História e memória

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universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta

Conselho Editorial Presidente Paulo Franchetti Christiano Lyra Filho – José A. R. Gontijo José Roberto Zan – Luiz Marques Marcelo Knobel – Marco Antonio Zago Sedi Hirano – Silvia Hunold Lara

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Jacques Le Goff

história e memória

7a edição revista

Tradução Bernardo Leitão, Irene Ferreira e Suzana Ferreira Borges

Revisão técnica Néri de Barros Almeida

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ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação

Le Goff, Jacques, 1924L525h

História e memória / Jacques Le Goff ; tradução Bernardo Leitão... [et al.]. – 7a ed. revista – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013. Tradução de: Storia e memoria 1. Historiografia. I. Título.

ISBN 978-85-268-1008-2

CDD 907.2

Índice para catálogo sistemático: 1. Historiografia

907.2

Copyright © 1977, 1978, 1979, 1980, 1981 e 1982 by Giulio Einaudi editore s.p.a., Torino Copyright © 2013 by Editora da Unicamp Os ensaios aqui reunidos foram originalmente publicados nos volumes I, II, IV, V, VIII, X, XI, XIII, XV da Enciclopédia Einaudi. 1a edição, 1990

Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, dos detentores dos direitos.

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sumário

prefácio..................................................................................................................................................................................... 9 primeira parte – a história história................................................................................................................................................................................. 21

Paradoxos e ambiguidades da história..................................................................................................... 27 A mentalidade histórica: os homens e o passado............................................................................ 49 As filosofias da história............................................................................................................................................. 76 A história como ciência: o ofício de historiador............................................................................104 A história hoje................................................................................................................................................................123

segunda parte – pensar a história antigo/moderno............................................................................................................................................161 Um par ocidental e ambíguo............................................................................................................... 161 A ambiguidade de antigo: a Antiguidade greco-romana e as outras. ...................164 Moderno e os seus concorrentes: moderno e novidade, moderno e progresso. ..............................................................................................................................................................................166 Antigo/moderno e a história: querelas entre antigos e modernos na Europa pré-industrial (séculos VI-XVIII)..........................................................................................167 Antigo/moderno e história: modernismo, modernização, modernidade (séculos XIX e XX)......................................................................................................................................................172 Os domínios do modernismo...........................................................................................................................183 As condições históricas de uma tomada de consciência do modernismo......................................................................................................................................................................187 Ambiguidade do moderno.................................................................................................................................189

passado/presente..........................................................................................................................................193 A oposição passado/presente em psicologia. .......................................................................................195 Passado/presente à luz da linguística.....................................................................................................197

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Passado/presente no pensamento selvagem.......................................................................................200 Reflexões de caráter geral sobre passado/presente na consciência histórica. ...............................................................................................................................................................................202 Evolução da relação passado/presente no pensamento europeu da Antiguidade grega ao século XIX................................................................................................................204 O século XX entre a obsessão pelo passado, a história do presente e o fascínio pelo futuro.....................................................................................................................................................209

progresso/reação.......................................................................................................................... 217 Os inícios da ideia de progresso na Antiguidade e na Idade Média........................219 O nascimento da ideia de progresso (séculos XVI-XVIII). ..................................................227 O triunfo do progresso e o nascimento da reação (1789-1930).....................................235 A crise do progresso (de 1930 a aproximadamente 1980)..................................................245 Conclusão............................................................................................................................................................................253

terceira parte – o imaginário do tempo idades míticas........................................................................................................................................ 263 As idades míticas nas zonas culturais extraeuropeias. ...........................................................264 As idades míticas na Antiguidade greco-romana............................................................... 270 As idades míticas nas três grandes religiões monoteístas, na Antiguidade e na Idade Média................................................................................................. 281 Do Renascimento até hoje: fim das idades míticas? As etapas da cronologia mítica.......................................................................................................................................... 292

