Freud - O movimento de um pensamento

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universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta

Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Esdras Rodrigues Silva – Guita Grin Debert João Luiz de Carvalho Pinto e Silva – Luiz Carlos Dias Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Antunes – Sedi Hirano

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Luiz Roberto Monzani

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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.

ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação M769f

Monzani, Luiz Roberto, 1946Freud: O movimento de um pensamento/ Luiz Roberto Monzani. – 3. ed. – Cam­pinas, sp: Editora da Unicamp, 2014.

1. Freud, Sigmund, 1856-1939. 2. Psicanálise. I. Título. e-isbn 978-85-268-1247-5 cdd 150.1952

Índices para catálogo sistemático:

1. Freud, Sigmund, 1856-1939 2. Psicanálise

Copyright © by Luiz Roberto Monzani Copyright © 2014 by Editora da Unicamp 2a edição, 1989

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Para Josette: Kar ne pot nent vivre sanz li; d’euls deus fu il tut autresi cume del chievrefoil esteit ki a la codre se perneit: quant il s’i est laciez e pris e tut entur le fust s’est mis, ensemble poënt bien durer; mes ki puis les volt desevrer li codres muert hastivemente e li chievrefoilz ensement; Belle amie, si est de nus: ne vus sanz mei, ne mei sanz vus! (Marie de France)

Para Juliana e Luiz Henrique Monzani.

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Sumário

Prefácio à terceira edição. . ......................................................

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Prefácio. . ................................................................................. 13 Introdução.............................................................................. 15 1. 2. 3. 4.

Sedução e fantasia.............................................................. 31 A máquina de sonhar.. ........................................................ 59 Nos confins do prazer......................................................... 141 A raiz do inconsciente . . ....................................................... 227

Conclusão – A espiral e o pêndulo.......................................... 293 Bibliografia............................................................................. 297

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Prefácio à terceira edição José F. Miguel H. Bairrão*

É sempre oportuna a republicação de Freud, o movimento de um pensamento, um dos marcos fundantes da tradição de reflexão filo­ sófica sobre psicanálise produzida no Brasil. Não apenas por sua perene atualidade, em se tratando de um clássico, como também porque o tempo se incumbiu de mostrar que este é um daqueles raros livros que instituem um padrão de qualidade e de rigor exem­ plar, para grande benefício de todos os estudiosos do pensamento psicanalítico. Desta forma, o leitor tem em mãos não apenas uma leitura obrigatória para quem pretenda adentrar o complexo e pouco linear universo da reflexão teórica psicanalítica, como também um dos pilares do campo de pesquisa em filosofia da psicanálise que se consolidou entre nós. Originalmente uma tese de doutorado em filosofia, seria contra­ ditório ao seu espírito de minuciosa e laboriosa elucidação da ges­ tação e da reelaboração das teses freudianas pretender resumir a obra por meio de generalidades à guisa de uma resenha. No atinente ao seu conteúdo, a leitura atenta e não apressada por parte de cada pessoa interessada é a melhor introdução. Sua forma de explanação de alguns dos principais desafios do pensamento freudiano – como o suposto abandono (definitivo) da teoria da sedução em 1897, a *

Doutor em Filosofia e professor associado do Departamento de Psicologia da Universidade de São Paulo.

