universidade estadual
de
campinas
Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta
Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Elinton Adami Chaim– Esdras Rodrigues Silva Guita Grin Debert – Julio Cesar Hadler Neto Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Antunes – Sedi Hirano Comissão Editorial da Coleção Históri@ Illustrada Silvia Hunold Lara (coordenadora) Maria Clementina Pereira Cunha – Martha Campos Abreu Ricardo Antunes – Sidney Chalhoub
A coleção Históri@ Illustrada publica livros digitais com resultados de pesquisas situadas nas áreas da História Social e da Cultura que utilizam documentos textuais, iconográficos e sonoros. Ao unir texto, imagem e som na análise historiográfica, ela pretende atingir dois objetivos. De um lado, permitir aos leitores um acesso direto, livre de mediações ou interferências, a fontes não textuais (como as músicas, as artes plásticas, a fotografia etc.), que constituem elementos essenciais para essa área de estudos – tarefa difícil de realizar em livros impressos. De outro lado, enriquecer a leitura com ilustrações capazes de dialogar com a narrativa, aumentando o envolvimento do leitor e tornando-a mais acessível para o público não especializado. O livro eletrônico, com maior agilidade e abertura à inovação, é a melhor ferramenta para realizar esse propósito. Ele permite integrar em uma mesma plataforma o texto autoral e os documentos textuais, sonoros e imagéticos que constituem suas fontes, ao lado de outros recursos audiovisuais destinados a proporcionar um novo modo de relação entre o leitor e o texto.
Maria Clementina Pereira Cunha
“NÃO TÁ SOPA” Sambas e sambistas no Rio de Janeiro, de 1890 a 1930
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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.
ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação
Bibliotecária: Helena Joana Flipsen – crb-8ª / 5283 C914n
Cunha, Maria Clementina Pereira, 1949“Não tá sopa” [recurso eletrônico]: Sambas e sambistas no Rio de Janeiro, de 1890 a 1930 / Maria Clementina Pereira Cunha – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2015. Publicado em versão digital E-Pub 3. 1. Samba – Rio de Janeiro (RJ). 2. Sambistas. 3. Escolas de samba – Rio de Janeiro (RJ). 4. Polícia – Rio de Janeiro (RJ). I. Título. cdd - 394.25098153 - 780.4 - 352.2098153
e-isbn 978-85-268-1295-6
Índices para catálogo sistemático:
1. Samba – Rio de Janeiro (RJ) 2. Sambistas 3. Escolas de samba – Rio de Janeiro (RJ) 4. Polícia – Rio de Janeiro (RJ)
394.25098153 780.4 394.25098153 352.2098153
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................. 5 capítulo i – uma questão de berço . ............................................. 17 Não é samba, é batucada . ........................................................................... 20 Em berço esplêndido: Batuques, harmônicas, realejos ........................... 32 Uma cidade musical . ................................................................................... 47 Capítulo II – GENTE DA LIRA ............................................................... 53 Nem tão pequena, nem tanto África .......................................................... 55 Sambistas e trabalhadores na capital federal .......................................... 71 Meganhas na canoa: Um inimigo comum ................................................. 82 Capítulo III – GENTE DE FORA .. ........................................................... 93 Por dentro das rodas .................................................................................. 95 Baianos no Rio de Janeiro .......................................................................... 110 “Aos costumes”: Delegacias e pretorias .................................................... 133 Capítulo IV – DA GEMA .......................................................................... 149 As agruras do “seu” comissário .................................................................. 154 Entre os santos e as donas: O Estácio de Sá . ........................................... 179 Gente reiuna ................................................................................................. 191 ABREVIATURAS UTILIZADAS ................................................................... 206 notas ........................................................................................................... 207 créditos de imagens e fonogramas ............................................. 234 FONTES E BIBLIOGRAFIA . ........................................................................ 246 sobre a autora
INTRODUÇÃO
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\1 “[...] Eu hoje estou pulando feito sapo Pra ver se escapo desta praga de urubu. O meu terno já virou farrapo Eu vou acabar ficando nu Meu paletó virou estopa e eu pergunto com que roupa, com que roupa eu vou? [...]” O título deste livro, como a grande maioria já deve ter percebido, inspi-
rou-se em um samba muito conhecido, gravado em 1930. Nele, Noel Rosa comenta o cotidiano de um malandro carioca, lamentando sua má sorte naqueles dias: o português que o financiava indiretamente através da mulher “que tanto amou outrora” – com certeza negra ou mulata, seguindo o es tereótipo – havia se mandado para a terrinha a fim de se casar com uma “cachopa”, deixando o malandro sem sua principal fonte de renda. A vida não era fácil nem para o malandro, nem para a mulata, nem para o sambista – talvez nem mesmo para o português que lhe “levou o capital”. A dificuldade aparece na forma de roupa velha, paletó em farrapos – situação inaceitável entre esse grupo de homens para os quais o esmero no vestuá rio era condição básica de prestígio. Para os malandros do Estácio ou da