escatologia................................................................................................................................................ 299 Definição, conceitos, afinidades, tipologia..........................................................................................299 Escatologias não judaico-cristãs...................................................................................................................307 Bases doutrinárias e históricas da escatologia judaico-cristã...................................... 313 Escatologia e milenarismo no Ocidente medieval. ....................................................................322 A escatologia cristã (católica, reformada e ortodoxa) na Idade Moderna (séculos XVI-XIX)...................................................................................................327 A renovação escatológica contemporânea............................................................................................332 Conclusão — Escatologia e história.........................................................................................................335

decadência................................................................................................................................................... 343 Um conceito confuso. ................................................................................................................................................343 Decadência na perspectiva da ideologia histórica ocidental da Antiguidade ao século XVIII. ..........................................................................................................................346

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As ideologias modernas da decadência: Spengler, Lukács, Toynbee.......................360 Das outras civilizações...........................................................................................................................................368 Os critérios da decadência..................................................................................................................................370 Decadência e concepção do tempo...............................................................................................................376 Dissolução e declínio da ideia de decadência na historiografia contemporânea...............................................................................................................................................................377

quarta parte – a ordem da memória memória.............................................................................................................................................................. 387 A memória étnica.......................................................................................................................................................391 O desenvolvimento da memória: da oralidade à escrita, da Pré-História à Antiguidade....................................................................................................................394 A memória medieval no Ocidente.............................................................................................................404 Os progressos da memória escrita e figurada da Renascença a nossos dias.............................................................................................................................................................................................418 Os desenvolvimentos contemporâneos da memória..................................................................427 Conclusão: o valor da memória...................................................................................................................435

calendário................................................................................................................................................... 441 Calendário e controle do tempo....................................................................................................................442 O Céu e a Terra: a Lua, o Sol, os homens..........................................................................................450 O ano.......................................................................................................................................................................................459 As estações...........................................................................................................................................................................464 O mês.......................................................................................................................................................................................466 A semana.............................................................................................................................................................................468 O dia e a noite................................................................................................................................................................469 Os trabalhos e as festas. ..........................................................................................................................................472 Para além do ano: era, ciclo, século...........................................................................................................475 História e calendário...............................................................................................................................................477 A cultura dos calendários e dos almanaques...................................................................................478 Os calendários utópicos. ........................................................................................................................................481

documento/monumento.................................................................................................... 485

Os materiais da memória coletiva e da história..........................................................................485 O século XX: do triunfo do documento à revolução documental.................................489 A crítica dos documentos: em direção aos documentos/monumentos.....................492

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prefácio*

O conceito de história parece colocar hoje seis tipos de problemas: 1) Que relações existem entre a história vivida, a história “natural”, se

não “objetiva”, das sociedades humanas, e o esforço científico para descrever, pensar e explicar esta evolução, a ciência histórica? O afastamento de ambas tem, em especial, permitido a existência de uma disciplina ambígua: a filosofia da história. Desde o início do século XX e, sobretudo, nos últimos 20 anos, vem-se desenvolvendo um ramo da ciência histórica que estuda a evolução da própria ciência histórica no interior do desenvolvimento histórico global: a historiografia, ou história da história. 2) Que relações tem a história com o tempo, com a duração, tanto com o tempo “natural” e cíclico do clima e das estações quanto com o tempo vivido e naturalmente registrado dos indivíduos e das sociedades? Por um lado, para domesticar o tempo natural, as diversas sociedades e culturas inventaram um instrumento fundamental, que é também um dado essencial da história: o calendário; por outro, hoje os historiadores se interessam cada vez mais pelas relações entre história e memória. 3) A dialética da história parece resumir-se numa oposição — ou num diálogo — passado/presente (e/ou presente/passado). Em geral, essa oposição não é neutra, mas subentende, ou exprime, um sistema de atribuição de valores, como, por exemplo, nos pares antigo/moderno, progresso/reação. Da Antiguidade ao século XVIII desenvolveu-se ao redor do conceito de decadência uma visão pessimista da história, que voltou a apresentar-se

