Leis da sorte

Page 1

Leis da sorte


universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta

Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Esdras Rodrigues Silva – Guita Grin Debert João Luiz de Carvalho Pinto e Silva – Luiz Carlos Dias Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Antunes – Sedi Hirano


Amy Chazkel

Leis da sorte

o jogo do bicho e a construção da vida pública urbana

Tradução Vera Joscelyne


Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.

ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação C399L

Chazkel, Amy, 1967Leis da sorte: O jogo do bicho e a construção da vida pública urbana / Amy Chazkel tradução: Vera Joscelyne – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2014. 1. Jogos de azar – Rio de Janeiro (RJ) – História – Séc. XX. 2. Crime – Rio de Janeiro (RJ) – História – Séc. XX. 3. Jogos de azar – Legislação – Rio de Janeiro – História – Séc. XX. 4. Rio de Janeiro (RJ) – Usos e costumes – Séc. XX. I. Título.

cdd 795.38098153 364.1098153 344.81530542 e-isbn 978-85-268-1250-5 301.2098153

Índices para catálogo sistemático: 1. Jogos de azar – Rio de Janeiro (RJ) – História – Séc. XX 2. Crime – Rio de Janeiro (RJ) – História – Séc. XX 3. Jogos de azar – Legislação – Rio de Janeiro – História – Séc. XX 4. Rio de Janeiro (RJ) – Usos e costumes – Séc. XX.

Copyright © by Amy Chazkel Copyright © 2014 by Editora da Unicamp

Título original: Laws of chance Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, dos detentores dos direitos. Printed in Brazil. Foi feito o depósito legal.

Direitos reservados à Editora da Unicamp Rua Caio Graco prado, 50 – Campus Unicamp cep 13083-892 – Campinas – sp – Brasil Tel./Fax: (19) 3521-7718/7728 www.editora.unicamp.br – vendas@editora.unicamp.br

795.38098153 364.1098153 344.81530542 301.2098153


Para meus pais Jane Deborah Hochman e Michael Fredric Chazkel



Agradecimentos

Este livro vem me seguindo como um cãozinho de estimação por um número de anos maior do que eu gostaria de admitir. Qualquer pessoa que tenha feito parte da minha vida nesse período foi forçada a lidar com a matilha barulhenta de prazos finais, preocupações e tarefas que sempre o acompanhou. Gostaria de agradecer a meus amigos e a minha família, por sua paciência e seu apoio durante todo esse processo. Por terem acompanhado este livro desde seu começo, devo minha gratidão mais profunda a Gilbert M. Joseph e Stuart B. Schwartz, e também a Jean-Christophe Agnew e Barbara Weinstein. Agradeço-lhes por seus conselhos brilhantes sobre meus estudos durante esses anos, por seu carinho e bondade, e pelo tempo em que investiram em mim. Tenho também uma enorme dívida intelectual e pessoal com muitos membros do corpo docente da Yale, especialmente Emilia Viotti da Costa, John Demos, Michael Denning, Dolores Hayden, Patricia Pessar e Lídia Santos. Nos últimos anos, meus colegas na Cuny me ofereceram um ambiente intelectualmente interessante e estimulador. A reitora Elizabeth Hendrey e Frank Warren, o chefe de departamento mais atencioso e incentivador por que uma pessoa jamais poderia esperar, merecem atenção especial. Participantes da Boston Area Latin American History Workshop, no Rockefeller Center for Latin American Studies, da Harvard University, o Law and Society Graduate Student Workshop e o Laboratório de História e Antropologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, o Yale Graduate School Interdisciplinary Colloquium on Urban History, o Cuny Center for the Humanities, o New York City La­tin American History Workshop e o Columbia University Brazil Faculty Seminar, todos me ofereceram insumos valiosos à medida que este projeto se desenvolvia.


