Introdução aos direitos animais

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universidade estadual de campinas Reitor Fernando Ferreira Costa Coordenador Geral da Universidade Edgar Salvadori De Decca

Conselho Editorial Presidente Paulo Franchetti Alcir Pécora – Christiano Lyra Filho José A. R. Gontijo – José Roberto Zan Marcelo Knobel – Marco Antonio Zago Sedi Hirano – Silvia Hunold Lara

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gary l. francione

introdução aos direitos animais Seu filho ou o cachorro?

tradução

Regina Rheda

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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.

ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação F8461

Francione, Gary L., 1954Introdução aos direitos animais: seu filho ou o cachorro? / Gary L. Francione; tradutora: Regina Rheda. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2012. 1. Direitos animais – Estados Unidos. 2. Animais – Proteção – Legislação – Estados Unidos. 3. Filosofia. 4. Ética. I. Rheda, Regina, 1957-. II. Título.

cdd 344.79049 346.73046954 100 170 isbn 978-85-268-0997-0 Índices para catálogo sistemático:

1. 2. 3. 4.

Direitos animais – Estados Unidos Animais – Proteção – Legislação – Estados Unidos Filosofia Ética

344.79049 346.73046954 100 170

Título original: Introduction to animal rights: your child or the dog? Copyright © 2000 Temple University Press

Copyright © by Gary L. Francione Copyright © 2012 by Editora da Unicamp

Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em sistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.

Editora da Unicamp Rua Caio Graco prado, 50 – Campus Unicamp cep 13083-892 – Campinas – sp – Brasil Tel./Fax: (19) 3521-7718/7728 www.editora.unicamp.br  –  vendas@editora.unicamp.br

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A Anna, minha companheira, amiga mais íntima e aliada, que, além de contribuir para a qualidade da minha vida de outras formas, nu­ merosas demais para mencionar, me manipulou vergonhosamente até eu socorrer um cachorro (meu primeiro) condenado a ser morto num abrigo local há uns 20 anos, e desse modo iniciou o que evoluiu para uma considerável “matilha”. Minha dívida para com ela, em tan­ tos níveis, é inestimável. A Eileen Chamberlain, Cheryl Byer, Gloria Binkowski e ­Elisabeth Col­ville, que, durante anos, sem alarde e sem qualquer expectativa ou desejo de reconhecimento, gastaram a maior parte de seus recursos emocionais e financeiros cuidando dos animais refugiados deste mun­ do, e que salvaram tantas vidas. A Patty Shenker, com quem sempre pudemos contar. E a todos os meus companheiros animais, que me ensinaram ­tan­to sobre o significado da moralidade, e em particular a Bonnie Beale, pelada uma cachorrinha branca e peluda que foi deliberadamente atro­ por um carro ao tentar atravessar uma rua movimentada tarde da noite, em fevereiro de 1998. Quando a encontramos, ela estava desi­ dra­tada e faminta. Zarpamos na calada da noite para o consultório do Dr. Bruce e ele tratou de seus ferimentos. Ela pa­rece ser meio ve­ lha; é aleijada de uma perna; é surda; enxerga mal; e tem um tu­mor no pulmão que a Dra. Ann fez entrar em remissão. Bonnie adora passear de carro, correr pelo quintal, ficar no nosso colo por pe­ríodos infindáveis de tempo e dormir aconchegada sob o meu queixo ou ao ombro de Anna. Com sua dieta vegana, especialmente com os bis­ coitos caseiros de Anna, ela passou de menos de quatro qui­ los para mais de sete, e tem mais personalidade por grama do que qualquer pessoa que já encontrei. Seu retrato está na capa [da edi­ ção original publicada em 2000 pela Temple University Press], e não te­ nho a menor dúvida de que ela seja uma pessoa, um membro da comu­ nidade moral que tem o direito de não ser tratado como uma coisa. Ela é um ser com valor inerente. Eu a amo desesperadamente.