* Tradução de Nilson Moulin Louzada. 9

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em algumas ideologias da história no século XX. Já com o Iluminismo, afirmou-se uma visão otimista da história a partir da ideia de progresso, que agora, na segunda metade do século XX, experimenta uma crise. Tem, pois, a história um sentido? E existe um sentido da história? 4) A história é incapaz de prever e de predizer o futuro. Então, como ela se coloca em relação a uma nova “ciência”, a futurologia? Na realidade, ­deixa de ser científica quando se trata do início e do fim da história do mundo e da humanidade. Quanto à origem, ela tende ao mito: a Idade de Ouro, as épocas míticas ou, sob aparência científica, a recente teoria do big bang. Quanto ao final, ela cede o lugar à religião e, em particular, às religiões de salvação que construíram um “saber dos fins últimos” — a escatologia —, ou às utopias do progresso, sendo a principal o marxismo, que justapõe uma ideologia do sentido e do fim da história (o comunismo, a sociedade sem classes, o internacionalismo). Todavia, no nível da práxis dos historiadores, vem-se desenvolvendo uma crítica do conceito de origens, e a noção de gênese tende a substituir a ideia de origem. 5) Em contato com outras ciências sociais, o historiador tende hoje a distinguir diferentes durações históricas. Existe um renascer do interesse pelo evento, embora seduza mais a perspectiva da longa duração. Esta conduziu alguns historiadores, tanto através do uso da noção de estrutura quanto mediante o diálogo com a antropologia, a elaborar a hipótese da exis­ tência de uma história “quase imóvel”. Mas poderia existir uma história imóvel? Que relações tem a história com o estruturalismo (ou os estrutu­ ralismos)? Não existiria também um movimento mais amplo de “recusa da história”? 6) A ideia da história como história do homem foi substituída pela ideia da história como história dos homens em sociedade. Mas existiria, se é possível existir, somente uma história do homem? Já se desenvolveu uma história do clima — não se deveria escrever também uma história da natureza? 1) Desde o seu nascimento nas sociedades ocidentais — nascimento tradicionalmente situado na Antiguidade grega (Heródoto, no século V a.C.,

seria, se não o primeiro historiador, pelo menos o “pai da história”), mas que remonta a um passado ainda mais remoto, nos impérios do Próximo e do Extremo Oriente —, a ciência histórica define-se em relação a uma reali­dade que não é nem construída nem observada como na matemática, nas ciên­cias 10

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da natureza e nas ciências da vida, mas sobre a qual se “indaga”, “se testemunha”. Tal é o significado do termo grego e de sua raiz indo-europeia wid-, weid-, “ver”. Assim, a história começou como um relato, a narração daquele que pode dizer “Eu vi, senti”. Esse aspecto da história-relato, da his­tóriatestemunho, jamais deixou de estar presente no desenvolvimento da ciência histórica. Paradoxalmente, hoje se assiste à crítica desse tipo de história, devido à vontade de colocar a explicação no lugar da narração; mas, também, ao mesmo tempo, presencia-se o renascimento da história-testemunho por intermédio do “retorno do evento” (Nora), ligado à nova mídia, ao sur­ gimento de jornalistas entre os historiadores e ao desenvolvimento da “história imediata”. Contudo, desde a Antiguidade, a ciência histórica, reunindo documentos escritos e fazendo deles testemunhos, superou o limite do meio século ou do século abrangido pelos historiadores como testemunhas oculares e auriculares, bem como as limitações impostas pela transmissão oral do passado. A constituição de bibliotecas e de arquivos forneceu, assim, os materiais da história. Foram elaborados métodos de crítica científica, conferindo à história um de seus aspectos de ciência em sentido técnico, a partir dos primeiros e incertos passos da Idade Média (Guenée), mas sobretudo de pois do final do século XVII, com Du Cange, Mabillon e os beneditinos de SaintMaur, Muratori etc. Portanto não se tem história sem erudição. Mas, do mesmo modo que se fez no século XX a crítica da noção de fato histórico, que não é um objeto dado e acabado, pois resulta da construção do historiador, também se faz hoje a crítica da noção de documento, que não é um material bruto, objetivo e inocente, mas exprime o poder da sociedade do passado sobre a memória e o futuro: o documento é monumento (Foucault e Le Goff ). Ao mesmo tempo, ampliou-se a área dos documentos, que a história tradicional reduzia aos textos e aos produtos da arqueologia, de uma arqueologia muitas vezes separada da história. Hoje os documentos chegam a abranger a palavra, o gesto. Constituem-se arquivos orais; são coletados etnotextos. Enfim, o próprio processo de arquivar os documentos foi revolucionado pelo computador. A história quantitativa, da demografia à economia, passando até pela história cultural, está ligada aos progressos dos métodos estatísticos e da informática aplicada às ciências sociais. O afastamento existente entre a “realidade histórica” e a ciência histó­rica permitiu a filósofos e historiadores propor — da Antiguidade até hoje — 11