Tive a imensa sorte de ser membro de vários grupos de escritores. Cada um contribuiu com algo indispensável e único em uma fase específica no pro­cesso de escrever o livro. Michael Cohen, Jay Garcia, Victoria Langland, Mark Overmyer-Velásquez e Fiona Vernal forneceram motivação, sugestões substantivas e uma amizade preciosa à medida que o projeto ia tomando forma. Por sua contribuição brilhante em estágios subsequentes, gostaria de agradecer aos membros do “Little Summit”, Seth Fein, Joanne Freeman, Chris Hill e Pablo Piccato; e a Sarah Covington, Sujatha Fernandes, David Kazanjian e Josie Saldaña, do grupo mais recente. Devo meu agradecimento mais entusiástico pela solidariedade, amizade e pelo apoio intelectual de José Celso de Castro Alves, Desmond Arias, Bert Barickman, Jeremy Baskes, Peter Beattie, Dain Borges, Denise Ileana Bossy, Marcos Luiz Bretas, Andréa Casa Nova Maia, John Chasteen, Sarah Chinn, John Collins, Ray Craib, Roberto DaMatta, Jerry Dávila, Brodwyn Fischer, Moira Fradinger, Zephyr Frank, Denise Frossard, Peter Fry, Olívia Maria Gomes da Cunha, Paul Gootenberg, James N. Green, Mônica Grin, Marc Hertzman, Gilberto Hochman, Tom Holloway, Jeffrey Lesser, Zeca Ligieiro, Rick Lopez, Joseph Luzzi, Bryan McCann, Felipe Magalhães, William Martins, Lígia Mefano, Nara Milanich, Zachary Morgan, Isadora Moura Mota, Álvaro Nascimento, Ángel Oquendo, Julia Ott, Marco Antonio Pamplona, Ben Penglase, Kristin Phillips-Court, Luciana Pinheiro, Leigh Raiford, Gautham Rao, Chico Romão, Micol Seigel, Satadru Sen, Thomas Skidmore, Carlos Eugênio Líbano Soares, Aoibheann Sweeney, Gail Triner, George Trumbull, Daniel Levinson Wilk, Daryle Williams, Erica Windler, Joel Wolfe e James Woodard. Embora eu lamente que os limites de contagem de palavras me obriguem a colocar vocês de uma maneira tão telegráfica em uma lista, enquanto vou digitando as letras de seus nomes imagino uma conversa tomando um café, uma longa caminhada no calçadão, ou advertências amáveis expressas em tinta vermelha às margens do rascunho de um capítulo. Espero que cada um de vocês possa ler nas entrelinhas suas contribuições individuais preciosas para este livro. Agradeço aos funcionários de bibliotecas e arquivos nos Estados Unidos e no Brasil que me orientaram nos desafios do processo de pesquisa. Nos Estados Unidos, gostaria de agradecer a César Rodríguez, na Yale, assim como aos funcionários das bibliotecas Oliveira Lima e da Universidade da Flórida, em Gainesville. À Biblioteca Pública de Nova York, que me cedeu um espaço de trabalho tranquilo no Allen Study. A indivíduos numerosos demais para serem mencionados, que me ajudaram em minha pesquisa no Brasil, inclusive


aos funcionários extraordinários do Arquivo Nacional, especialmente Sátiro Nunes e Rosane Coutinho; Beatriz Kushnir e aos demais funcionários no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, Maria Angélica Varella e Carla Ramos, no Setor de Periódicos na Biblioteca Nacional; a Paulo Knauss, Johenir Jannotti Viega, Lícia Medeiros e a todos aqueles no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro que sempre me receberam com tanto carinho; aos bibliotecários na Casa de Rui Barbosa que me apresentaram sua preciosa coleção de textos jurídicos e folhetins; e a Pedro Tórtima, no Instituto de História e Geografia Brasileira, por chamar minha atenção para algumas fontes significativas. Minha pesquisa não teria sido possível sem o apoio da Yale University Graduate School, das bolsas da University of Florida em Gainesville (Bolsa para viagens para estudos latino-americanos), do Yale Council on International and Area Studies, da Yale Department of History Mellon Research Grant, da Alfred J. Beveridge Fellowship, da John F. Enders Grant, da John Perry Miller Award for Research e da Yale Latin American Studies Mellon Fund, além do tempo que passei no Gilder Lehrman Center for the Study of Slavery, Resistance and Abolition, no Cuny Center for the Humanities e no David Rockfeller Center for Latin American Studies. O PSC Cuny financiou minhas últimas investidas ao arquivo. No caminho para se tornar um livro, uma versão do Capítulo 1 foi publicada no Journal of Latin American Studies (volume 39, agosto de 2007). Valerie Millholland, Miriam Angress, Gisela Fosado, Mark Mastromarino e muitos outros na Duke University Press zelaram por este livro durante o processo de publicação, e pareceristas anônimos o aprimoraram extremamente com suas muitas criteriosas sugestões. Obrigado a todos por acreditar neste projeto e pacientemente ensinar a este autor principiante sobre o processo de produzir um livro e — nas palavras inesquecíveis de um de meus leitores citando o famoso escultor equestre — de aparar “tudo o que não parece com um cavalo”. A tradução deste livro, originalmente escrito em inglês, foi a realização de um sonho. Sua versão em português, mesmo que tivesse sido concebido, pesquisado e inspirado no Brasil, não ia nascer sem o auxílio generoso de algumas pessoas-chave. Agradeço a Henrique Espada Lima, pelas inúmeras horas que passou lendo e relendo passagens e discutindo as nuanças da língua portuguesa, por compartilhar seu brilho comigo e por sua solidariedade ao longo deste processo; a Sidney Chalhoub, pelo apoio em várias etapas da minha busca para publicar este livro no Brasil e, além do mais, por providenciar um