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Agradecimentos

Devo meus agradecimentos sobretudo à minha companheira e colega na Rutgers Law School, a professora adjunta Anna E. Charlton. Além de ser uma excelente advogada e professora, Anna tem sido uma cons­ tante nas discussões que resultaram neste livro. Ela foi cofunda­ dora e codiretora do Centro Jurídico de Direitos Animais Rutgers (Rutgers Animal Rights Law Center). Muitas das ideias apresentadas aqui evoluíram a partir de um seminário sobre animais e o ­Direito, que ela e eu demos na Rutgers Law School durante a década pas­ sa­ da. De fato, senti que ela faz tanto parte do projeto que lhe ofe­ reci coautoria. Ela declinou, mas considero este livro tanto seu quanto meu. Estou profundamente agradecido pelas muitas horas de discussão que tive com Alan Watson e Drucilla Cornell, e sinto-me honrado por Alan Watson ter decidido escrever o Prefácio. Também estimo mi­nhas discussões com Peter Singer, de quem geralmente discordo, mas que é um colega dos mais generosos e corteses. Meus colegas na Rutgers, Alfred Blumrosen, Alex Brooks e Philip Shuchman, sem­ pre estiveram disponíveis para conversar sobre questões de jurispru­ dência, e estou grato a eles. O decano da Rutgers Law School, Stuart Deutsch, o decano associado Ronald K. Chen, o vice-reitor Norman Sa­ muels e o antigo decano Roger I. Abrams fizeram todo o possível para facilitar o meu trabalho. Beneficiei-me imensamente das discussões com Marc Bekoff, Ted Benton, Gloria Binkowski, Lesli Bisgould, Bill Bratton, Cheryl Byer, Eileen Chamberlain, Elisabeth Colville, Marly Cornell, James Corri­ gan, David DeGrazia, Cora Diamond, Jane W. Evans, Ernie Feil, o falecido José Ferrater Mora, Michael Allen Fox, Henry Furst, Deidre Gallagher, Jane Goldberg, Lori Gruen, Coral Hull, Terry Kay, Ar­ thur Kinoy, o falecido William M. Kuntsler, Eileen Lanno, Shel­don Leder, Jeffrey Moussaieff Masson, Simon Oswitch, Maureen Plimmer, Jerry Silverman, Bonnie Sonder e Sheldon Walden. Apresentei resu­ mos da argumentação contida neste livro em vários lugares, incluin­

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do Rutgers, Brock University, Essex University, Harvard Law ­School, Manchester University, University of Scranton e American Philoso­ phical Association, e recebi um ótimo feedback. Os estudantes do nosso seminário sobre animais e o Direito, na Rut­gers, estimularam consistentemente meu pensar sobre essas ques­ tões ao longo dos anos, e expresso minha gratidão a todos eles. Os meus assistentes de pesquisa Daniel Agatino, Karen Bacon, Steven Flores, Michelle Lerner, Megan Metzelaar e Lydia Zaidman fizeram um trabalho maravilhoso. O Sr. Flores e a Sra. Zaidman merecem uma menção especial pelo extraordinário esforço que exerceram. Mi­ nha secretária Mary Ann Moore, as decanas assistentes Marie Meli­ to e Linda Garbaccio, e nossa administradora departamental Roseann Raniere fizeram todo o possível para ajudar, assim como a nossa bi­ bliotecária, professora Carol Roehrenbeck, e sua maravilhosa equipe, incluindo Marjorie Crawford, Dan Campbell, Susanna Camargo-Pohl, Helen Leskovac, Steven Perkins, Nina Ford, Evelyn Ramones, Brian Cudjoe e Daniel Sanders. Kathleen Rehn e Bernadette Carter me salvaram de vários desastres ao computador. Agradecimentos muito especiais a Patty Shenker, Doug Stoll, Bill Crockett, Marly Cornell, Ernie Feil, Henry Furst, Amy Sperling, Jane Rubin, meus amigos na North American Vegetarian Society e à Neuman-Publicker Foundation, que apoiaram meu trabalho de vários modos. Sem o tratamento com acupuntura do Dr. John Kohler, eu nunca teria sido capaz de sentar diante do com­putador durante 12 horas por dia. E estimo a paciência de meus pais com minhas visi­ tas infrequentes enquanto estava escrevendo este livro. Mais uma vez, o pessoal da Temple University Press deu um excelente apoio profissional: Doris Braendel, minha editora e boa amiga, a diretora Lois Patton e seus colegas Charles Ault, David Wilson, Jenny French, Anne Marie Anderson, Gary Kramer, Tamika Hughes, Irene Imperio, Julie Luongo, e os copidesques freelance ­Keith Monley, Marly Cornell, Joan Vidal e Megan Metzelaar. Tenho orgulho de ser autor de uma das poucas editoras universitárias ver­ dadeiramente progressistas e inovadoras que ainda restam na academia americana. Finalmente, minha família não humana — Stratton, Emma, Chel­ sea, Robert, Stevie, Bonnie Beale e Simon — me deixou claro que perguntar se os animais podem pensar, ou se são autoconscientes, ou se têm uma gama de emoções muito semelhante à nossa está no mesmo patamar que perguntar se os outros humanos têm essas ca­