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sistemas de explicação global da história (para o século XX, e em sentidos extremamente diferentes, podem ser lembrados Spengler, Weber, Croce, Gramsci, Toynbee, Aron etc.). A maior parte dos historiadores manifesta uma desconfiança mais ou menos pronunciada em relação à filosofia da história; porém, não obstante isso, eles não se voltam para o positivismo, triunfante na historiografia alemã (Ranke) e na francesa (Langlois e Seignobos), no final do século XIX e início do XX. Entre a ideologia e o pragmatismo, eles são os defensores de uma história-problema (Febvre). Para captar o desenrolar da história e fazer dela o objeto de uma verdadeira ciência, historiadores e filósofos, desde a Antiguidade, esforçaramse por encontrar e definir as leis da história. As tentativas mais estimulantes, que sofreram uma falência estrondosa, são as velhas teorias cristãs do providencialismo (Bossuet) e o marxismo vulgar, que insiste — embora Marx não fale em leis da história (como acontece com Lênin) — em fazer do materialismo histórico uma pseudociência do determinismo histórico, cada vez mais desmentida pelos fatos e pela reflexão histórica. Em compensação, a possibilidade de uma leitura racional a posteriori da história, o reconhecimento de certas regularidades em seu decurso (fundamento de um comparatismo da história das diversas sociedades e das diferentes estruturas), a elaboração de modelos que excluem a existência de um modelo único (a ampliação da história ao mundo inteiro em sua complexidade, a influência da etnologia, a sensibilidade para as diferenças e em relação ao outro, caminham neste sentido) não permitem o retorno da história a um mero relato. As condições nas quais trabalha o historiador explicam, ademais, por que foi e continua sendo sempre colocado o problema da objetividade do historiador. A tomada de consciência da construção do fato histórico, da não inocência do documento, lançou uma luz reveladora sobre os processos de manipulação que se manifestam em todos os níveis da constituição do saber histórico. Mas esta constatação não deve desembocar num ceticismo de fundo a propósito da objetividade histórica e num abandono da noção de verdade em história; ao contrário, os contínuos êxitos no desmascaramento e na denúncia das mistificações e das falsificações da história permitem um relativo otimismo a esse respeito. O horizonte da objetividade, que deve ser o do historiador, não deve ocultar o fato de que a história é também uma prática social (Certeau) e, se 12