modelo de um mestre historiador; a Luciana Pinheiro, pelo imenso quebra-galho no momento de voltar mais uma vez aos arquivos para procurar as citações originais em português; a Eduardo Guimarães, José Emílio Maiorino e Ricardo Lima, pelo prazer e a honra de trabalhar com a Editora da Unicamp; a Paulo Franchetti, diretor da Editora quando da apresentação deste trabalho para publicação, pela acolhida e receptividade; e a Vera Joscelyne, por seu espírito colaborador e pela tradução criteriosa. Finalmente, embora não menos importante, eu gostaria de agradecer a meus pais maravilhosos, a quem dedico este livro, bem como a Jack e Ala. Com amor e admiração, reconheço a contribuição de Henrique, que, além de me auxiliar inúmeras vezes em coisas diretamente ligadas ao projeto deste livro, é fonte ilimitada de inspiração e alegria. De todos os meus interlocutores, no entanto, agradeço principalmente a minha pequena Aya. Ela suportou o peso do tempo que gastei para terminar este livro e nunca deixou de me espantar com sua eloquência e bom senso. Com ela, ganhei na loteria.


Sumário

Índice de ilustrações .............................................................................................. 13 Prefácio à primeira edição . . ................................................................................. 17 Observações sobre a moeda e a ortografia brasileiras

................................ 19

Introdução ................................................................................................................ 21 1. Origens do jogo do bicho.. ................................................................................ 51 2. As regras do jogo ................................................................................................ 101 3. Um submundo de bens.. .................................................................................... 139 4. Jogando com dinheiro no Rio de Janeiro republicano .............................. 183 5. Vidas de jogadores ............................................................................................. 213 6. Vale o escrito ....................................................................................................... 261

Epílogo.. ..................................................................................................................... 317 Bibliografia e Fontes .............................................................................................. 335



Índice de ilustrações

Figuras 1 – “Deu zebra no jogo do bicho e xadrez”, folhetim por Franklin

Maxado, c. 1980................................................................................................. 22 2 – Vila Isabel, c. 1900. . .......................................................................................... 57 3 – Rua em Vila Isabel, com bonde, c. 1910.. ................................................. 57 4 – Bilhete para o Jardim Zoológico de Vila Isabel, c. 1895, que também incluía o sorteio dos bichos.. ...................................................... 59 5 – Caricatura dramatizando a polêmica sobre o Barão de Drummond e o jogo do bicho ( 1896).. .............................................................................. 61 6 – “Aqui na cidade, apesar da proibição da polícia, o jogo do bicho continua quase como antes. A gente só ouve ‘o burro ganhou! o camelo ganhou!’” ( 1895) ............................................................................... 61 7 – “O fechamento do Jardim Zoológico” ( 1895).. ...................................... 63 8 – “O jogo e os book-makers” ( 1895) ............................................................ 65 9 – Série de charges mostrando a popularidade e a expansão do jogo do bicho ( 1895) ....................................................................................... 67 10 – Casa lotérica no centro da cidade no Rio de Janeiro, c. 1910. . ...... 73 11 – Extração da loteria legal, c. 1925.............................................................. 74 12 e 13 – Vendedores ambulantes no Rio de Janeiro, c. 1910.................. 155 14 – Quiosque em São Cristóvão, Rio de Janeiro ( 1911) ......................... 162 15 – Uma lista das apostas do jogo do bicho, apreendida de um suspeito vendedor ( 1917).. ............................................................................. 184 16 – “Enigma Animal: Calendário do Zé Povo” ( 1904) ............................ 224 17 e 18 – Folhetim: Leandro Gomes de Barros, “A Morte do Bicheiro” ( 1911) ............................................................................................... 229