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racterísticas. Podemos não ser capazes de provar com absoluta cer­ teza que os animais têm essas características, assim como não pode­ mos provar com certeza que as mentes humanas são todas semelhantes. Mas talvez uma boa notícia para quem tem sérias dú­ vidas quanto a essas questões seja a de que a Sociedade da Terra Plana aceita novos membros.

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SUMÁRIO

nota da tradutora........................................................................................................... 13 prefácio

Alan Watson....................................................................................................................................... 15 introdução.................................................................................................................................... 21

1. o diagnóstico: nossa esquizofrenia moral acerca

dos animais.......................................................................................................................... 49

2. vivissecção: uma questão mais complicada.............................. 91 3. a causa da nossa esquizofrenia moral: os animais

como propriedade....................................................................................................... 117

4. a cura para a nossa esquizofrenia moral:

o princípio da igual consideração.................................................... 159

5. robôs, religião e racionalidade............................................................. 189 6. ter nossa vaca e também comê-la: o erro de

bentham................................................................................................................................... 227

7. direitos animais: seu filho ou o cachorro?........................ 257 apêndice: vinte perguntas

(e

respostas)............................................. 279

índice remissivo...................................................................................................................... 305

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Nota da tradutora

O termo fundamental deste livro é animal rights. Optei por traduzi-lo como direitos animais, em vez de direitos dos animais (que tam­bém se usa e, naturalmente, está certo), por três razões: o termo di­reitos ani­ mais faz um paralelo linguístico com direitos humanos, é mais fá­cil de escrever e de falar, e, assim como derechos animales, está dis­se­mi­ nado entre os ativistas sul-americanos mais ligados à abor­dagem dos direitos, em particular à de Gary Francione. Agradeço a Sérgio Greif, Dra. Ana María Aboglio e Cláudio de Godoy pela ajuda com ter­mos científicos e jurídicos, e a Marcio Seligmann-Silva, Vera Cristofani e Luís Martini pelo empenho em tornar possível esta publicação. Regina Rheda

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PREFÁCIO

Nossa história política e social está cravejada de complacência: com seres humanos designados como escravos, com pessoas não brancas, gays, mulheres e animais. A repulsa social à opressão, quando vem, é frequentemente extrema e violenta. Mesmo quando não é, pode vir rápido e guiada por uma ideia intelectual. A luta foi ganha de for­ma ampla, mas não definitiva nem total, contra a escravidão; con­ tra o pre­ conceito racial e sexual; contra a homofobia. A controvérsia quanto à relação entre humanos e animais vem ocorrendo há muito tempo, mas sem solução em vista. Eu diria que o panorama está pres­ tes a mudar. Creio que este livro renovadoramente corajoso do professor Gary Francione vá representar uma virada na maneira co­ mo nós, humanos, vemos os animais e em como nossas atitudes se traduzem no modo de os tratarmos. Mudanças radicais do pensamento e de atitudes humanas são sem­ pre alarmantes e dolorosas. Há pessoas demais, entre nós, que estão fortemente comprometidas com o status quo. Devemos recordar que quando a Declaração da Independência dos Estados Unidos procla­ mou que: “Consideramos estas verdades evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, entre estes a vida, a liberdade e a pro­ cura da felicidade”, milhões de pessoas dentro das fronteiras dos novos Estados Unidos eram mantidas na condição de escravidão. Quando os líderes políticos e intelectuais se reuniram para começar a formular a sociedade que queriam estabelecer em sua nação inde­ pendente, a escravidão permaneceu entranhada na Constituição que escreveram. Os redatores foram escolhendo os elementos que consi­ deravam essenciais à formação de uma sociedade justa e moral, sem que a moralidade da escravidão fosse seriamente desafiada. Uma so­ ciedade organizada sobre a proclamação da dignidade inerente a cada pessoa tolerou e lucrou com um sistema político que se con­ tentava em tratar alguns se­ res humanos como coisas que não diferiam de objetos inanimados. Homens de grande caráter moral, profunda