Lapa, com quem Noel conviveu muito de perto nos botequins, nos círculos musicais e depois nas estações de rádio, a vida não estava (nem era) sopa. O mesmo pode ser dito sobre o dia a dia de sambistas um pouco mais velhos, ou menos transgressivos, de outros territórios cariocas; o comentário vale também para os seus vizinhos de bairro, companheiros de trabalho ou amigos de noitadas. Por isso os versos de Noel fornecem um gancho interessante para iniciar uma incursão a este universo, pela mão dos indivíduos que, de modos diferentes, participavam das muitas rodas que se espalhavam pela cidade. Experimentando as mesmas dificuldades, esses indivíduos não reagiam da mesma forma – e suas opções estão impressas nas trajetórias pessoais, nos sambas que assinaram e nas atitudes assumidas nas situações de conflito em que foram dar com os costados na polícia. Seguindo seus passos, não pretendo discutir propriamente o gênero musical e suas modificações – embora passar por estas questões seja inevitável. O foco está centrado na vida cotidiana dos participantes e frequentadores dessas rodas, suas percepções e comportamentos em circunstâncias determinadas. E, naturalmente, nas escolhas, nas disputas, nos valores compartilhados entre os vários grupos, nas relações entre esses indivíduos especiais e a multidão de anônimos com que conviveram nos bares e cafés, cortiços, terreiros ou, eventualmente, nas cadeias. O ponto de partida foi a constatação simples de que, no início do século XX, sambistas ainda tinham de dividir seu tempo entre a música e a viração e eram basicamente trabalhadores dotados de bom ouvido musical, habilidade rítmica ou facilidade com as rimas. Por isso, acompanhá-los de perto, em seus espaços informais, possibilita uma aproximação mais direta também com a própria experiência dos trabalhadores na cidade do Rio de Janeiro. Por muito tempo olhamos com carinho e devoção para esses músicos que, mesmo longe da mídia, permanecem povoando nossa imaginação e nosso afeto. Sambistas da “velha guarda”, gente intitulada “de raiz”, vistos como fundadores de um gênero musical que se confunde com a própria alma carioca e brasileira, constituem, para muitos de nós (especialmente aqueles cujos cabelos brancos revelam o passar dos anos), uma espécie de unanimidade estética e emocional. Outros personagens simbólicos foram associados à imagem mítica desses pioneiros: tias baianas com seus tabuleiros, pais de santo famosos, simpáticos malandros de fábula, artistas do rádio, literatos sensíveis às manifestações da brasilidade, além de outras figuras quase estilizadas, conformam uma história canônica do samba na qual uma evolução linear dos acontecimentos faz desaparecer as contradições. Essa versão bem conhecida, que tem algumas variantes em uma bibliografia quase sempre redundante e pouco crítica, costuma fazer tabula rasa das diferenças entre aqueles indivíduos e geralmente passa ao largo do signifiNÃO TÁ SOPA
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cado de suas pinimbas lendárias, frequentemente musicadas em polêmicas cujo sentido pode parecer hoje um tanto opaco. Como resultado dessa síntese redutora, o samba, afinal, evoca, para a maioria dos nossos contemporâneos, a ideia de “origem” ou, o que dá no mesmo, uma concepção finalista de resultado da formação brasileira da qual ele seria a melhor expressão. Ainda que hoje em dia tal ideia possa soar um tanto antiga nos corredores das universidades, ela ainda é encontrada quase intacta em debates na mídia, em políticas públicas na área da cultura e mesmo, é forçoso confessar, naturalizada em argumentos de intelectuais de inteligência aguda e renome acadêmico. * Parte dessa construção parece saltar diretamente da crônica ou da memória dos sambistas, como a própria divisão rígida em gerações distintas. O primeiro exemplo que me ocorre é uma compilação de sambas de Donga, Sinhô, Caninha, João da Bahiana e outros, na famosa coleção de história da música popular brasileira publicada pela Editora Abril do final dos anos 1960, coordenada por especialistas amplamente reconhecidos nessa área.1 O título atribuído ao volume diz tudo: Donga e os primitivos. O compositor mencionado, cuja caricatura está em primeiro plano, é um dos autores do samba “Pelo telefone”, gravado em 1917, e de vários outros sucessos ao longo das décadas de 1920 e 1930. Na capa, entretanto, as imagens de Debret ao fundo enfatizam a sugestão de uma distância temporal, remetendo esses compositores a antigas tradições escravas ou ao passado remoto do país. O pressuposto é que, apesar dessa longa história, o samba “de fato” se iniciou com a geração carioquíssima do Estácio e a Escola de Samba Deixa Falar, de 1928. Ignora-se aí que, nessa década, tais primitivos estavam vivos e em plena atividade, produzindo muito, trocando farpas musicais, gravando discos, frequentemente convivendo com os sambistas malandros do Estácio e disputando espaço com eles no crescente mercado musical. Derivado dessa falsa temporalidade há ainda o reiterado zum-zum-zum em torno do lugar de nascimento do gênero, que já mobilizava seus aficionados e praticantes no início do século XX: ele seria do morro ou do asfalto? Carioca ou baiano? Da Cidade Nova ou do Estácio? A persistência de polarizações tão evidentemente absurdas, decorrentes da disputa coeva entre sambistas, revela com clareza a simbiose entre a memória dos agentes e a história do samba. As respostas encontradas por cada autor, ao longo do tempo, derivaram sempre de uma ótica subordinada a afinidades tão estéticas quanto políticas. São, na verdade, pontos de vista que se cristalizaram em uma bibliografia amparada no gosto pessoal e na ideologia. Por isso, podemos nos dispensar do exercício de discutir uma a uma obras que mal NÃO TÁ SOPA