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suposição de uma ruptura drástica entre o “Projeto de uma psicolo­ gia para neurólogos” e a “Interpretação dos sonhos”, o alcance e a extensão de uma referência à morte na teoria psicanalítica e as questões suscitadas pela passagem da primeira à segunda tópica – é marcada por meticulosa atenção a eventuais contraexemplos ou por caminhos alternativos à linha de raciocínio a cada momento seguida, preocupada em não contornar dificuldades em prol de soluções fáceis e parciais. Esse é um dos principais prazeres e ensinos que se podem obter com esta leitura, que não substitui a frequência assídua aos textos de Freud, mas dá suporte à sua revisitação, revigorada pelo assinala­ mento de pontos nevrálgicos, cujo desconhecimento pode desen­ caminhar o estudioso. Por isso gostaria de chamar a atenção do leitor para o lugar muito especial que o livro ocupa na história da disciplina que, praticamente, funda entre nós: embora inequivocamente se trate de leitura im­ prescindível a uma iniciação efetiva à problemática teórica psica­ nalítica, não reduzida a orientações ou doutrinas, trata-se também de uma preciosa fonte para a formação de leitores em psicanálise e em filosofia. Sob a pena de Monzani nenhum problema é rápida e falsamente ultrapassado. As dificuldades e os impasses presentes no texto freu­ diano, pelo contrário, são devidamente localizados, apontados e pacientemente refletidos, de modo a extrair as suas possíveis sinali­ zações para uma compreensão mais refinada e profunda do autor, mediante o seu esclarecimento na trama mesma dos conceitos, sem as facilidades e a impropriedade de “soluções” exteriores ou da re­ dução da teoria psicanalítica ou deste ou daquele conceito, seques­ trados do seu contexto, a uma espécie de “brilhante” ilustração de teses de terceiros. Caso algum dia esse risco de banalização e esterilidade no modo de conceber e na forma de fazer filosofia da psicanálise vier a se consumar ou a se tornar majoritário (perigo que, seria hipócrita negá-lo, vez por outra ronda a disciplina), sempre será possível 10

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apontar este livro como um contraexemplo favorável à recuperação de um rigor e de uma ética de leitura rente ao texto e às suas questões. O leitor que se dispuser a acompanhar o fio argumentativo deste livro, a par de descobrir uma sofisticação e uma complexidade na teoria psicanalítica exposta com uma clareza invulgar, igualmente será premiado com um magnífico exemplo de descrédito em estra­ tégias de leitura fáceis, por meio de chaves interpretativas monote­ máticas, quais pés de cabra teóricos capazes de homogeneizar os horizontes discursivos mais ímpares. Pois este livro a respeito do movimento do pensamento de Freud é também o ponto de origem de um movimento de formação de uma escola de filosofia da psicanálise perfeitamente atual e necessá­ ria ainda hoje, atenta às sinuosidades e arestas dos textos, sem forjar falsos encaixes e eliminar problemas, em cujo exemplo eu e, tenho a certeza, muitos colegas igualmente discípulos do professor Luiz Roberto Monzani nos inspiramos e reconhecemos.

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Prefácio

O conjunto destes textos foi escrito entre o final de 1981 e o começo de 1982. Desde aquela época, havia uma efervescência com relação à psicanálise que continua atenuada até hoje. O primeiro problema com que me deparei ao editá-los foi o da atualização da bibliografia, que assumiu proporções volumosas desde então. Optei por deixar o texto tal como estava. Nada, até onde pude acompanhar essa produção, fez com que minhas posições fossem basicamente alte­ radas. Pensei em introduzir, é claro, aqui e ali, pequenas modificações, atenuaria certas afirmações e ressaltaria outras. Mas, no conjunto, o trabalho continuaria o mesmo. Julguei, portanto, desnecessárias tais mudanças. Gostaria, no entanto, de destacar alguns pontos. Com relação à teoria da sedução, desde o início, aceitei a posição indicada, já naquela época, por J. Laplanche, de que a ideia de que houve pura e simples­ mente um arquivamento dessa mesma teoria deveria ser repensada. Procurei, no fim das contas, desenvolver as sugestões de Laplanche. No entanto, em 1987, o autor publicou uma obra (Nouveaux fon­ dements pour la psychanalyse, Paris, PUF) onde desenvolve as suges­ tões que colocava nos seus primeiros textos. Desenvolve, sobretudo, a ideia de “sedução originária” como núcleo central da psicanálise, tendo como base a ideia de um choque de linguagens. Essa ideia eu mesmo insinuo no fim do primeiro capítulo do presente texto. Mas de maneira alguma concordo com o desenvolvimento e a concei­ 13

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tuação que Laplanche faz da questão. Queria apenas aqui assinalar minha divergência. Desenvolvê-la e explicitá-la exigiria, no mínimo, um longo artigo ou um pequeno livro. Conservei, na introdução, uma série de considerações a respeito da natureza do trabalho que ofereço ao leitor e que rotulo de “epis­ temológico”. Confesso que, para mim, hoje, essa é uma questão se­ cundária. Deixei-a apenas como um testemunho de um modismo que fez época. Hoje tenho tendência a pensar que, se existe uma teoria da leitura como compreensão das articulações de um texto, ela é a mesma nos seus pressupostos gerais e básicos, e pode ser aplicada seja a Descartes, seja a Freud, seja a Laclos ou às “Eddas”, mitológicas ou heroicas. Atibaia, dezembro de 1988