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convicção religiosa, e educação e poder de reflexão consideráveis foram capazes de ignorar essa trágica dissonância e negar, a seus semelhantes humanos, uma posição na comunidade moral. Quando a escravidão relegou algumas pessoas ao status de coisas, a lei não pôde oferecer uma proteção que forçasse um proprietário de escravos a respeitar qualquer interesse de seu escravo, se fosse do interesse do proprietário explorar sua propriedade escrava. Aqueles que tentaram tornar a escravidão mais “humanitária” ou “compassiva” não puderam proteger o escravo contra as decisões de seu proprie­ tário quanto ao melhor uso de sua propriedade. Não foi possível dar passos incrementais em direção à liberdade. Não podíamos “reformar” nosso caminho para sair dessa situação. Dar “direitos” aos escravos, quando eles ainda eram propriedade, não era a resposta. Uma refor­ ma tática e humanitária não bastava. A situação melhorou graças à abolição da escravidão só depois de um sangrento conflito. Agora Gary Francione lança um desafio concernente ao nosso uso e tratamento dos animais. Ele nos incita a nos desfazermos das confor­táveis desculpas proporcionadas pelo nosso aparente compro­ misso com o tratamento “humanitário” ou “compassivo” dos animais e a reconhecer que, sob as leis e regulações relativas a como trata­ mos os animais com quem dividimos este planeta, na realidade os tratamos como coisas que não têm nenhum interesse que devamos levar a sério. Como pode acontecer isso? A norma social de que devemos ser “bondosos” com os animais não é um dos poucos imperativos morais com os quais todos concordamos? O livro de Francione arranca o véu através do qual a ética humana obscurece nosso modo de ver os animais dando-nos a ilusão de que levamos seus interesses a sério. Uma sociedade que levasse os interesses dos animais a sério não mataria bilhões deles pelo prazer do sabor de sua carne, quando há alternativas alimentares disponíveis; não os sujeitaria ao confinamento e ao sofrimento impostos pelo agronegócio ou pelos experimentos científicos; não toleraria seu tormento em rodeios ou circos para o nosso fugaz entretenimento. A incisiva acusação de Francione contra nossa exploração dos mesmos animais que supostamente tratamos de modo humanitário revela que teríamos de puxar pela imaginação para achar um meio de explorar os animais que a nossa sociedade humanitária não permita. Francione localiza a raiz do fracasso do princípio do tratamento hu­manitário em uma falha conceitual da teoria moral que foi in­

