Iberê Camargo

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Coleção Cadernos de Desenho

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Governador

Geraldo Alckmin Secretário-chefe da Casa Civil Edson Aparecido

universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta

Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Esdras Rodrigues Silva – Guita Grin Debert João Luiz de Carvalho Pinto e Silva – Luiz Carlos Dias Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Luiz Coltro Antunes – Sedi Hirano

Coleção Cadernos de Desenho Concepção e Coordenação Editorial Lygia Arcuri Eluf Comissão editorial da coleção cadernos de desenho Antonio Carlos Rodrigues Tuneu Edith Derdyk – Lygia Arcuri Eluf Marco Aurélio Cremasco Paulo Mugayar Kühl

Diretor-Presidente

Marcos Antonio Monteiro

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IberĂŞ Camargo

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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.

ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação C14i

Camargo, Iberê, 1914-1994. Iberê Camargo / organizadora: Lygia Eluf. – Campinas, SP: Edi­tora da Unicamp, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2013.

262 p. – (Cadernos de desenho)

1. Camargo, Iberê, 1914-1994. 2. Pintura brasileira – Século XX. 3. Pintores brasileiros – Século XX. I. Eluf, Lygia, 1956-. II. ­Título.

ISBN 978-85-268-1019-8 ISBN 978-85-xxxx

cdd 759.981

Índices para catálogo sistemático: 1. Camargo, Iberê, 1914-1994 2. Pintura brasileira – Século XX 3. Pintores brasileiros – Século XX

759.981 759.981 759.981

Copyright © by organizadora: Lygia Eluf Copyright © 2013 by Editora da Unicamp Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, dos detentores dos direitos. Printed in Brazil. Foi feito o depósito legal.

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Coleção Cadernos de Desenho O desenho é o modo imediato de registro de nosso olhar. Por meio dele, compreendemos o que vemos, o que sentimos e nossa relação com o mundo. Por meio dele, distinguindo as coisas, aprendemos a amá-las. É onde o pensamento do artista se materializa, se organiza, se expressa e se cons­trói. O desenho como meio de conhecimento, de apropriação, de comunhão. É a figura do desejo: desejo inconsciente de expressar algo indizível. A ideia dos cadernos de desenho sempre me fascinou. Por meio dessas anotações, quase des­pre­tensiosas, muitas vezes somos capazes de regis­trar a essência de nosso pensamento visual. Os ca­der­nos têm acompanhado os artistas por toda a his­tória. Eles reúnem aspectos pouco conhecidos de sua produção. Esses cadernos guardam

momentos de cumplicidade únicos, quase nunca ­divulga­dos, geralmente acessíveis somente aos ­olhos do pró­prio artista. Seu uso recorrente, como bloco de anotações, carnês de viagem ou diários de artistas, guarda o pensamento construtivo que norteia o processo de cria­ ção e da construção das imagens. A Coleção Cadernos de Desenho pretende reve­lar o que está oculto, guardado na intimidade do caderno de bolso, do ateliê, da expressão primeira do artista em contato com o mundo que o cerca. Procuramos privilegiar o desenho como meio de expressão artísti­ca, como registro de ideias, sensa­ções e pensamentos, como projeto ou ainda como meio independente de realização plástica. Lygia Eluf

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Agradecimentos A escolha dos desenhos deste livro, feita por Eduardo Kickhöfel e por mim, foi densa e reveladora de uma faceta do artista que sempre admirei e pouco conhecia. Agradeço a colaboração e a confiança recebidas por parte da Fundação Iberê Camargo, em especial nas pessoas de Fábio Coutinho, Monica Zielinsky, Eduardo Haesbaert e Gustavo Possamai. Agradeço ainda a Abraão Tessler, admirador do artista, que muito me incentivou a levar adiante este volume. Acima de tudo agradeço a Iberê, por seu belo desenho. Lygia Eluf


