que se revelaram o seu canto do cisne no domínio da composição poética. Finalmente, em 1920 foi publicada a Clepsidra, obra que teve uma intervenção mitigada do seu autor6. As cartas de Camilo Pessanha constituem um caudal informativo substancial, sendo fulcrais para se traçar o seu perfil psicológico. Revelam-nos, com efeito, a sua manifesta dificuldade de adaptação a um meio adverso e a sua opção por um estrito isolamento; a doença, companheira impiedosa do seu quotidiano; a depressão que o tolhia, enovelado numa angústia profunda, considerando‑se um «vil destroço» e um «pobre espírito sucumbido»; os temores e os espetros que o assolavam, especialmente aqueles que se prendiam com a perda de faculdades mentais do irmão Manuel e conduziram a fraturas irreversíveis familiares; a autocomiseração – «na decadência do meu próprio espírito», «inválido como eu», «este vil destroço de mim mesmo, repugnante e incó modo», a «minha miserável vida, ininterrupta sequência de sofrimentos físicos, de agonias morais, de tragédias, de catástrofes» – por julgar que o seu percurso existencial era o corolário de um duro legado, uma «implacável obsessão de
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O respetivo historial foi feito por vários investigadores; destacamos o de Paulo Franchetti, que se encontra consignado na sua edição crítica da Clepsidra (franchetti 1995).
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fatalidade», que, alegadamente, casamentos consanguíneos na família poderiam explicar. Uma dedicatória de Camilo Pessanha, incluída neste volume, corrobora a sua aguda capacidade introspetiva: À Senhora Dona Ana de Castro Osório, em preito de admiração pelo seu ininterrupto e fecundo labor espiritual, orientado e altruísta, esta mesquinha folha de papel, liquidando em falência vinte e dois anos de vida demente, sem intuitos, nem disciplina, nem utilidade, com largos períodos de embruteci mento apático e intermitentes agitações de furor desconexo, entre visões delirantes, – fantasmas de outras raças e de outras idades.
Tal perfil psicológico permite-nos compreender a estrutura da Clepsidra, obra que, por indicação do autor, se inicia e finaliza com poemas de desalento e de renúncia. A vida amorosa de Camilo Pessanha é também clarificada com a leitura da sua correspondência. Nela existem, com efeito, referências a uma paixão frus trada por uma familiar de Aires de Castro e Almeida e a Águia de Prata, com quem partilhou os últimos anos da sua vida. A transcrição de duas cartas suas, dirigidas a Ana de Castro Osório, e a resposta desta escritora, versando o seu pedido de casamento, constituem igualmente elementos marcantes para a compreensão do seu carácter e da sua psicologia. A prosa de Camilo Pessanha é, como afirmámos, exígua e esparsa. No que diz respeito à literatura, apenas se conhecem duas críticas, em 1888 e 1910, às obras Versos da Mocidade e Flores de Coral, respetivamente de António Fogaça e de Alberto Osório de Castro, e o teor de uma conferência, proferida em 1915, sobre estética literária chinesa. O escopo específico daqueles textos, infelizmente, circunscreve as suas considerações. É apenas na correspondência que Camilo Pessanha se debruça sobre a sua poesia, revelando afinidades com Paul Verlaine, a admiração que nutria pela obra de Rubén Darío, a forma como, sob o efeito do ópio, se configuraram no seu espírito duas composições e a sua anuência relativamente à metodologia perfilhada por Ana de Castro Osório na edição da Clepsidra. A presente correspondência permite, por outro lado, aferir os seus momentos criativos mais pródigos e os mais áridos, bem como a sua datação. Nela estão ainda presentes os seus projetos literários, por vezes afirmativos – aquele que explicita a seu primo, José Benedito de Almeida Pessanha –, outras vezes tímidos e hesitantes, como é o caso daquele que envolve a tradução das «Oito Elegias Chinesas», segundo ele um «formoso cancioneiro da Dinastia Ming». Uma