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Introdução

I “Qual? Porque eles são dois”: essa era, ao que tudo indica1, a tese preliminar assumida e a partir da qual todo projeto de leitura de Auguste Comte, até por volta de 1930, se delineava. Assumida a dualidade, era preciso então escolher entre o Comte do Cours (o sistematizador do saber positivo) e o do Système (o teorizador da religião da humanidade e da sociolatria). Escolha que era feita, evi­ dentemente, em função das respectivas valorizações das duas obras e da consequente alocação do “bom” Comte. Só lentamente, a partir da obra de Gouhier2 e do texto capital de P. Arnaud, é que essa questão tomou outra figura. Respeitadas as diferenças, pode-se dizer que algo similar ocorre hoje com a obra de Freud, com o agravante de que, em relação a este, pode-se falar não em dois aspectos, mas em três ou quatro. Haveria, por exemplo, o Freud neurólogo, até por volta de 1897, data em que, por fim, teria abandonado definitivamente essa posição. Ou, então, haveria o Freud adepto da teoria da sedução até por volta da mesma época, quando, percebendo seus enganos, teria posto esta de lado e colocado as verdadeiras bases da etiologia das neuroses através dos conceitos de fantasia e sexualidade infantil. Erros longínquos e fa­ cilmente explicáveis, poder-se-ia dizer, já que se trata exatamente 15

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dos momentos difíceis da constituição da psicanálise, em que, por­ tanto, as hesitações e os descaminhos são de esperar. Todavia, as questões não estacionam nesses pontos. Como es­ quecer a famosa reviravolta dos anos 1920? A começar, por exemplo, pela introdução da noção de “pulsão de morte”, através da qual, tudo parece indicar, a teoria psicanalítica encontraria outras bases de fundamentação. A insistência dos estudiosos do pensamento de Freud nesse ponto não deixa de ser inquietante, como veremos. Para tomar um último exemplo, há também, nos anos 1920, a subs­ tituição, operada por Freud, da primeira teoria, a topográfica, do aparelho psíquico, por uma segunda, conhecida como teoria estru­ tural. Aqui, mais uma vez, os fundamentos da primeira teoria pare­ cem ser abandonados em função dos de uma outra, nova. Não é difícil perceber, com a ajuda desses exemplos, que, se se tomam essas “mudanças” num sentido estrito, acaba-se por cindir a obra de Freud em três: haveria um primeiro corpus que se estenderia até por volta de 1897, um segundo que estaria delimitado desde A interpretação dos sonhos até mais ou menos os escritos sobre Me­ tapsicologia, e, por fim, um terceiro, que se abriria com Além do princípio do prazer. O problema que nasce dessa visão da obra é: como manejá-la? Que textos temos o direito de usar e quais devem ser arquivados? Mas, sobretudo, o que se torna problemático é a utilização de textos de diferentes épocas para abordar um determi­ nado problema, como, por exemplo, no caso da histeria. Esse pro­ cedimento é muito frequente quando se analisa um conceito ou uma temática na obra de Freud. Um trabalho de justificação parece se impor como preliminar. Tomemos um exemplo: que atitude devemos adotar com relação ao texto do Projeto de uma psicologia para neu­ rólogos, de 1895? Duas grandes correntes, em franca oposição, se instalaram. A primeira não vê nesse texto nenhum outro interesse senão o de mera erudição histórica. Texto inacabado, não publicado e não reconhecido pelo autor, ele deve, portanto, ser encarado como uma peça de museu. Já a segunda corrente, representada por autores com preocupações mais filosóficas, vê no Projeto... o embrião do 16