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Sumário Iberê Camargo, desenhista. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ................. 11 Diálogos com a tradição.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ................. 21 Anatomia.. . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ................. 31 Moderno.. . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ................ 75 Revendo a figura.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ............... 93 Maturidade – Ciclistas.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ............. 127 Maturidade – Idiotas.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .............. 159 Últimos desenhos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ............. 249 Nota biográfica.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .............. 257

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Iberê Camargo, desenhista

Notas para uma aproximação dos desenhos de figura humana no acervo da Fundação Iberê Camargo

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Introdução Este texto introduz parte da obra gráfica de Iberê Camargo pertencente ao acervo da fundação que leva seu nome, em Porto Alegre. Especificamente, visa-se aqui introduzir seus desenhos de figura humana. Como é bem conhecido, Iberê Camargo foi sobretudo um pintor e, enquanto tal, ele buscou filiar-se à tradição da pintura europeia. Sua formação em Roma e Paris, no final da década de 1940, teve por objetivo conhecê-la diretamente. Busca-se a seguir mostrar que o desenho foi seu principal instrumento para conhecer e levar adiante tal tradição. Na primeira parte, escreve-se a respeito dos tratadistas italianos do Renascimento que enfatizaram a importância do desenho na formação dos artistas, na época ainda chamados artífices. Na segunda parte, relacionam-se as preceptivas desses tratadistas aos

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13 desenhos de Iberê Camargo. Veremos que o artista que se dizia afastado de correntes e tendências foi forte­mente ligado a uma tradição secular.

Renascimento e desenho O começo da tradição pictórica ocidental ocorreu na Toscana, região da Itália central em que artífices bizan­ tinos se firmaram depois do saque de Constantinopla ocorrido em 1204. Após três ou quatro gerações, a pintura do século XIII teve seu auge na Basílica de San Francesco, na cidade de Assis. Lá, sob a sombra de Bencivieni di Pepo, chamado Cimabue, formou-se Giotto di Bondone, celebrado ainda em vida por Dante Alighieri e por

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tantos outros escritores após. Entre as muitas qualida­des de Giotto, o pintor, arquiteto e historiador Giorgio Vasari, nas Vidas dos mais excelentes pintores, escultores e ar­ qui­tetos, publicadas em 1550 e 1568, fala do desenho de Giotto: “E verdadeiramente foi grandíssimo milagre que aquela época grosseira e inapta tivesse força de operar tão doutamente em Giotto o desenho, do qual pouca ou nenhuma cognição tinham os homens daquele tempo” (Vasari, 1997, p. 119). O desenho, de fato, foi o principal instrumento que os artífices da época tinham para iniciar e desenvolver o Renascimento italiano. O primeiro tratado de pintura escrito no Renascimento chama-se O livro da arte, escrito em italiano por volta de 1400 pelo pintor Cennino Cennini. Seu autor vinha de uma linhagem que remetia ao próprio Giotto. Cennini diz ser “membro em exercício na arte de pintar, nascido Cennino di Andrea Cennini da Colle di Val­del­ sa”, e que fora instruído na pintura durante 12 anos por Agnolo di Taddeo de Florença, que por sua vez apren­ dera com Taddeo, seu pai, aluno de Giotto durante 24 anos (Cennini, 1859, cap. 1). Cennini escreve a res­peito da pintura, cujos fundamentos eram o desenhar e o colorir. Segundo ele, o desenho aparece logo no início da vida do pintor: o intelecto deleita-se ao desenhar pela “gentileza de ânimo”, e ele aparece por si, sem a orien­ tação de algum mestre (Cennini, 1859, cap. 2). O desenho do pintor é tratado como um talento natural, tal qual na anedota contada por Vasari: “Andando um dia Cimabue de Florença a Vespignano para suas tarefas, encontrou Giotto que, enquanto suas ovelhas pastavam, copiava uma ovelha do natural usando um seixo apontado ­so­bre uma pedra plana e polida, sem ter aprendido de outro modo a não ser copiar da natureza” (Vasari,