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devem ser condenadas as posições que, na linha de um marxismo vulgar ou de um reacionarismo igualmente vulgar, confundem ciência histórica e empenho político, é legítimo observar que a leitura da história do mundo se articula sobre uma vontade de transformá-lo (por exemplo, na tradição revolucionária marxista, mas também em outras perspectivas, como aquelas dos herdeiros de Tocqueville e de Weber, que associam estreitamente análise histórica e liberalismo político). A crítica da noção de fato histórico tem, além disso, provocado o reconhecimento de “realidades” históricas negligenciadas por muito tempo pelos historiadores. Junto à história política, à história econômica e social, à história cultural, nasceu uma história das representações. Esta assumiu formas diversas: história das concepções globais da sociedade ou história das ideologias; história das estruturas mentais comuns a uma categoria social, a uma sociedade, a uma época, ou história das mentalidades; história das produções do espírito ligadas não ao texto, à palavra, ao gesto, mas à imagem, ou história do imaginário, que permite tratar os documentos literário e artístico como plenamente históricos, sob condição de ser respeitada sua especificidade; história das condutas, das práticas, dos rituais, que remete a uma realidade oculta, subjacente, ou história do simbólico, que talvez um dia conduza a uma história psicanalítica, cujas provas de estatuto científico não parecem ainda reunidas. Enfim, a própria ciência histórica é colocada numa perspectiva histórica com o desenvolvimento da historiografia, ou história da história. Todos estes novos setores da história representam um enriquecimento notável, desde que sejam evitados dois erros: antes de mais nada, subordinar a história das representações a outras realidades, as únicas às quais caberia um status de causas primeiras (realidades materiais, econômicas) — renunciar, portanto, à falsa problemática da infraestrutura e da superestrutura. Mas também não privilegiar as novas realidades, não lhes conferir, por sua vez, um papel exclusivo de motor da história. Uma explicação histórica eficaz deve reconhecer a existência do simbólico no interior de toda realidade histórica (incluída a econômica), mas também confrontar as representações históricas com as realidades que elas representam e que o historiador apreende mediante outros documentos e métodos — por exemplo, confrontar a ideologia política com a práxis e os eventos políticos. E toda história deve ser uma história social. 13

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Por fim, o caráter “único” dos eventos históricos, a necessidade do historiador de misturar relato e explicação fizeram da história um gênero literário, uma arte ao mesmo tempo que uma ciência. Se isso foi válido da Antiguidade até o século XIX, de Tucídides a Michelet, é menos verdadeiro para o século XX. O crescente tecnicismo da ciência histórica tornou mais difícil para o historiador parecer também escritor. Mas sempre existirá uma escrita da história. 2) A matéria fundamental da história é o tempo; portanto, não é de hoje

que a cronologia desempenha um papel essencial como fio condutor e ciên­ cia auxiliar da história. O instrumento principal da cronologia é o calendário, que vai muito além do âmbito do histórico, sendo antes de mais nada o quadro temporal do funcionamento da sociedade. O calendário revela o esforço realizado pelas sociedades humanas para domesticar o tempo natural, utilizar o movimento natural da lua ou do sol, do ciclo das estações, da alternância do dia e da noite. Porém suas articulações mais eficazes — a hora e a semana — estão ligadas à cultura e não à natureza. O calendário é produto e expressão da história: está ligado às origens míticas e religiosas da humanidade (festas), aos progressos tecnológicos e científicos (medida do tempo), à evolução econômica, social e cultural (tempo do trabalho e tempo do lazer). Ele manifesta o esforço das sociedades humanas para transformar o tempo cíclico da natureza e dos mitos, do eterno retorno, num tempo linear escandido por grupos de anos: lustro, olimpíadas, século, eras etc. À história estão intimamente conectados dois progressos essenciais: a definição de pontos de partida cronológicos (fundação de Roma, Era Cristã, Hégira e assim por diante) e a busca de uma periodização, a criação de unidades iguais e mensuráveis de tempo: dia de vinte e quatro horas, século etc. Hoje, a aplicação à história dos dados da filosofia, da ciência, da experiên­ cia individual e coletiva tende a introduzir, junto destes quadros mensuráveis do tempo histórico, a noção de duração, de tempo vivido, de tempos múltiplos e relativos, de tempos subjetivos ou simbólicos. O tempo histórico encontra, num nível muito sofisticado, o velho tempo da memória, que atravessa a história e a alimenta. 3-4) A oposição passado/presente é essencial na aquisição da consciência do tempo. Para a criança, “compreender o tempo significa libertar-se do presente” (Piaget), mas o tempo da história não é nem o do psicólogo nem 14