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conjunto de teses e teorias psicanalíticas que Freud desenvolverá ou explicitará no decorrer de sua obra posterior. Nessa última hipótese, no entanto, não se detecta nenhum corte, nenhuma censura radical em sua obra e uma certa identidade permanece nos seus diferentes textos, não só no nível dos temas como também no nível dos prin­ cípios e fundamentos da teoria. Percebe-se que estamos defronte a duas opções de leitura da obra de Freud e ambas acabam desembocando em problemas de difícil solução. Se se quer ver delimitações radicais, o procedimento é seccionar a obra e, passo seguinte, valorizar um dos segmentos em detrimento dos outros. Essa opção, que ao nível abstrato pode ser coerente, acaba, na verdade, indo de encontro a problemas de difícil solução3. Se, pelo contrário, toma-se o outro partido, fica sempre de pé a questão: qual é o correto? É por causa disso que muitas vezes, quando operadas certas passagens no interior da obra (do Projeto... à Metapsicologia, para continuar na mesma linha de exemplos), o leitor pode ficar tomado por dúvidas sobre a legitimidade de tal operação. Em suma, salvo raras exceções, até hoje, nem uma nem outra posição parecem ter justificado claramente a sua legitimidade. Isso talvez seja um indício de que o problema não está bem colocado. O que acontece, de fato, há tempos, é que nos enclausuramos num impasse em forma de dilema: ou o pensamento de Freud forma um bloco monolítico ou há, em algum lugar, uma descontinuidade equivalente a uma ruptura. Ambas as posições, como já indicamos e como veremos no decorrer deste trabalho, são muito difíceis de ser sustentadas. Poder-se-ia argumentar que é a própria colocação do problema que gera impasse, como acabamos de dizer, e que, se se observa mais atentamente o conjunto da obra de Freud, assistimos a um desenvol­ vimento até um estágio final em que nem tudo é mantido, mas também nem tudo é negado. Essa hipótese é interessante porque, de um lado, parece dar conta das várias mudanças ocorridas ao longo da obra e, de outro lado, mantém um princípio de continuidade que unificaria essa mesma obra. 17

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As metáforas evolucionistas são sedutoras mas problemáticas. Fica-se pensando se, quase sempre, não acabam por mascarar, através de um nome, aquilo mesmo que se pretende resolver. O termo de­ senvolvimento, por exemplo, é extremamente ambíguo. Em certos momentos, tem uma conotação gradativa evidente, como quando se fala, por exemplo, no desenvolvimento físico de uma criança. Às vezes parece implicar certas mutações qualitativas, como quando se fala no desenvolvimento da crisálida à mariposa. No primeiro caso, é sempre a figura do “mesmo” que está presente. No segundo, é toda a querela milenar do “mesmo” e do “outro” que se instala. Tudo isso é por demais conhecido para que insistamos. Voltando ao nosso problema: dizer que há uma “evolução” do pensamento de Freud ou um “desenvolvimento” em sua obra (coisa que não pretendemos negar) é apenas escamotear o cerne da questão. Pode-se dizer que há um desenvolvimento do pensamento freudiano, mas é preciso esclarecer o que se entende por essa ideia, caso con­ trário, estaremos apenas rotulando um problema e não o solucionando. Mannoni, por exemplo, afirma que, embora as superando, Freud nunca abandonou ou renegou uma só de suas ideias4. Pode ser que seja verdade e pretendemos investigar esse ponto. O importante é que, insistimos, é inútil colocar essa tese (ou a sua contrária) no plano de uma afirmação genérica e vaga. A verdade é que até hoje essa discussão não foi organizada e sistematizada. Para a grande maioria dos estudiosos de Freud, sem­ pre há uma opção prévia perante a colocação dessa questão. Não estamos questionando em nenhum momento esse direito de escolha. O que estamos tentando salientar é que um trabalho prévio, antes de pressupor ou indicar, seja a continuidade, seja a ruptura, se impõe: do ponto de vista lógico, o de tentar fundamentar qualquer dessas opções. Nessa perspectiva, um dos méritos da obra de Ricœur5 é o de, sob certos aspectos, tentar explicitar as razões pelas quais opta por uma determinada leitura. O presente trabalho tem como ponto de partida a ideia de co­ meçar a organizar mais sistematicamente os polos dessa discussão 18