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constante é percetível: a sua extrema insegurança, por exemplo relativamente ao seminal – pela polémica que encerra – prefácio a Esboço Crítico da Civilização Chinesa, de José Filipe de Morais Palha, ou à colaboração dispersa por revistas e jornais. Alguns textos narrativos publicados por Camilo Pessanha durante a sua frequência da universidade encerram claramente as suas opções políticas republicanas. No conto «Entre os Gaiatos», o autor faz questão de as vincar, tirando ele próprio conclusões: […] E postos estes princípios, lá vai a moralidade-conceito. No decurso do autem genuit que tens aturado (gabo-te a paciência) tentei desenhar em miniatura os tipos da classe fidalga e da classe oprimida. A pri meira tem criados e ministros e soldadesca e verdugos. É vítima da sua educação, como o Beto da Viscondessa, inteligente e loiro, devaneador e anémico. A outra, sabes qual é e quem a representa – o distribuidor do Notícias, trabalhador e são, despreocupado e rebelde, descansando em tarde de agosto nos bancos das praças públicas, a fitar os pardais, que descrevem perto dos telhados, círculos nervosos. De vez em quando parte um pião, faz bernarda, dá pontapés num trono. Mas de ordinário puxam-lhe as orelhas, prendem-no, dão-lhe cutiladas. O povinho, entrando na cadeia, ou fugindo na frente das baionetas, vermelho de raiva e pancadaria, meneia a cabeça ameaçadoramente. Mas acomoda-se, e na sua desgraça apenas conserva o direito de troçar em gargalhadas francas a ridicularia pelintra dos criados palermas que o chicoteiam ou dos amos cobardes que têm a baixeza de entregar o chicote. Ao menos, Deus louvado, – não podem, não podem impedir-lhe tal desafogo.
As cartas de Camilo Pessanha dirigidas a Carlos Amaro são o testemunho mais elucidativo das suas convicções políticas, as quais não foram, até ao momento, equacionadas pelos seus biógrafos. Em primeiro lugar, desvendam o seu republicanismo vincado; em segundo lugar, o seu profundo anticlericalismo, em sintonia com os valores prevalecentes na intelectualidade portuguesa desde, pelo menos, os finais do século xix; finalmente, a sua atitude relativamente ao poder, mais concretamente, aos governadores de Macau, cujo convívio – sendo Eduardo Marques e José Carlos da Maia as exceções – evitava sobremaneira. Henrique Paiva Couceiro foi o oficial mais contumaz e inconformado com o regime decorrente do 5 de outubro de 1910. Sob o seu comando, tiveram lugar as revoltas de outubro de 1911, julho de 1912, 5 de outubro de 1913 e a
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Monarquia do Norte, sendo esta jugulada a 13 de fevereiro de 1919. O regozijo pela derrota das forças monárquicas foi geral. Em Macau, constituiu-se uma comissão para a celebrar, sendo Camilo Pessanha um dos seus principais impulsionadores e primeiro signatário da convocatória7. Presente na sua correspondência está também a crítica social, em sintonia com alguns contos redigidos na juventude, os quais foram publicados em periódicos de Coimbra e de Mangualde. Camilo Pessanha era, na verdade, um arguto observador da realidade, que perfilhava ideais humanistas e sujeitava ao crivo casuístico estatutos e comportamentos tidos como intocáveis. A avidez colonial e a sua frequente impunidade são por ele descritas da seguinte forma: Eu também detesto a nossa África Ocidental, a pérola das nossas colónias, pelo que dela me posso figurar: negociantórios boçais, militarejos ladrões, magistradórios acomodatícios, todos mais ou menos negreiros, todos mais ou menos mulatos, todos mais ou menos degredados. Alguns tenentesórios que com escala por lá têm ido bater a Macau, vê-se-lhes na dentuça a obsessão do imposto de palhota…
Camilo Pessanha foi, durante muitos anos, exclusivamente associado à poesia: a maioria dos seus biógrafos considerava que a sua obra se esgotava na Clepsidra. Hoje em dia, já se conhece a sua empatia pela civilização chinesa. Note-se que o escritor, logo que chegou a Macau, iniciou o estudo do mandarim e do cantonense, como testemunham duas fotografias em que se encontra ao lado do seu professor, estando numa delas também Wenceslau de Moraes. Esta sua opção é, de resto, confirmada numa carta dessa época, dirigida a seu pai: Ando a estudar com todo o interesse, apesar da minha surdez, a língua e os costumes chinas. Quando souber alguma coisa, poderei então escrever, e desde já prometo escrever, uns artigos8.