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o do linguista. Todavia o exame da temporalidade nestas duas ciências reforça o fato de que a oposição presente/passado não é um dado natural, mas uma construção. Por outro lado, a constatação de que a visão de um mesmo passado muda segundo as épocas e o historiador está submetido ao tempo em que vive conduziu tanto ao ceticismo sobre a possibilidade de conhecer o passado como a um esforço para eliminar qualquer referência ao presente (ilusão da história romântica à maneira de Michelet — “a ressurreição integral do passado” —, ou da história positivista, à Ranke — “aquilo que realmente aconteceu”). Com efeito, o interesse no passado está em escla­recer o presente; o passado é atingido a partir do presente (método regressivo de Bloch). Até o Renascimento e, mesmo, até o final do século XVIII, as sociedades ocidentais valorizaram o passado, o tempo das origens e dos ancestrais surgindo para eles como uma época de inocência e felicidade. Imaginaramse eras míticas: idades do Ouro, o paraíso terrestre... a história do mundo e da humanidade assemelhava-se a uma longa decadência. Esta ideia de decadência foi retomada para exprimir a fase final da história das sociedades e das civilizações; ela se insere num pensamento mais ou menos cíclico da história (Vico, Montesquieu, Gibbon, Spengler, Toynbee) e é, em geral, produto de uma filosofia reacionária da história, um conceito de escassa utilidade para a ciência histórica. Na Europa do final do século XVII e primeira metade do XVIII, a polêmica sobre a oposição antigo/moderno, surgida a propósito da ciência, da literatura e da arte, manifestou uma tendência à reviravolta da valorização do passado: antigo tornou-se sinônimo de superado, e moderno, de progressista. Na realidade, a ideia de progresso triunfou com o Iluminismo e desenvolveu-se no século XIX e início do XX, considerando sobretudo os progressos científicos e tecnológicos. Depois da Revolução Francesa, à ideologia do progresso foi contraposto um esforço de reação, cuja expressão foi sobretudo política, mas que se baseou numa leitura “reacionária” da história. Em meados do século XX, os fracassos do marxismo e a revelação do mundo stalinista e do gulag, os horrores do fascismo e, principalmente, do nazismo e dos campos de concentração, os mortos e as destruições da Segunda Guerra Mundial, a bomba atômica — primeira encarnação histórica “objetiva” de um possível apocalipse —, a descoberta de culturas diversas da ocidental conduziram a uma crítica à ideia de progresso (recorde-se La crise du progrès, de Friedmann, de 1936). A crença num progresso linear, contínuo, irreversível, que se desenvolve 15

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segundo um modelo em todas as sociedades, já quase não existe. A história que não domina o futuro passa a defrontar-se com crenças que conhecem hoje um grande revival: profecias, visões em geral catastróficas do fim do mundo ou, ao contrário, revoluções iluminadas, como as invocadas pelos milenarismos, tanto nas seitas das sociedades ocidentais como em certas sociedades do Terceiro Mundo. É o retorno da escatologia. Mas a ciência da natureza e, em particular, a biologia mantêm uma concepção positiva, ainda que atenuada, do desenvolvimento enquanto progresso. Estas perspectivas podem aplicar-se às ciências sociais e à história. Assim, a genética tende a recuperar a ideia de evolução e progresso, porém dando mais espaço ao evento e às catástrofes (Thom): a história tem todo o interesse em inserir na sua problemática a ideia de gênese — dinâmica —, no lugar daquela, passiva, de origens, que Bloch já criticava. 5) Na atual renovação da ciência histórica — que se acelera, ao menos