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para, a partir daí, tentar compará-los e, se possível, se não indicar soluções, apontar os defeitos de algumas propostas. Até agora utilizamos de forma genérica e vaga termos como “mudança”, “continuidade”, “ruptura”, sem nos preocuparmos muito em precisar o sentido destes quando aplicados de maneira mais es­ pecífica à obra de Freud. Contentamo-nos em apontar algumas amostras daquilo que certos autores consideram, por exemplo, momentos de ruptura no pensamento de Freud. “O exemplo é a coisa mesma” (“Das Beispiel ist die Sache Selbst”)6, anotava Freud ao escutar um de seus mais famosos pacientes. E tinha razão. Mas é preciso concordar também que haja, para que isso seja verdade, a explicitação das determinações que aí estão contidas. Que Freud tenha, no decorrer de sua carreira teórica, mudado várias vezes de posição a respeito de determinados problemas é uma verdade elementar que o simples olhar endereçado a seus textos prova insofismavelmente. Quantas vezes, em suas diversas obras, ele não adiciona uma nota para retificar seus pontos de vista de acordo com as novas indicações que lhe fornece a prática clínica? Um exemplo, tomado ao acaso, é a posição de Freud com relação ao masoquismo. De início, Freud pensa-o como secundário, derivado. Depois, no entanto, de Além do princípio do prazer, percebe que deveria existir um masoquismo primário, e, em uma nota de 1924, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, escreveu: Minha opinião sobre o masoquismo foi em grande parte alterada por reflexões ulteriores baseadas em certas hipóteses quanto à estrutura do aparelho da mente e às classes de pulsões que nele atuam7.

Desse ponto de vista, a psicanálise é uma disciplina que, mesmo possuindo um estatuto muito particular, é tão sujeita a mudanças quanto qualquer outra. Estranho seria que tal não acontecesse. Ocorre que o problema que estamos tentando abordar não se situa nesse nível. O fato de que Freud tenha introduzido adições, retificações, conceitos clínicos novos, não precisa afetar, em princípio, o estatuto 19

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das bases e dos fundamentos teóricos sobre os quais o discurso psi­ canalítico está estruturado. Isso já nos conduz, portanto, a um ponto mais preciso: quando discutirmos o conceito de mudança, o faremos no nível desses prin­ cípios e desses fundamentos. Essas alterações advindas da prática clínica, no entanto, não nos serão indiferentes. Mas elas só nos in­ teressarão na medida em que possam afetar a estrutura teórico-expli­ cativa da psicanálise. O exemplo que demos há pouco, a assunção de um masoquismo primário, não nos parece afetar a essência da teoria psicanalítica; essas mudanças (enquanto adições, retificações, res­ trições) não despertarão nosso interesse8. Coisa diferente parece acontecer, por exemplo, com a introdução do conceito de “narcisismo”. Essa noção, com efeito, acabou por esfumaçar o primeiro dualismo pulsional e parece que foi a partir dela, de fato, que Freud se viu obrigado a introduzir um novo dualismo – este, sim, segundo inú­ meros autores, tendo provocado uma mudança radical no estatuto da teoria. Em casos como esse, então, nossa atenção estará também voltada para essas mudanças oriundas da prática clínica e, assim, quando discutirmos a noção de “pulsão de morte”, procuraremos entender qual o papel que a introdução do conceito de narcisismo exerceu nessa reviravolta. A essa altura, talvez consigamos colocar com um pouco mais de exatidão a questão que subjaz a esse debate: existe, na obra de Freud, um núcleo teórico comum que a atravessa de ponta a ponta e que (independentemente de todas as variações que ela tenha sofrido) é razão suficiente para não pensarmos numa ruptura, isto é, numa mudança radical de seus próprios fundamentos? Ou, pelo contrário, em algum momento essa teoria se modifica de tal maneira que, entre o resultado dessa modificação e o que havia anteriormente, acaba existindo uma incompatibilidade? Por exemplo, Arlow e Brenner escreveram um estudo9 muito interessante em que tentam mostrar que, entre as duas tópicas (a teoria topográfica e a teoria estrutural), a relação é de pura incompatibilidade, e que a segunda é sempre mais satisfatória que a primeira. A consequência disso, 20

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