leis da sorte

19 – “Iniciação zoológica”: “Diga, Lili, já lhe ensinaram na

20 21 22

23 24 25

26 27

28

29

30

escola que espécie de bicho é o elefante?” “Já, mamãe; é o grupo 12...” ( 1922) ............................................................................................ 232 – Lendo “O Bicho” ........................................................................................... 234 – Jornal O Bicho. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca Nacional, Brasil ............................................................................................... 241 – Detalhe do jornal O Bicho mostrando a resposta dos editores para a “correspondência” de leitoras, ano 10, n. 114 ( 23 maio, 1912). . ......................................................................... 242 – Retrato de Paschoal Segreto, s.d. ............................................................ 248 – Empregado da companhia de entretenimento de Paschoal Segreto, aparentemente seu irmão, Afonso Segreto, s.d. .. .............. 250 – Charge da revista Dom Quixote: “Repressão da jogatina”: “Que vem a ser aquilo, ó garoto?” “São agentes de polícia numa casa de bicho.” “Para prender o banqueiro?” “Não; para ver a centena.” .................................................................................................. 286 – Lista apresentada como evidência em uma ação de jogo do bicho rasgada pelo réu e reajuntada pela polícia ( 1939) . . ................. 296 – Fotografia da vigilância policial de suspeitos de estar jogando no bicho, 1971 (retocada em 2009 pelo Arquivo para encobrir o rosto dos suspeitos) . . .................................................................................................. 318 – Fotografia da vigilância policial mostrando suspeitas transações de jogo do bicho, 1971 (os rostos dos suspeitos retocados pelo Arquivo em 2009).. ........................................................................................... 319 – Fotografia da vigilância policial do local de apostas do jogo do bicho rodeado de arame farpado, 1975 (retocado pelo Arquivo em 2009 para ocultar rostos) ............................................................................... 324 – Fotografia policial da mesa de um vendedor do jogo de bicho ( 1975) .................................................................................................................... 325

Mapas 1 – Brasil: Cidades principais e fronteiras políticas, c. 1900. ................. 20 2 – Rio de Janeiro, mostrando a expansão das linhas de

bonde, c. 1880..................................................................................................... 55

14


índice de ilustrações

3 – Área metropolitana do Grande Rio indicando as jurisdições

paroquiais, c. 1900............................................................................................ 5 6

Tabelas 1 – Crescimento da população no Rio de Janeiro por bairro, 1870 - 1906 ............................................................................................................. 54 2 – Os 25 animais originais no jogo do bicho e os números

correspondentes.. .............................................................................................. 66 3 – Sumário das primeiras prisões relacionadas com o jogo do bicho em bairros selecionados do Rio de Janeiro. . ........................................... 89 4 – Artigos do Código Penal Brasileiro relacionados com o jogo de azar .. ............................................................................................................... 121 5 – Profissões de pessoas detidas por jogo do bicho e outros delitos relacionados com o jogo, 1896 - 1929 ............................................ 167 6 – Trabalhadores no comércio presos por delitos relacionados com o jogo, 1896 - 1929 , por idade ......................................................................... 168 7 – Trabalhadores no comércio presos por delitos relacionados com o jogo, 1896 - 1929 , por estado civil............................................................. 169 8 – Trabalhadores no comércio presos por delitos relacionados com o jogo, 1896 - 1929 , por nacionalidade ........................................................ 169 9 – Trabalhadores no comércio presos por ofensas relacionadas com o jogo, 1896 - 1929 , por cor da pele .................................................... 171 10 – Amostra de prisões por mês no Terceiro Distrito Policial, julho a dezembro de 1916 . . ............................................................................ 268 11 – Campanha policial contra o jogo do bicho: Pessoas presas e operações de fechamento no Distrito Federal, 1917 - 1918 .................. 269 12 – Legislação Federal pertinente ao jogo do bicho, 1890 - 1946.. ........... 321