na sua difusão (o incremento essencial veio com a revista Annales, fundada por Bloch e Febvre em 1929) —, uma nova concepção do tempo histórico desempenha um papel importante. A história seria feita segundo ritmos diferentes e a tarefa do historiador seria, primordialmente, reconhecer tais ritmos. Em vez do estrato superficial, o tempo rápido dos eventos, mais im­p ortante seria o nível mais profundo das realidades que mudam deva­ gar (geografia, cultura material, mentalidades: em linhas gerais, as estru­ turas) — trata-se do nível da “longa duração” (Braudel). O diálogo dos historiadores da longa duração com as outras ciências sociais e com as ciências da natureza e da vida — a economia e a geografia, ontem; a antropo­ logia, a demografia e a biologia, hoje — conduziu alguns deles à ideia de uma história “quase imóvel” (Braudel, Le Roy Ladurie). Chegou-se mesmo a avançar a hipótese de uma história imóvel. Mas, ao contrário, a antropologia histórica parte da ideia de que o movimento, a evolução se encontram em todos os objetos de todas as ciências sociais, pois seu objeto comum são as sociedades humanas (sociologia, economia, mas também antropologia). Quanto à história, ela só pode ser uma ciência da mutação e da explicação da mudança. Com os diversos estruturalismos, a história pode ter relações frutíferas sob duas condições: a) não esquecer que as estruturas por ela estudadas são dinâmicas; 16

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b) aplicar certos métodos estruturalistas ao estudo dos documentos históricos, à análise dos textos (em sentido amplo), não à explicação histórica propriamente dita. Todavia podemos perguntar-nos se a moda do estruturalismo não está ligada a uma certa recusa da história concebida como ditadura do passado, justificativa da “reprodução” (Bourdieu), poder de repressão. Mas também na extrema esquerda reconheceu-se que seria perigoso fazer “tábula rasa do passado” (Chesneaux). O “fardo da história”, no sentido “objetivo” do termo (Hegel), pode e deve encontrar o seu contrapeso na ciência histórica como “meio de libertação do passado” (Arnaldi). 6) Ao fazer a história de suas cidades, povos, impérios, os historiadores

da Antiguidade pensavam fazer a história da humanidade. Os historiado­ res cristãos, os historiadores do Renascimento e do Iluminismo (não obstante reconhecessem a diversidade dos “costumes”) pensavam estar fazendo a história do homem. Os historiadores modernos observam que a história é a ciência da evolução das sociedades humanas. Mas a evolução das ciências levou a pôr-se o problema de saber se não poderia existir uma história diferente daquela do homem. Já se desenvolveu uma história do clima; contudo, ela apresenta um certo interesse para a história apenas na medida em que esclarece certos fenômenos da história das sociedades humanas (modificação das culturas, do habitat etc.). Agora se pensa numa história da natureza (Romano), mas ela reforçará sem dúvida o caráter “cultural” — portanto histórico — da noção de natureza. Assim, por meio das ampliações de seu âmbito, a história se torna sempre coextensiva em relação ao homem. Hoje, o paradoxo da ciência histórica é que, justamente quando, sob suas diversas formas (incluindo o romance histórico), ela conhece uma popu­ laridade sem par nas sociedades ocidentais, e logo quando as nações do Terceiro Mundo se preocupam, antes de mais nada, com dotar-se de uma histó­ria — o que, de resto, talvez permita tipos de história extremamente diferentes daqueles que os ocidentais definem como tal —, se a história se tornou, portanto, um elemento essencial da necessidade de identidade indi­ vidual e coletiva, logo agora a ciência histórica sofre uma crise (de crescimen­ to?): no diálogo com as outras ciências sociais, na expansão consi­derável de seus problemas, métodos, objetos, ela pergunta se não começa a perder-se. 17

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primeira parte

A hist贸ria

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