1997, p. 119). Entretanto, apenas o talento não bastava. Aquele que já tinha em si o desenho, ou seja, a capacidade de desenhar, tinha de ir para o ateliê de um mestre para desenvolvê-lo e, após, aprender os rudimentos da arte da pintura, à qual o desenho servia. Entre as diversas preceptivas de seu tratado, Cennini sugere que o aprendiz deve copiar e desenhar obras das mãos dos grandes mestres, e “sempre as melhores coisas” deles (Cennini, 1859, cap. 27). Melhor será se o pintor habitar “em um lo­cal onde muitos bons mestres haviam estado” (Cennini, 1859, cap. 27). Além disso, o pintor não deve copiar de um mestre em um dia e de outro em outro dia, pois assim não terá maneira ou estilo próprios (Cennini, 1859, cap. 27). Entretanto, mais do que copiar os mestres, o pintor deve “copiar sempre do natural continuamente” (Cennini, 1859, cap. 28), sugerindo o caminho ao naturalismo em que já estava a pintura italiana do Renascimento. Desse modo, o pintor será esperto, prático e capaz de “muitos desenhos em sua cabeça” (Cennini, 1859, cap. 13). Aqui, Cennini sugere que o desenho era um instrumento para compor figuras. De fato, convinha ao pintor ter fantasia no desenho para encontrar coisas não vistas “sob a sombra do natural”, como no caso de um pintor que podia fazer uma figura metade homem e metade cavalo como a ele comprazia, segundo sua própria fantasia (Cennini, 1859, cap. 1). Cennini era um pintor que sabia escrever. Os primeiros parágrafos de seu tratado apontam para a refinada cultura de Pádua em que ele estava, nos quais ele trata de questões da origem da pintura e da posição da pintura em relação a outras artes e ciências. Entretanto, o res­ tante de seu tratado é um conjunto de preceptivas de ateliê, como montar telas, engessar, raspar os gessos e poli-

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los, modelar em gesso, adornar e envernizar em tábua ou retábulo. Leon Battista Alberti, por sua vez, foi um autor bem mais sofisticado. Homem que fazia parte de uma camada social elevada, ele teve formação para escrever a respeito dos fundamentos da pintura. De modo mais sofisticado do que Cennini, Alberti visava elevar o estatuto de conhecimento da pintura e, paralelamente, o status social dos pintores. Em 1435, ele escreveu em latim o tratado Da pintura, e traduziu-o para o italiano no ano seguinte, dedicando-o ao arquiteto Filippo Brunelleschi. Nele, Alberti descreve a perspectiva geométrica para uso dos pintores, inventada poucos anos antes por Brunelleschi, e também sugere a aplicação de outras ciências e artes na arte da pintura, como a anatomia e a retórica. Em­bora não seja tão enfático como Cennini, Alberti sabia da importância do desenho ao dizer que uma boa pintura não podia ser louvada sem uma boa “circunscrição”, isto é, sem um bom desenho (Alberti, 1973, cap. 31). Além disso, para Alberti o desenho também servia para o pintor compor “sob a sombra do natural”. Ele conta a história do antigo pintor grego Zeuxis que, pensando não poder em um corpo apenas encontrar a beleza que buscava, elegeu cinco jovens entre as mais belas para extrair delas a beleza não encontrada em uma única mulher (Alberti, 1973, cap. 56). Compor não dizia respeito apenas às figuras, mas também às histórias que o pintor tinha de fazer para ser louvado e, para isso, cabia ao pintor mover o ânimo de seus expectadores ao desenhar figuras que, através dos movimentos de seus corpos, expressavam seus próprios movimentos de ânimo (Alberti, 1973, cap. 40-44). O desenho também é louvado por Lorenzo Ghiberti, artífice de primeira grandeza, conhecido especialmente