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conseguem ultrapassar a crônica e o relato episódico, embora constituam muitas vezes úteis repositórios de informação.2 Há ainda outros (quase) consensos nessa bibliografia que, em grande parte, foram absorvidos, perenizados e adensados pelas análises acadêmicas. Eles costumam ter uma relação mais ampla com a maneira pela qual os autores entendem a história recente do Brasil; ao mesmo tempo, indicam que, de modo geral, não se costuma refletir sobre ela quando se trata de samba. Em primeiro lugar, destaca-se a surpresa que cerca a rápida pas sagem de uma etapa da mais absoluta repressão sobre o gênero musical e seus praticantes (ou os batuques que lhe dariam origem) para um novo tempo de valorização e reconhecimento desse produto da cultura urbana como um autêntico símbolo de identidade coletiva. Como teria sido possível? Tomar o fenômeno como um sintoma autoevidente da chamada “ascensão das classes populares” no cenário nacional dos anos 1920-1930 tem sido o caminho mais comum. Esta leitura tende a ver manifestações culturais como algo diretamente derivado da origem de classe de seus autores e a discutir de que formas esse difícil trânsito poderia ter sido operado. A presença de intelectuais e artistas da elite com sensibilidade suficiente para atuar como mediadores culturais, reconhecendo e traduzindo as expressões populares legítimas entre as quais o “samba de raiz”, transformou-se em uma resposta segura para a velha pergunta e ganhou espaço entre as interpretações dessa história.3 Outro elemento recorrente na percepção da trajetória do samba e dos sambistas diz respeito às clivagens raciais.4 Postulado por vários autores como uma musicalidade essencialmente negra ou originariamente africana, o gênero é habitualmente remetido aos batuques e umbigadas dos séculos de escravidão e às formas tradicionais de culturas ancestrais das gerações de cativos. A identidade negra do samba foi estabelecida desde muito cedo em um viés complicado, que viu nele uma espécie de resultado do abrasi leiramento dos ritmos africanos, obtido através dos processos de refinamento pela mestiçagem. Eis aí de volta a insistente leitura da identidade mulata da nação, hoje reconciliada com seu próprio passado nos carnavais multirraciais da televisão. Mas a associação visceral entre o samba e os descendentes de africanos foi defendida também, em um sentido oposto, por autores ligados aos movimentos de afirmação da raça negra, que reivindicaram o samba como seu patrimônio exclusivo, associado estreitamente às religiões afro e a práticas culturais correlatas. Essas e outras interpretações, entretanto, padecem de um vício quase universal nessa área: as evidências reduzem-se ao mesmo conjunto de depoimentos de alguns dos personagens principais, impressões ou memórias construídas a posteriori, episódios sempre repetidos pela crônica e a menção a letras de sambas conhecidos e por vezes interpretados com superficialidade. A prática da pesquisa pa NÃO TÁ SOPA
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ciente e detalhada, estimulada por novas perguntas e interessada em novos aspectos e fontes, tem sido uma postura rara entre os especialistas da área, mesmo os mais recentes. Provavelmente por isso, poucos autores escaparam das polarizações simplistas nascidas da imagem do samba como o principal produto de uma cultura negra e, ao mesmo tempo, nacional-popular.5 Assim, essas concepções merecem ser revisitadas em busca de caminhos alternativos de interpretação desse fenômeno cultural duradouro e, sem dúvida, capaz de maravilhar os sentidos. Creio mesmo que paira sobre essas concepções, ajudando a cimentar o consenso, a força afetiva desses velhos sambistas e de tudo o que eles representaram para os brasileiros de ontem e de hoje. É como se a emoção que (ainda) despertam travasse a crítica e a curiosidade, cristalizando velhos enganos. * Quem sou eu para condenar? – como bem podia cantar um desses antigos bambas, em um refrão “de sua lavra”. Meu coração carioca bate mais forte em diferentes situações relacionadas ao samba, onde quer que o encontre (é bom avisar logo, antes que me acusem outra vez de ser doente-do-pé, se não ruim-da-cabeça). Apesar disso, o hábito profissional não permite meio-termo: admiradora e ouvinte sistemática do gênero, nunca pude deixar de me intrigar como historiadora com as gritantes diferenças de padrões, valores e pontos de vista que ele abriga. A imagem de uma musicalidade negro-popular, que passa da condenação ao triunfo com o acesso das classes subalternas ao cenário político nos anos 1930, nunca me pareceu combinar bem com tantas dissonâncias entre seus protagonistas. Ela tampouco parece compatível com a ideia de uma manifestação característica e univocamente nacional, capaz de expressar