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corpo­rada às leis anticrueldade modernas. O princípio do tratamento humanitário tem origem na teoria do advogado e filósofo inglês do século XIX Jeremy Bentham. Bentham rejeitava a visão de que, co­ mo os animais não têm, supostamente, racionalidade ou capacidade de se comunicar usando a linguagem, os humanos podiam tratá-los como coisas e não tinham nenhuma obrigação moral direta para com eles. Bentham afirmava que a senciência, ou a capacidade de experien­ ciar dor e sofrimento, era a única característica exigida para provar o status moral dos animais. Em uma passagem que hoje é famosa, ele escreveu que “um cavalo ou cachorro adulto é um animal incom­ paravelmente mais racional e mais sociável do que um bebê de um dia, uma semana ou mesmo um mês de idade. Mas suponha que não fosse esse o caso; de que isso serviria? A questão não é Eles po­ dem raciocinar?, nem Eles podem falar?, mas sim Eles podem sofrer?”. O problema, de acordo com Francione, é que, embora Bentham rejeitasse a escravidão humana, ele nunca desafiou o status dos ani­ mais como propriedade dos humanos. Como resultado, o princípio do tratamento humanitário, que requer que “equilibremos” os interesses dos humanos com os dos animais e assim pretende tratar os inte­ resses dos animais como moralmente significativos, estava fadado ao fracasso porque, mesmo sob a visão supostamente mais iluminada de Bentham, os animais ainda existem exclusivamente como recursos dos humanos. Mesmo sob o princípio do tratamento humanitário, os animais não são nada além de coisas. Francione insiste que aprendemos ao menos uma lição com a abolição da escravatura: se for para incluir um humano na comuni­ dade moral, não se pode permitir que essa pessoa seja tratada exclu­ sivamente como um meio para os fins de outra. Uma pessoa não pode ser o recurso de outra. Se também professarmos que levamos os interesses dos animais a sério, não podemos continuar a conside­ rá-los um recurso ao qual devemos apenas um tratamento huma­ nitário. Francione argumenta que não há meio de um sistema “hí­ brido” — um sistema que professe equilibrar os interesses de um grupo que são protegidos por direitos com os interesses de outro grupo que são desprotegidos por direitos — poder servir para ofe­ recer qualquer proteção significativa aos interesses do último. A teoria apresentada por Francione é original, pois não se apoia numa teoria de direitos liberais tradicional, como faz Tom Regan em The Case for Animal Rights; ele também não se apoia na teoria utilitarista, como faz Peter Singer, que, em Libertação Animal (Animal

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Liberation), articula uma teoria derivada diretamente de Bentham. Fran­ cione demonstra que o princípio da igual consideração, que de­ ve ser parte de qualquer teoria moral, seja ela baseada nos direitos ou na consequência ou na “ética do cuidado” ecofeminista, requer que rejeitemos o uso e o tratamento dos animais como recursos. Tal re­ quisito teria profundas implicações para a nossa teoria a respeito da nossa obrigação moral para com os animais, porque qualquer teo­ ria que rejeite a condição dos animais como coisas deve estar com­ prometida com a abolição da exploração animal, e não com a me­ ra regulação do uso de animais para assegurar que ele seja mais “hu­ manitário”. Francione corretamente observa, baseado na história da proprieda­ de e no status econômico dos animais como tendo apenas o valor que lhes é atribuído pelos humanos, que, se os animais forem vistos so­ mente como mercadorias, provavelmente não haverá mudanças signi­ ficativas no tratamento que lhes damos. Mas ele faz a observação mais profunda de que, enquanto os animais forem tratados exclusi­­va­mente como meios para os fins dos humanos, seus interesses deverão sem­ pre ser dessemelhantes aos interesses humanos. Assim como no caso da escravidão humana, o princípio da igual consideração nunca pode ser aplicado aos animais, porque seus interesses serão sempre e sis­ tematicamente considerados sem valor. Como resultado, os animais irão, nas palavras de Bentham, “ficar degradados na classe das coisas”. Segundo Francione, o princípio de que devemos tratar casos se­ melhantes semelhantemente proíbe que tratemos qualquer ser sencien­ te, seja ele humano ou animal, exclusivamente como um re­ curso. Fracione argumenta que, se for para os interesses dos animais terem alguma importância moral, devemos lhes estender um direito básico — o direito de não serem tratados como uma coisa. Devemos abolir, e não meramente regular, a exploração dos animais. Ele afir­ ma que nossa completa rejeição ao nosso tratamento dos animais como coisas não é tão radical quanto parece, quando consideramos que já condenamos a imposição de sofrimento “desnecessário” aos animais e que a maioria dos usos que fazemos deles não pode ser des­crita como necessária em qualquer sentido que seja. Podemos preferir os interesses dos humanos aos interesses dos animais em situações de genuíno conflito ou emergência, como quando passamos por uma casa em chamas ocupada por um homem e um animal e só temos tempo de salvar um deles, mas devemos parar de gerar esses conflitos ao tratar os animais como coisas, em primeiro lugar.