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por suas duas portas para o Batistério de Florença, e autor de um tratado inacabado chamado Os comentários, escrito por volta de 1450, Ghiberti chama o desenho de “teórica”, uso único no período (Ghiberti, 1998, cap. 1). En­tretanto, o tratadista mais importante após Alberti foi Leonardo da Vinci, para quem o desenho também era o fundamento da pintura, seguindo assim a tradição de Cennini, Alberti e Ghiberti. Leonardo escreveu em diversos textos que o jovem aprendiz primeiro tem de aprender a perspectiva, depois as proporções das figuras, depois copiar coisas da mão de bons mestres e copiar do natural, para então confirmar as razões das coisas aprendidas (Leonardo da Vinci, 1995, cap. 63). Seus primeiros desenhos apresentam uma graça nova em relação a seus contemporâneos. Além de sua habilidade ao desenhar do natural, Leonardo fazia isso graças ao esboço, invenção fundamental teorizada por ele próprio ao dizer que agora o pintor, ao desenhar, não fizesse cada sinal de carvão como se fosse o último, mas sim esboçasse em um modo que ele chamava de “compor grosseiramente” de modo que os membros das figuras ficassem apropriados a seus “movimentos mentais” (Leonardo da Vinci, 1995, cap. 189), ou seja, seus afetos, como escrevera Alberti. Leonardo levava assim a tradição adiante. De fato, Leonardo iniciou o chamado Alto Renascimento, cujo auge está nas obras de Michelangelo e Rafael em Roma, os quais aprenderam rapidamente o uso do esboço e ­fizeram desenhos que estão entre os mais belos da época. A Leonardo deve-se ainda a invenção dos “desenhos de apresentação”, que eram considerados não apenas um instrumento para a realização de pinturas e esculturas, mas obras acabadas para serem admiradas enquanto tais. O desenho Netuno, do qual existe um esboço,

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possivel­mente foi um dos primeiros desenhos desse tipo. O desenho progressivamente ganhava autonomia, e datam do início do século XVI os primeiros inventários de coleções de de­senhos, que incluíam estudos e esboços. Isso mostra uma sensibilidade nova ao desenho e aos artífices de então. Ao longo do século XVI, o desenho foi progressivamente valorizado. Foram famosos os desenhos de Michelangelo, entre os quais “desenhos de apresentação” que Michelangelo fez para o nobre romano Tommaso dei Cavalieri. Vasari, na introdução das Vidas dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos, diz que o desenho é o “pai de nossas três artes”, ou seja, da arquitetura, da escultura e da pintura. Segundo Vasari, o desenho busca um juízo universal, o conceito que se forma na mente do artífice, que depois vem a ser o desenho, expressão ou declaração do conceito que se tem no ânimo (Vasari, 1997, p. 43). Para aquelas pessoas, em grande parte pertencentes a um contexto de cultura semile­ trado, o desenho era a primeira forma de expressão. Não foi sem motivos que a primeira academia se chamava Academia das Artes do Desenho, a atual Academia de Belas-Artes de Florença, fundada pelo próprio Vasari e tendo como um dos patronos Michelangelo. Seguiram-se séculos de disputas e tratados em torno do desenho, assim como uma longa série de grandes desenhistas, como Pontormo e Bronzino, Rubens, Van Dyck e Rembrandt, Poussin, Lorrain e Tiepolo, Goya e tantos outros. Coleções de desenhos foram sistematicamente organizadas nos grandes museus europeus, como no Louvre e no Museu Britânico, entre outros. Ao longo desse processo, os artífices tornaram-se artistas, e sua formação até bem tarde foi feita a partir do aprendizado do

desenho, como mostram as obras gráficas de Pablo Picasso e Alberto Giacometti, apenas dois entre os grandes desenhistas do século XX.