aquilo que faz do país o que ele é – como se ele fosse ou pudesse ser uma coisa só. Ao contrário, justamente por ter se tornado uma forma de manifestação bastante generalizada – e constituir uma unanimidade de público e de crítica –, o samba pareceu um bom lugar para identificar diferenças: entre os trabalhadores pobres como entre os sambistas, entre concepções e visões de mundo presentes nesse universo heterogêneo, buscando a expressão dos diferentes modos de vida que os sambas concretizavam e o carnaval reunia em torno de bandeiras ou estandartes que sempre variaram nas cores, nas formas, nos desenhos e nos significados. Tais diferenças, como se sabe, vinham de longe e não foram suprimidas – embora se transformassem – pela longa experiência do cativeiro. Abolida formalmente a escravidão, o exercício da cidadania pelos pobres, e mais ainda pelos negros, permanecia tolhido pela ausência de canais polítiNÃO TÁ SOPA
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cos de inclusão e participação. Naquelas condições, como enunciaram há décadas os historiadores mais atentos, formas de aglutinação à margem do arcabouço institucional oficial assumiram uma importância especial nas cidades brasileiras do início da República. Elas deram corpo a diferentes repertórios e escolhas de grupos das camadas populares para fazer frente ao domínio senhorial e, depois, à exclusão republicana, possibilitando construir espaços próprios de afirmação. A historiografia sobre a escravidão ur bana e o pós-Abolição tem evidenciado largamente a importância das identidades derivadas de práticas culturais coletivas e das experiências asso ciativas, formais ou informais, no exercício da autonomia para os escravos, ex-escravos e seus descendentes. Sintomas disso foram a constante recriação de tradições religiosas ancestrais e a busca dos seus vínculos com a África (ou do que ela podia significar, na reinvenção do continente de origem); a persistência de práticas como as rodas de jongo e as maltas de ca poeiras, as irmandades católicas congregadas em torno de santos associados aos negros, bem como a afirmação dos elos familiares tradicionais (de sangue como de afinidade eletiva) ou a retomada de antigos laços étnicos. Do século XIX ao XX, essas e outras formas culturais constituíram parte indissociável da experiência dos trabalhadores negros no Rio de Janeiro e em muitas outras cidades brasileiras.6 Os exemplos poderiam multiplicar-se na identificação de traços de uma permanência de práticas coletivas, com ou sem tambores, herdadas do tempo do cativeiro. A regra, no entanto, não é universal: em muitos casos, a afirmação de autonomia veio assentada em gestos ou atitudes de viés individualista e transgressor, o que até ajuda a compreender algumas tensões e rivalidades entre círculos de bambas da cidade, particularmente a “malandragem” retratada no samba de Noel. Mas, no século XX, ainda que a racialização das relações sociais e o racismo explícito das elites republicanas impregnassem o dia a dia dos trabalhadores da cidade, os espaços gestados pelos antigos escravos, especialmente aqueles relacionados ao carnaval ou a outras formas de lazer urbano, já encontravam novos parceiros em sua construção. Análises das formas de sociabilidade dos trabalhadores cariocas nesse período evidenciaram que os grupos que se organizavam para a festa e a folia – onde frequentemente os negros tinham a maioria, mas raramente a exclusividade – tiveram um grande peso nesse processo e figuram entre aqueles que sofreram maior controle ou foram objeto das mais duras iniciativas no dia a dia da polícia local. Elas também se incluem entre as formas mais duradouras de associação autônoma dos trabalhadores po bres da cidade, abrindo, nos intervalos das duras jornadas de trabalho, lugar para modos de cantar, tocar e dançar herdados do passado, mas também para a invenção de novas formas e significados festivos e musicais.7
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Cabe lembrar que, na virada do século XX, quando as sociedades carnavalescas e recreativas multiplicavam-se rapidamente pela cidade, a palavra “samba” tinha um significado diverso do atual. Em 1889, por exemplo, o erudito tenente-general Visconde de Beaurepaire-Rohan – que, apesar do nome, era mesmo natural de Niterói, integrando o último Conselho de Estado e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – incluiu em seu Diccionário, dedicado ao velho imperador no ocaso, um sintético verbete para o termo: tratava-se, para ele, apenas de “uma espécie de bailado popular”. E nada mais, deixando claro que a palavra corrente era mais associada a tais sociedades carnavalescas e dançantes, frequentadas por trabalhadores de várias procedências e cores, que propriamente a uma forma específica de musicalidade.8 Ainda assim, é necessário enfatizar que a absoluta maioria dos sambistas que vamos encontrar nas páginas seguintes, no papel de protagonistas dessa história, é constituída por descendentes de escravos. Impossível ignorar essa marca, inscrita na cor de suas peles e nas memórias aprendidas de seus pais e avós. Isso não significa, entretanto, que o samba possa ser tomado de antemão como uma manifestação exclusiva da “raça” ou de uma cultura própria desses setores – e, muito menos, como prática unívoca e isenta de conflitos. Nesse sentido, o carnaval e as rodas de samba podem ser um prato cheio para perceber, em um plano mais geral, tal multiplicidade. Entre