A decisão de estudar a idiossincrasia chinesa e a ambivalente realidade local, para melhor as descrever e equacionar, não era frequente nos portugueses que demandavam as colónias. Nas primeiras cartas enviadas ao pai, depois de ter partido para o Extremo Oriente, é notório o seu entusiasmo e a sua abertura relativamente à pluralidade cultural. Referimo-nos à sua escrita, emotiva, de carácter impressionista, que contempla o Egito e os seus habitantes, o Ceilão e 7 8
A Colónia (Macau), 18 fev. (pessanha 1992:293). Carta a Francisco António de Almeida Pessanha, 2 de maio de 1894.
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os vestígios indeléveis dos nautas portugueses, Singapura e a exuberância dos Trópicos, e Macau, que, de imediato, com a sua mescla cultural, caldeada por longos séculos de convívio, o desvaneceu. A correspondência de Camilo Pessanha menciona a sua atividade como sinólogo. Relata a evolução da sua aprendizagem do idioma, quer do mandarim, a língua nacional, quer do cantonense, aquela que se fala na província de Cantão e em Macau. Um tirocínio que se revelou, sem dúvida, árduo, devido nomeadamente aos tons que ambas apresentam: quatro a primeira, oito a segunda, características que dificultam sobremaneira o seu domínio por parte dos ocidentais. Porém, tal dificuldade foi amenizada por se tratar de uma «inverosímil língua escrita» que apresenta «complexos e transcendentes aspetos da beleza literária das composições e da beleza plástica das grafias artísticas»9. Não surpreende, deste modo, que numa missiva, dirigida a Carlos Amaro, datada de 22 de dezembro de 1912, confessasse: Desde que deixei a vara de juiz, é decorar, decorar letras chinas. Bem desejaria publicar um dia meia dúzia de pequenas traduções; mas a empresa, a ser a coisa como eu a tenho esboçada, é cheia de dificuldades.
Referia-se às «Oito Elegias Chinesas», publicadas dois anos mais tarde nas páginas do jornal macaense O Progresso. E, de forma ainda mais elucidativa, afirmava: Em quase vinte anos de Macau, fui-me adaptando ao meio, por um trabalho penível, embora em parte inconsciente, que me incapacitou para ser qualquer coisa fora daqui. São quase vinte anos de estudo, mais ou menos assíduo, da língua chinesa, dos costumes chineses, da arte chinesa. A língua, principalmente desde que cheguei aqui a última vez, há três anos, tenho-a estudado brutalmente, – no furor de me absorver fosse no que fosse, para ver se conseguia distrair-me de tantas desgraças a que não posso dar remédio e que são a minha obsessão10.
Sabe-se que a literatura chinesa foi objeto particular da sua admiração. No início de uma conferência proferida, a 13 de março de 1915, no Clube Militar de Macau, Camilo Pessanha traçou, da seguinte forma, o respetivo escopo: 9
Camilo Pessanha – Prefácio a Esboço Crítico da Civilização Chinesa de J. António Filipe de Morais Palha. Macau: Tipografia Mercantil de N. T. Fernandes e Filhos, 1912 (pessanha 1992:151). 10 Carta a Carlos Amaro, 8 de março de 1912.
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