Iberê Camargo, desenhista Iberê Camargo fez parte dessa longa tradição, que tinha a figura humana como centro. Não é à toa que mais de dois terços do acervo de desenhos da Fundação Iberê Camargo são de figura humana. Essa seleção segue a cronologia ampla da obra de Iberê, mas dentro de cada grupo não se busca uma cronologia detalhada. Os primeiros desenhos de Iberê mostram o exercício de copiar estátuas antigas, às quais o artista tinha acesso no Instituto de Artes de Porto Alegre através de cópias em gesso [pp. 23-25]. Vê-se nesses desenhos um tratamento sofisticado de sombras e luzes que já aponta para um grande desenhista. Um desenho em cujo verso está escrito “Rafaello” [p. 27] mostra que Iberê visava copiar “sempre as melhores coisas” dos grandes mestres, como escreveu Cennini, e um desenho que recorda A morte de Casagemas, de Pablo Picasso, talvez pertença ao grupo inicial de estudos [p. 29]. Nessa época, Iberê também ­desenhava “sempre do natural continuamente”, no caso a anatomia e os nus. Quanto à anatomia, os desenhos de crânios seguem a tradição de desenhos de anatomia que remonta aos séculos XV e XVI [pp. 33-45]. Curiosa­ mente, os dois últimos desenhos de crânios recordam os do jovem Giacometti (e talvez sejam um pouco posteriores aos desenhos feitos com sanguínea). No caso dos nus, os desenhos também remontam ao Renascimento ita­ liano. Após Michelangelo, a figura masculina nua foi ob-

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jeto de estudos quase obrigatório para os pintores e es­ cul­tores. O desenho feito com sanguínea aponta dire­ta­ mente para desenhos italianos do século XVI em ­diante [p. 47], embora raros sejam os desenhos de nus femininos feitos nessa época. As cores dos desenhos feitos a seguir recordam os de Rubens e os desenhos fran­ceses do século XVIII [pp. 49-61]. Não obstante estar distanciado de um centro cultural importante, Iberê já sabia o caminho a trilhar. Após receber uma bolsa do governador do Rio Grande do Sul, Iberê foi para o Rio de Janeiro em 1942, e lá se juntou ao grupo de Alberto da Veiga Guignard. Os desenhos dessa época sugerem familiaridade com as obras de Picasso e Portinari [pp. 63-67], mas já mostram o jovem pintor tentando encontrar uma “maneira própria”. Entretanto, Iberê sabia que “as melhores coisas” não estavam no país. Se o pintor estivesse “em um local onde muitos bons mestres estiveram”, melhor seria para ele. Assim, após ganhar o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro pelo quadro Lapa, no Salão de Belas Artes de 1947, Iberê completou sua formação na Europa entre 1948 e 1951. Na Itália, ele se dedicou a esboçar e anotar observações em cadernos: “E aí [eu] fazia um desenho e analisava as características daquele pintor. Como é que o Goya resolvia certos problemas? Como é que era a linha do Goya? Analisava tudo, fazia anotações” (citado por Siqueira, 2003, p. 37). Se o valor artístico dessas anotações e desses cadernos talvez seja pequeno, eles são parte importante da documentação de um artista em busca das origens de sua arte. Em Roma, Iberê copiou obras antigas [p. 69], e lá ele foi aluno de Giorgio de Chirico, pintor em direta relação com a tradição italiana, que o fez copiar desenhos de Michelangelo (Carneiro, 2003, p. 27) e Rafael