outras coisas, quero sugerir, neste estudo sobre o ritmo e seus produtores, que a dimensão festiva e lúdica é capaz de nos ensinar muito sobre a história social e sobre os limites, escolhas e alternativas que se ofereciam àqueles homens e mulheres que cantavam, dançavam ou se divertiam em torno do som de violas, cavaquinhos, pandeiros, tamborins e outros instrumentos característicos, revelando suas formas de reivindicar e se dar a público, seus projetos e aspirações. Possivelmente, também ajude a pensar sobre a maneira como tais formas de associação para a festa serviram a propósitos eleitorais e a projetos de poder no Rio de Janeiro das décadas seguintes, alimentando relações de dependência com governos locais e grupos da política institucional. Pode-se vislumbrar aí, talvez, uma explicação para sucessos e insucessos de propostas políticas dirigidas aos trabalhadores, que foram vistos – e frequentemente se viram – sobretudo como “gente da lira”. Minha incursão prévia nestas questões como pesquisadora do carnaval carioca só fez crescer a inquietação. Conhecer as variadas formas de aglu tinação festiva, com suas coreografias, seus ritmos, enredos e trilhas sonoras que disputavam a primazia todos os anos, deu-lhe mais consistência. As profundas diferenças entre os ranchos carnavalescos – com rivalidades à flor da pele, mas sempre de canto suave e base harmônica, liderados por sambistas ou gente do candomblé – ou os cordões e blocos – com o peso dos bumbos e tambores que ofuscavam os instrumentos de corda e sopro evoNÃO TÁ SOPA
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cando antigos batuques do século XIX –, além de outras formas da folia, sempre em conflito umas com as outras nas ruas, não podem ser ignoradas quando se pensa em uma história do samba. Isso fez crescer a curiosidade sobre o que cantavam e tocavam aqueles grupos aos quais se atribui o papel único de precursores desse gênero musical. Logo me vi fuçando os arquivos em busca dos indivíduos que formavam tais conjuntos e suas formas de relação com outros grupos, bairros, vizinhanças etc. Interessava-me acima de tudo a experiência de seus protagonistas em um tempo anterior à consagração como ícones da música brasileira e da cultura popular – o que serviu de critério para a definição de um recorte temporal para a pesquisa: o final do século XIX e o início do seguinte, até a virada da década de 1920-1930, quando se considera que Ismael Silva e seus companheiros teriam criado um novo paradigma do samba carioca, chamado por vezes de “samba moderno”, feito para ser gravado e dançado nas ruas durante os desfiles. Naquele momento, eles eram simplesmente um grupo de indivíduos pobres, em sua maioria negros, sem o glamour que a posteridade lhes atribuiu. Os sons que produziam podiam variar muito nas práticas musicais como nos significados: eram pontos de terreiro aqui, marchas lentas e ritmadas para desfilar no carnaval ali, ou sambas de partido-alto e depois sambas “carnavalescos” que costumavam aparecer nas ruas nos dias da folia, ou então maxixes de salão, polcas-choro, modinhas em serenatas e saraus instrumentais. Um conjunto sonoro rico e variado que, ao final, acabou resultando nisso que se chama samba, seguidamente reinventado e depurado por esses músicos do ou no Rio de Janeiro ao longo daquelas décadas. No final dos anos 1920, a difusão de massas empurrou crescentemente essas velhas diferenças para a padronização. Ao mesmo tempo, deixou para trás a história da sua constituição, substituída por uma versão que separou as modalidades, aplainou o trajeto e consolidou o triunfo simbólico da musicalidade supostamente brasileira e popular. Dito de outro modo, a história dos sambistas no Rio de Janeiro começa muito antes de o gênero musical existir. Por terem ajudado a construir uma forte e duradoura memória sobre si mesmos, por terem criado fama e estimulado biógrafos com os vários depoimentos e entrevistas que deixaram para a posteridade, esses indivíduos podem ser reconhecidos entre os milhares de nomes que aparecem em documentos dos arquivos. Destacados desse conjunto – mas fazendo parte indissociável dele –, os sambistas nos permitem flagrar com mais nitidez um cotidiano que, de fato, nunca foi sopa. Para além do legado que nos deixaram em forma de canções, depoimentos, biografias e testemunhos de terceiros, sua experiência ficou registrada em documentos que revelam ou detalham aspectos bem pouco co nhecidos desses personagens. Os indivíduos que procurei durante os últimos dez anos em velhos papéis são parte de uma história longa e muitas NÃO TÁ SOPA
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vezes despercebida. Quis, por isso, escutá-los menos com ouvidos de sim patizante que de alguém interessado nas suas circunstâncias e no sentido de suas ações. Pensei que o melhor lugar para encontrá-los, tendo em vista a reiterada afirmação sobre a perseguição policial aos frequentadores dessas rodas, reiteradamente confundidos com vadios, fosse justamente a documentação policial e os processos criminais, particularmente os relativos à zona portuária e às ladeiras da Saúde ou da Gamboa; da Cidade Nova edificada em torno da Praça Onze, lugar simbólico do carnaval e da malan dragem; e, evidentemente, do Estácio, bairro carioca cantado em prosa, verso e historiografia. Cabe aqui um breve comentário sobre a documentação e seus usos: esse tipo de processo, em geral de rito extremamente