15



Prefácio à primeira edição Barbara Weinstein

Como historiadores radicais já observaram há muito tempo, a história não pode ser separada da subjetividade autoral, ou, na verdade, da política. Os interesses políticos dão vida às perguntas que fazemos, aos temas sobre os quais escrevemos. Por mais de 30 anos a revista Radical History Review foi pioneira na promoção e no fomento desse tipo de pesquisa histórica comprometida. Este livro foi originalmente publicado em uma série chamada Radical Perspectives, organizada por mim e por Daniel J. Walkowitz, que busca ampliar essa missão da publicação: qualquer autor que deseje estar nesta série toma uma decisão autoconsciente de associar seu trabalho com uma perspectiva radical. Por certo, muitos entre nós estamos atualmente lutando com o que significa ser um historiador radical no início do século XXI, e esta série tem a intenção de fornecer alguns marcos para aquilo que consideraríamos ser história radical. Seu objetivo é oferecer maneiras inovadoras de contar histórias de perspectivas múltiplas; histórias comparativas, transnacionais e globais que transcendem as fronteiras convencionais regionais e nacionais; obras que trabalham as implicações do movimento pós-colonial para “provincializar a Europa”; estudos do público no passado e do passado inclusive aqueles que consideram a comodificação do passado; histórias que exploram a interseção de identidades, tais como gênero, raça, classe e sexualidade, com um olho em suas implicações e complicações políticas. Sobretudo, esta série de livros ­busca criar um importante espaço intelectual e uma comunidade discursiva para explorar a própria questão do que é a história radical. Nesse contexto, alguns dos livros publicados na série podem privilegiar culturas políticas nativas e oposicionistas, mas todos estarão preocupados com a maneira pela qual o poder é constituído, contestado, usado e abusado. Em Leis da sorte Amy Chazkel acompanha a trajetória fascinante de uma renomada instituição brasileira, o jogo do bicho, de sua criação na década de


leis da sorte

1890 até grande parte do século XX. Ela familiariza o leitor com uma gama de

personagens intrigantes (e às vezes ardilosos) que vão desde financistas abastados e juristas céticos até vendedores de bilhetes de segunda categoria, camelôs, jogadores de loteria, policiais corruptos e idosos jogando dominó em uma praça pública. Remontando à primeira década após o fim da escravidão e à fundação da República, essa loteria, como mostra Chazkel, passou a ser uma característica integrante da vida no Rio de Janeiro durante um período de programas maciços de renovação urbana e de expansão de pequenos negócios, como também um elemento constitutivo do policiamento urbano. A questão principal, segundo Chazkel, não é tanto se atividades ilegais estavam ocorrendo, e sim por que razão esse passatempo popular, esse de jogo de azar, foi criminalizado. O resultado não foi a captura e prisão maciça de vendedores e compradores de bilhetes, mas, ao contrário, foi uma “área cinza” que permitia à polícia uma latitude considerável na restrição ao uso do espaço público. Central ao argumento de Chazkel é sua reconsideração daquilo que muitos historiadores veem como a falha principal na cultura jurídica latino-ameri­cana: o vão entre os códigos jurídicos formais e as práticas policiais, um conceito que depende da expectativa de uma correspondência direta entre a letra da lei e sua aplicação. Em vez disso, Chazkel argumenta que esse vão é precisa­mente o espaço em que uma variedade de figuras de autoridade podia desfrutar certo grau de flexibilidade ou exercer um poder arbitrário. Nessa mesma linha, é significativo que a severa sanção do jogo do bicho em 1917 teve o efeito, não de preencher esse vão, mas sim de provocar um cinismo ainda maior com relação à força policial carioca. E a ironia final dessa história curiosa é que o ilícito jogo do bicho acaba sendo considerado, nos meios populares, a instituição mais confiável e digna de crédito da vida cotidiana.

18


Observações sobre a moeda e a ortografia brasileiras

A unidade básica da moeda em uso no Brasil durante todo o período em que se concentra este livro era o mil-réis, que o país adotou em 1846. Um mil-réis, escrito como 1$000, era o equivalente a um mil réis (o plural de real), uma unidade monetária mais antiga, cujo valor já tinha diminuído radicalmente na metade do século XIX. Mil mil-réis equivaliam a um conto. Em 1942, o cruzeiro substituiu o mil-réis e o conto. As fontes das taxas de câmbio históricas e dos dados sobre o custo de vida foram citadas nas notas finais. O idioma português brasileiro ainda não tinha sido padronizado ortograficamente no final do século XIX e começo do século XX. Para todos os nomes próprios de pessoas usei a ortografia que aparecia com mais frequência na documentação contemporânea. Nomes próprios de lugar foram escritos segundo as convenções atuais. A ortografia das demais palavras segue o padrão de hoje. Documentos do final do século XIX e do começo do século XX chamam a loteria com nomes de animais que são tema deste livro de várias maneiras: jogo dos bichos, jogo do bicho e o jogo de bicho. Uso o nome-padrão atual, jogo do bicho, exceto em algumas citações diretas.


leis da sorte

Mapa 1 — Brasil: Cidades principais e fronteiras políticas, c.1900.

20


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.