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[pp. 71-73]. A tradição do desenho italiano interessava tanto Iberê a ponto de ter um livro a respeito (Carneiro, 2003, p. 28), Em Paris, Iberê estudou no ateliê de André Lhote, e lá ele aprendeu ainda mais da tradição, como diz Vera Beatriz Siqueira ao falar dos ensinamentos de Lhote: “Concentrar-se na linguagem da pintura, olhar uma vez para a natureza e duas para a tradição artística, escolher e modernizar os antigos mestres, geometrizar, enfrentar a superfície”. Alguns desenhos da época mostram isso, com “seu intrincado sistema de interação de planos e formas semigeométricas precisamente articuladas, definidas por cores claras e não moduladas” (Siqueira, 2003, pp. 38-9) [pp. 77-83]. As lições do Cubismo são evidentes aqui, na época em que Iberê começava a ser moderno como tanto queria. O desenho mais uma vez era o instrumento para ele encontrar uma linguagem própria, embora a figura humana não fosse o centro de sua obra como pintor nesse momento. O drama pictórico de Iberê progressivamente se distanciava da figura humana, mas ele continua­ va a desenhar figuras [pp. 85-91]. O desenho continuava a ser a base de seu ofício de pintor, e garrafas, carretéis, os Núcleos e as Figuras em expansão eram os temas de Iberê, feitos através de dezenas de esboços, muitos dos quais anotados e publicados. A volta à figura humana como centro de sua obra pictórica ocorreu no início da década de 1980. Os primeiros desenhos mostram uma certa indecisão, talvez porque feitos pela mão de um desenhista que havia pouco praticado a figura humana nos anos anteriores. Lentamente, com a linha que ele já tinha de sua prática de desenhar carretéis e outras figuras, a “maneira própria” de Iberê começava a aparecer na figura [pp. 95-105]. Uma pe­

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quena série de estudos livres da Criação de Adão, de Michelangelo, mostra a importância que Iberê dava à tradição nessa época de sua vida [pp. 107-15]. Esses desenhos são mais Iberê do que Michelangelo, por assim dizer, e um desenho em escorço sugere a maestria de Miche­ langelo ao desenhar a figura humana [p. 117]. Nessa época, ele fazia uso de esboços, e a rapidez do processo de esboçar permitia elaborar, comparar e revisar suas ideias [pp. 119-21], e alguns desenhos lembram a fase final de Picasso [pp. 123-5], sugerindo que o mestre dos modernos era importante para Iberê. Os ciclistas do final da década de 1980 mostram um artista mais afinado com a figura humana. Em grande parte, esses desenhos são esboços que buscam a elabo­ ração de um tipo, no sentido de uma formulação pessoal da figura humana [pp. 129-51]. Como na história con­tada por Alberti a respeito do pintor Zeuxis, cabia à arte colocar algo a mais na natureza, não obstante a beleza aqui não ser a beleza cotidiana. Dito de outro modo, Iberê compunha figuras, mas agora em grande parte de memória como um escultor que modela uma figura sem um modelo, que começa a esboçar a partir de ideias ­pouco definidas e, à medida que ele modifica o movimento de uma parte de sua figura, ele corrige outra parte até obter uma figura adequada a seus pensamentos ali em ­processo. Como ele próprio disse em uma de suas últimas entrevistas, “o trabalho do pintor é de recriar a natureza” (Reis, 2003, p. 120). A presença de modelos em seu estúdio era ape­nas um ponto de partida, dado que não estava mais em questão o desenho que reproduzia o natural. ­Diversos desenhos dos ciclistas também buscam a elaboração de composições, e outros misturam materiais e técnicas que sugerem pintura e os desenhos feitos a seguir [pp. 153-7].

Os desenhos finais apontam para a grande obra figurativa de Iberê. Nos três últimos anos de sua vida, ele fez esboços para composições bem conhecidas [pp. 161-79]. O desenho ainda era o instrumento que ele tinha para compor suas figuras e pinturas, inclusive ao atacar a tela. Como mostram filmes do período, o artista desenhava sobre a tela antes de começar a pintar. Paralelamente, Iberê fez sua grande série de desenhos finais, diversos dos quais presentes em suas últimas exposições de modo inédito [pp. 181-247]. Eles mostram a autonomia do desenho na obra de Iberê Camargo, como os “desenhos de apresentação” surgidos no Renascimento italiano. Em seus últimos dias, ele realizou seus últimos desenhos. O estudo para a tela Solidão faz parte desse grupo [p. 251], e sobretudo os desenhos feitos sobre o leito de morte, testemunhos de um artista que no derradeiro momento ainda buscava na figura humana a expressão de seus afetos [pp. 253-5].