sumário (sobretudo nos casos de vadiagem), costuma ter pouca utilidade fora de uma abordagem serial. Entretanto, no caso dos sambistas, é possível lê-los de outro modo: os réus ou vítimas se tornaram pessoas bastante conhecidas e até cultuadas em certos meios. Sobre eles, ao contrário dos milhares de outros indivíduos classificados como vadios, vagabundos, malandros ou valentes, podemos encontrar biografias ou memórias individuais capazes de dar inteligibili dade a pequenos episódios e conferir um sentido bem maior às informações dos autos. Em todos os casos, o procedimento de confrontar o processo com os dados biográficos disponíveis foi o caminho adotado para descobrir o que se escondia sob o jargão policial e jurídico. Mas essas são fontes que devem ser complementadas com outras referências. Por isso, o leitor en contrará nestas páginas muita crônica e literatura, material jornalístico de época, depoimentos e entrevistas desses sujeitos e sobretudo referências musicais e imagens que, sem resistir ao clichê, muitas vezes dizem mais do que mil palavras. A chance de participar de dois projetos coletivos de pesquisa, generosamente financiados pela Fapesp, dotou essa curiosidade de meios de inves tigação mais efetivos: um banco de dados extenso sobre os registros de ocorrências policiais naquelas regiões da cidade do Rio de Janeiro, alimentado pelo trabalho paciente de vários jovens pesquisadores ligados ao Centro de Pesquisa em História Social da Cultura (Cecult) na Unicamp, foi instrumento fundamental.9 A busca de processos criminais no Arquivo Nacional, guiada por uma extensa lista nominal de sambistas mais e menos conhecidos da posteridade, a seriação de dados relativos à ação da polícia e a identificação das estratégias de sobrevivência de trabalhadores no Rio de Janeiro, que habitavam favelas e moradias coletivas, espremiam-se por aquelas ruas e compartilhavam suas experiências na cidade que crescia vertiginosamente, foram passos importantes na investigação. A isso veio somar-se a facilidade de acesso aos registros sonoros que o Instituto Moreira Salles e outras instituições disponibilizaram eletronicamente para ouvintes NÃO TÁ SOPA
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de todos os quadrantes e graus de curiosidade. Sem isso, a década de pesquisa investida neste livro seria pequena para tanta informação. Pacientemente, ao longo de anos de trabalho, montamos um mapa detalhado da região, publicado na internet desde 200710 – com seus terreiros e casas de tias baianas, cortiços, fábricas, oficinas, botequins, associações profissionais e clubes dançantes ou carnavalescos –, que ajudou a visualizar e decifrar a dinâmica da vida cotidiana nessa região da cidade, onde se diz que o samba nasceu e ganhou corpo. Esse percurso, obviamente, não poderia ter chegado a bom termo sem a contribuição de muitas pessoas queridas, que tiveram a paciência de ler, criticar e sugerir soluções às versões preliminares deste livro. Todos os meus companheiros do Cecult – Sidney Chalhoub, Robert Slenes, Claudio Batalha, Fernando Teixeira, Lucilene Reginaldo e, particularmente, Silvia Lara, a quem devo sempre muito mais do que é possível retribuir – estão presentes no resultado desta pesquisa e me ajudaram a evitar muitos equívocos. Historiadores de outras instituições, com o mesmo carinho e atenção, fizeram comentários sempre pertinentes na fase final do trabalho – Marcelo Balaban, Gabriela Sampaio, Wlamyra Albuquerque, João José Reis e Martha Abreu, em especial, foram meus leitores e amigos –, e essa dupla condição tornou sempre sua crítica mais rigorosa e bem-vinda. Muitas outras pessoas, evidentemente, estiveram presentes nesse percurso – inclu sive alguns orientandos, cujos temas mantêm uma afinidade grande com meu campo de trabalho –, mas seria longo demais, pensando nos leitores, mencionar todos eles. Sei que cada um saberá reconhecer as próprias digitais e identificar sua contribuição nas páginas que se seguem, como sabem de sua importância na minha trajetória nestes últimos dez anos. Minha mestra Dea Fenelon, entretanto, não pôde ver o livro pronto graças à minha própria lentidão em concluí-lo. A ela, pois, dedico este volume, em reconhecimento por tudo o que me ensinou ao longo de sua passagem neste mundo. Com essas fontes, meios de acesso e apoios, era só colocar água no feijão e deixar o caldo engrossar, em fogo brando. O resultado deste trabalho, que espero não seja indigesto, permanece na intersecção de vários debates acadêmicos pesados, longos e enfadonhos. Apesar disso, tentei evitar ao má ximo produzir um livro para especialistas, aprisionado pelos seus eternos embates. A mistura dos ingredientes teve como objetivo um texto que pudesse interessar a qualquer um, que fizesse sentido para os ouvintes do samba e para os dedicados a refletir sobre alguns dos mistérios deste país nada fácil de entender. As páginas que se seguem aspiram à simplicidade, com o mínimo de citações eruditas e discussão bibliográfica para iniciados. Gostaria que, livre das exigências formais dos textos para especialistas, elas fossem boas de ler nos momentos de ócio. Isso não significa, entretanto, abrir mão do rigor. As muitas notas destinam-se principalmente a identifiNÃO TÁ SOPA