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O leitor que digere a argumentação claramente articulada e con­ vincente no cerne do livro de Francione deve concluir que o trata­ mento que damos aos animais invalida nossas declarações de que levamos os interesses deles a sério. Francione insiste que devemos estabelecer uma relação nova e completamente diferente com os ou­ tros animais, uma relação que transforme nossas instituições, nossa indústria e nossa ligação com o ambiente. Enfrentar verdades incômodas não é fácil. Francione coloca ­diante de nós de modo severo a realidade do nosso tratamento de animais. E então nos desafia a repetir nossa alegação de que levamos os inte­ resses dos animais a sério. Quando ele retira os obscurantes ­confortos da nossa negação, nossas justificações para explorar os animais soam tão ocas e hipócritas quanto nossa defesa da escravidão humana no passado. A teoria de Francione é radical, mas é simples, do mesmo modo que a maioria das ideias revolucionárias são simples; é remi­ niscente da voz do escravo que proclamava: “Eu sou um homem”. O livro de Francione de 1995, Animals, Property, and the Law, marcou o início do status legal dos animais como tema de estudos acadêmicos sérios. Nesse livro, Francione apresentou a análise defi­ nitiva da condição dos animais como propriedade e colocou os ter­ mos da discussão que continua em ebulição pelas salas de aula e a mídia. Seguiu-se em 1996 o Rain Without Thunder: The Ideology of the Animal Rights Movement, um estudo do movimento americano pelos direitos animais em que Francione argumentou que esse mo­ vimento, em geral, rejeitou a posição dos direitos animais e abraçou a regulação, e não a abolição, da exploração animal. No presente livro, Francione oferece uma teoria de direitos ani­ mais que ele deriva das nossas visões morais convencionais e dissemi­ nadas. Embora trate de alguns dos problemas filosóficos mais difí­ceis que informam a ética animal, sua apresentação é extraordinariamente clara e acessível a qualquer leitor interessado no assunto. Foi neces­ sário alguém como Francione, com seu penetrante insight, aguçado intelecto e longa experiência prática como principal advogado ligado aos direitos animais da nação, para produzir uma análise que há de superar as abordagens anteriores da relação entre humanos e animais, e para fornecer uma base teórica rigorosa e criativa para redefinir essa relação. O aumento do número de aulas sobre direitos animais oferecidas nas faculdades de Direito tem atraído muita atenção, recentemente. Sem dúvida, o empenho pedagógico e acadêmico de Francione, assim

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como seus litígios de interesse público, tem sido responsável por essa tendência. Com sua colega Anna Charlton, Francione deu aulas sobre aspectos legais dos direitos animais por mais de uma década na Rut­ gers Law School e dirigiu a única oficina de litígio referente a di­ reitos animais de qualquer faculdade de Direito do país. Antes disso, e enquanto ele e eu éramos professores da University of Pennsylva­ nia Law School, Francione lecionou direitos animais como parte de seu curso de jurisprudência. Embora outras pessoas ecoem suas ideias, o trabalho de Francione define o padrão nessa área de pesquisa. Quem me conhece bem pode estar confuso com este Prefácio. Durante a maior parte da minha vida adulta, fui um ávido caçador de pássaros e pescador. Mesmo hoje, quase duas décadas depois de ter deixado a Escócia, incluo os membros do meu grupo de tiro entre meus amigos mais chegados. Conheci Gary Francione através de meu amigo, e seu professor, David Yalden-Thomson, com quem eu atirava em patos e gansos três dias por semana, na Virgínia. Mas já se passaram anos desde que cacei com alguma seriedade. Vou com frequência à nossa fazenda na Carolina do Sul, com a intenção de pescar. Mas não consigo me lembrar de ter realmente posto a minha vara de pesca no barco. Ia haver um evento de tiro ao pombo em nossa fazenda, organizado por um clube, e me pediram para parti­ cipar. Respondi que não conseguia decidir. No fim, não participei. E acho que não vou mais atirar em pássaros. Ainda como carne, embora com menos frequência. Tenho quase certeza de que vou pescar trutas com mosca, novamente. Então tenho um conflito. Não vou explicar, nem posso. Mas é apropriado registrar que acredito que se tivesse vivido em 1850, em condições semelhantes a estas em que vivo agora — no sul dos Estados Unidos, com minha fazenda fami­ liar e muitos acres cobertos de algodão —, eu não teria me oposto à escravidão, embora possivelmente tivesse, espero, dúvidas. Alan Watson Athens, Geórgia 1o de maio de 2000

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