Observações finais O percurso descrito acima e exposto a seguir sugere o desenho como um fio condutor da carreira de Iberê Camargo, carreira que seguiu os passos da formação dos pintores renascentistas. Para ele, era fundamental copiar obras dos mestres e copiar da natureza, aprender as regras da arte e esboçar continuamente em busca da expressão de seus próprios afetos para mover os afetos de seus expectadores, inclusive em uma época em que retórica e pintura não eram mais próximas, como no caso dos chamados “expressionistas”, com quem Iberê tinha afinidades.

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Em uma época em que a internet faz parte do dia a dia, é difícil entender o quão Iberê Camargo estava afastado da cultura que buscava. Não há como saber até que ponto Iberê conheceu os textos citados acima, mas parte dos ensinamentos daqueles textos estava nos ateliês, inclusive na longínqua Porto Alegre, transmitidos através dos artistas estrangeiros que vieram para o país no século XIX. Entretanto, a urgência por uma formação superior surpreende, e ele intuiu cedo que precisava sair de Porto Alegre e do Brasil. Comentando justamente isso, Paulo Venâncio escreveu, parafraseando Kant: “A vocação sem o domínio do ofício é cega e o domínio do ofício sem o arrebatamento da vocação é vazio” (Venâncio Filho, 2003, p. 130). Ronaldo Brito, importante crítico da obra de Iberê, diz que as figuras do artista, tão bem expressas em seus desenhos finais, talvez sejam “uma das últimas grandes formulações plásticas na noção de Figura” (citado por Siqueira, 2003, p. 94). Essas palavras, escritas em 1994, talvez sejam corretas hoje. A morte de Lucian Freud em 2011 aponta para isso, assim como a exposição The power of paper, na prestigiosa Saatchi Gallery, e livros como Vita­min D: new perspectives in drawing, que sugerem que a arte contemporânea tem poucas relações com a tradição moderna, especialmente com o desenho da figura humana. Seja como for, resta a grande obra de um pintor que tanto se disse rebelde e longe de correntes, mas que estava intimamente ligado a uma tradição secular que remonta aos dias de Giotto di Bondone. Talvez não seja ousado escrever que Iberê foi sobretudo um desenhista e, como poucos artistas de sua geração, ele apontou para a arte contemporânea olhando para a arte do passado.

Bibliografia ALBERTI, Leon Battista. “Della pittura”, Opere volgari, vol. 3.

Bari, Laterza, 1973, pp. 5-107. CARNEIRO, Mário. “Depoimento”, in Sônia Salzstein, Diálo­ gos com Iberê Camargo. Porto Alegre, Fundação Iberê Camargo; São Paulo, Cosac & Naify, 2003, pp. 23-41. CENNINI, Cennino. Il libro dell’arte. Florença, Felice Le Monnier, 1859. DA VINCI, Leonardo. Libro di pittura. Edizione in facsimile del Codice Urbinate lat. 1270 nella Biblioteca Apostolica Vaticana. Florença, Giunti Gruppo Editoriale, 1995, 2 vols. GHIBERTI, Lorenzo. I commentarii. Florença, Giunti, 1998. REIS, Paulo. “Entrevista com Iberê Camargo”, ARS (São Paulo), vol. 1, no 2, 2003, pp. 119-23. SIQUEIRA, Vera Beatriz. Iberê Camargo: origem e destino. Porto Alegre, Fundação Iberê Camargo; São Paulo, Cosac & Naify, 2003. VASARI, Giorgio. Le vite de’ piu eccellenti pittori, scultori e archi­ tettori. Roma, Newton Compton, 1997. VENÂNCIO FILHO, Paulo. “Iberê Camargo: uma trajetória através da pintura e além”, in Sônia Salzstein, Diálogos com Iberê Camargo. Porto Alegre, Fundação Iberê Camargo; São Paulo, Cosac & Naify, 2003, pp. 127-32.

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Eduardo Kickhöfel

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