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car a origem das informações que utilizei e as ideias alheias das quais lancei mão – como manda a simples ética autoral ou a boa praxe acadêmica. O primeiro capítulo dedica-se a questionar os pontos principais da versão dominante relacionada às “origens” do gênero musical: ele vai em busca das referências sonoras e culturais que a cidade do Rio de Janeiro colocava à disposição dos moradores da chamada “Pequena África”, incluindo velhos batuques, mas também as canções de imigrantes ou as polquinhas e can çonetas de cabaré interpretadas por astros negros e brancos da canção popular no início do século XX. Por essa via, o peso de uma herança univocamente africana pode ser reavaliado. Por outro lado, o capítulo discute também as cores do preconceito contra essas formas populares de musicalidade e a posterior construção do samba por músicos, artistas e escritores dos anos 1920 e 1930 que, apropriando-se daquelas formas em nome de uma expressão brasileira, ignoraram suas várias possibilidades e ajudaram a construir a univocidade. O segundo capítulo, passeando pela região e vislumbrando a diversi dade de seus moradores do ponto de vista racial e étnico, visita principalmente delegacias de polícia em busca das formas de ação dos agentes da lei na área central da cidade, avaliando suas implicações para a vida dos nossos personagens principais. Nos registros da polícia, sambistas e trabalhadores aparecem indiferenciados, e nem sempre se confirma a ideia da perseguição sistemática aos primeiros. Nos meios de sambistas, por outro lado, a presença de imigrantes e seus filhos é algo bastante visível e corriqueiro, problematizando os estereótipos que caracterizaram o samba como uma forma negra, baiana, carioca ou estritamente brasileira. Era diversificado o conjunto de trabalhadores que, nas rodas de samba ou nas agremiações car navalescas, criavam formas duradouras de identidade pouco notadas pelos estudiosos: seus laços, ao que tudo indica, foram mais permanentes que aqueles produzidos nas greves e nos movimentos sociais, abrindo canais para a construção posterior de uma relação paternalista com as autoridades e os políticos que ainda precisa ser mais investigada. Os capítulos finais se detêm sobre os grupos mais reconhecidos e associados à origem do samba na cidade, buscando desvendar um pouco de sua rica experiência. O mais antigo deles, vinculado aos terreiros de candomblé e composto por muitos migrantes baianos ou nortistas em geral (aqueles rotulados como “primitivos”), é objeto do terceiro capítulo. O quarto e último trata da geração do Estácio, introdutora da fórmula triunfante da escola de samba. Ela constitui uma espécie de apoteose da teleologia nacionalista, que a identificou como consagração do gênero, finalmente consolidado como um cartão de visitas da capital federal e uma legítima expressão nacional e popular. Tomando a contramão, os capítulos procuram conflitos e
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diferenças entre esses grupos e, finalmente, os mecanismos de sua reaproximação ao longo dos anos 1930 e 1940. Que o leitor aproveite o passeio pela velha cidade, em companhia de seus boêmios e cantores. E (seria desejar demais?) que aproveite a ocasião para aprender algo com eles.
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Capítulo I UMA QUESTÃO DE BERÇO
B3 No final dos anos 1920, o mais notório compositor popular do Rio de Ja-
neiro já ostentava, com legítimo orgulho, o título de “rei do samba”. Era o primeiro a ter um volumoso conjunto de canções registradas em casas gravadoras. Nascido da união entre um operário e uma lavadeira, escapara dos ofícios da construção civil, como o exercido por seu pai, por ter tido a sorte de aprender piano, habilidade que lhe garantia a sobrevivência tocando regularmente em clubes noturnos e bailes populares. Ainda assim, ganhava pouco. No auge da fama, morava em uma casa humilde na Ilha do Governador. Ainda meninos de colégio, Noel Rosa e seu irmão foram visitá-lo para conhecer o autor daqueles sambas admiráveis e se surpreenderam ao
encontrá-lo compondo em um piano mudo, feito de cartolina, com as teclas brancas e pretas desenhadas à mão, na falta de recursos para ter um instrumento verdadeiro.1 Pobre, embora famoso, o sambista tomava diariamente a barca, para atravessar a baía de Guanabara em direção ao centro da cidade onde era rei. Esse foi, aliás, o último cenário de sua vida curta, ceifada pela tuberculose em uma manhã do inverno de 1930.2 Pouco antes desse desfecho, entretanto, assinado por J. B. da Silva como era seu costume, veio a público “A Favela vai abaixo”, um novo samba de Sinhô, como ele era mais conhecido. Dolente, cadenciado – menos “amaxixado”, por assim dizer, que a maioria de suas composições –, este acabou por se tornar um dos sucessos mais comentados de sua prolífica carreira: Minha cabocla, nossa Favela vai abaixo, Quanta saudade tu terás deste torrão! Da casinha pequenina de madeira Que nos enche de carinho o coração. [...] Vê agora a ingratidão da humanidade E o poder da flor somítica, amarela, Que sem brilho, vive pela cidade, Impondo o desabrigo ao nosso povo da Favela. [...] Minha cabocla, a Favela vai abaixo, Ajunta os troço, vamo embora pra Bangu. Buraco Quente, adeus pra sempre meu Buraco, Eu só te esqueço no buraco do Caju. Isso deve ser despeito dessa gente Porque o samba não se passa para ela, Porque lá o luar é diferente, Não é como o luar que se vê desta Favela. No Estácio, Querosene ou no Salgueiro, Meu mulato, não te espero na janela. Vou morar na Cidade Nova Pra voltar meu coração para o Morro da Favela.
Assumindo a causa dos moradores, que o procuraram em busca de ajuda quando o Plano Agache previu desocupação e derrubada do Morro, Sinhô registrou aí um ponto de vista pouco habitual em suas canções. Para quem conhece a crônica do período e a imagem que ela enuncia sobre o local, tido às vezes como lugar de origem do samba e como reduto da pior NÃO TÁ SOPA
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“canalha”, dos trabalhadores mais despossuídos e da malandragem mais perigosa que se escondia no “Buraco Quente”,3 parece estranha a adesão emotiva e incondicional do compositor: sua personalidade, afinal, foi desenhada por vários de seus contemporâneos como a de um sujeito arrivista e bajulador. Autor de homenagens musicais a autoridades políticas e a in telectuais do período, relativamente assíduo em rodas seletas e alguns salões de frequência abastada que a fama lhe abria, Sinhô parecia ter se lembrado de suas origens ao lamentar o destino da Favela. Chegou mesmo a integrar o grupo que mediou, junto ao governo, a reivindicação dos moradores do local, conhecido também como Morro da Providência, na defesa das paisagens ou da imagem associada aos redutos tradicionais do samba carioca – o que é um indicador do seu reconhecimento público. Se era real sua inclinação para cortejar os intelectuais e autoridades que lhe conferiam algum prestígio social, no episódio ela parecia superada pela solidariedade explícita com a gente cujo sentimento ele traduziu da melhor maneira que sabia, nos compassos sincopados do samba. A solidariedade não era gratuita, é claro, mas não se pode dizer que tivesse uma substância política bem definida. Carioca “da gema”, nascido no ano da Abolição, Sinhô havia crescido justamente nas ruas vizinhas ao morro. Mudou-se para lá antes da virada de 1900, quando tinha cerca de dez anos de idade. Literalmente, tornou-se homem olhando para a Favela a partir da Rua Senador Pompeu, esquina com a velha Rua de São Lourenço, onde morava com a mãe. Sinhô, ademais, não era o único sambista das vizinhanças: entre os meninos com quem conviveu, alguns, como Caninha, se tornariam figuras destacadas do grupo de músicos articulados pela vida nos arredores do porto, nos clubes dançantes, nos bares e cafés da região central que se tornaram pontos de reunião de compositores e dos conhecidos saraus em casas de tias baianas.4 Consagrada em seus versos, a associação do Morro da Favela com o samba (capaz de provocar a “inveja dessa gente”) implicava aceitar uma imagem já bastante difundida quando a década de 1920 se encerrava. Tal gênero musical, visto havia muito como um ritmo bárbaro, herança inde sejável de velhos batuqueiros dos tempos do cativeiro, popularizava-se naquele momento através da difusão das casas gravadoras, do teatro de revistas e de todo o circuito de espetáculos que florescia rapidamente. Contava ainda com o apoio de intelectuais de prestígio debruçados sobre a temática do “popular” que, em busca da originalidade de uma “cultura brasileira”, tratavam de atribuir positividade a traços antes recusados. Mas afirmava-se, sobretudo, pela fama súbita e fulminante de novos compositores que tomavam de assalto os modernos canais de difusão: os “bambas” do bairro do Estácio de Sá e do Morro de São Carlos. Tal prestígio, àquelas alturas, já ameaçava o reinado de Sinhô e seus vizinhos da Cidade Nova nos primeiros NÃO TÁ SOPA
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anos do século, ajudando a construir uma identidade que teve nos marcos geográficos do bairro de sua infância um referencial simbólico importante, apesar das eventuais desavenças internas ao grupo. Assim, quando Sinhô defendeu os moradores da Favela, recusando em seus versos a ideia de mudar-se para outro morro (não casualmente mencionando os rivais São Carlos, no Estácio, ou o também sambístico Sal gueiro), pretendia mais que criticar o malogrado Plano Agache ou manter o coração fincado nas paisagens da Cidade Nova. Além de solidarizar-se com eles, estava demarcando um lugar de origem para o samba, que era o seu próprio “pedaço” na cidade do Rio de Janeiro. Desenhava-se ali uma geografia cultural, cujas fronteiras tinham uma espécie de limite físico esta belecido. O berço do samba, para ele, era delimitado por linhas quase inequívocas: do porto até o Campo de Santana, subindo o Canal do Mangue, que dividia simbolicamente seu território. Do outro lado do Canal, nas ruelas e ladeiras, nos bares, cafés e dancings do Estácio, como depois nas ruas estreitas da Lapa, brotava a nova safra de compositores que disputavam a paternidade do samba. Inveja, ingratidão e o poder do dinheiro – a tal “flor somítica amarela” – podem servir para descrever a “humanidade”, como queria Sinhô. Mas faz sentido imaginar que ele se referisse, mais especificamente, a uma parcela determinada dos seus semelhantes para atingir com a crítica, junto dos que queriam a remoção da Favela, aqueles que faziam sombra ao prestígio dos sambistas da Cidade Nova junto às casas gravadoras e aos ouvidos do público. Em qualquer hipótese, sua defesa da Favela e do samba, visto como propriedade daquela fatia da sua cidade natal, só faz sentido se for situada no interior de um debate bem mais amplo naquele final dos anos 1920. Seus interlocutores eram intelectuais, jornalistas, sambistas, músicos e musi cólogos, literatos e pintores – além de políticos e autoridades. Para muitos deles, longe da preocupação com bairros e vizinhanças, o foco estava em temas candentes como a identidade nacional e a questão racial que a música popular condensava, projetando imagens do país que eram objeto de in tensa disputa.
Não é samba, é batucada A relação entre esses temas complexos da política e a aparente simplici-
dade do samba parecia muito evidente naquele momento. Já havia nos anos 1920 quem associasse o ritmo a uma característica exclusivamente brasi leira, relacionada à mestiçagem e seus resultados, em busca da originalidade que residiria em algum recanto das expressões culturais do “povo”. Por uma série de razões, o samba que se cantava na capital da República parecia NÃO TÁ SOPA
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