Em defesa da Honra
NAS TRINCHEIRAS DA CURA AS DIFERENTES MEDICINAS NO RIO DE JANEIRO IMPERIAL
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Sueann Caulfield
UNIVERSIDADE ESTADUAL
DE
CAMPINAS
Reitor CARLOS HENRIQUE
DE
BRITO CRUZ
Coordenador Geral da Universidade JOSÉ TADEU JORGE
Conselho Editorial Presidente P AULO F RANCHETTI ALCIR PÉCORA – ANTÔNIO CARLOS BANNWART – FABIO MAGALHÃES GERALDO DI GIOVANNI – JOSÉ A. R. GONTIJO – LUIZ DAVIDOVICH LUIZ MARQUES – RICARDO ANIDO
Comissão Editorial da Coleção Várias Histórias SILVIA HUNOLD LARA (coordenadora) – SIDNEY CHALHOUB MARTHA ABREU – JOÃO JOSÉ REIS – ALCIR PÉCORA Conselho Consultivo da Coleção Várias Histórias C LAUDIO H ENRIQUE DE M ORAES B ATALHA – M ARIA C LEMENTINA P EREIRA C UNHA M ARIA H ELENA P. T. M ACHADO – R OBERT W AYNE ANDREW S LENES Consultoria deste volume M ARCUS J OAQUIM M. DE C ARVALHO – S UEANN C AULFIELD
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Em defesa da Honra
GABRIELA DOS REIS SAMPAIO
NAS TRINCHEIRAS DA CURA AS DIFERENTES MEDICINAS NO RIO DE JANEIRO IMPERIAL
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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA UNICAMP Sa47n
Sampaio, Gabriela dos Reis Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro imperial / Gabriela dos Reis Sampaio. – Campinas, SP: Editora da UNICAMP, CECULT, IFCH, 2001. 1. Medicina – Rio de Janeiro (RJ) – Séc. XIX. 2. Cura – Rio de Janeiro (RJ) – Séc. XIX. 3. Curandeiros – Rio de Janeiro (RJ) – Séc. XIX. I. Título.
e-ISBN 85-268-1138-X
CDD 610.98153 615.5098153 291.2098153
Índices para catálogo sistemático: 1. Medicina – Rio de Janeiro (RJ) – Séc. XIX 2. Cura – Rio de Janeiro (RJ) – Séc. XIX 3. Curandeiros – Rio de Janeiro (RJ) – Séc. XIX
610.98153 615.5098153 291.2098153
Copyright © 2001 by Editora da UNICAMP 1 a reimpressão, 2005 Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em sistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.
COLEÇÃO VÁRIAS HISTÓRIAS
A COLEÇÃO VÁRIAS HISTÓRIAS divulga pesquisas recentes sobre a diversidade da formação cultural brasileira. Ancoradas em sólidas pesquisas empíricas e focalizando práticas, tradições e identidades de diferentes grupos sociais, as obras publicadas exploram os temas da cultura a partir da perspectiva da história social. O elenco resulta de trabalhos individuais ou coletivos ligados aos projetos desenvolvidos no Centro de Pesquisa em História Social da Cultura do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP (www.unicamp.br/cecult).
VOLUMES PUBLICADOS 1 – ELCIENE AZEVEDO. Orfeu de carapinha. A trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo. 2 – JOSELI MARIA NUNES MENDONÇA. Entre a mão e os anéis. A Lei dos Sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. 3 – FERNANDO ANTONIO MENCARELLI. Cena aberta. A absolvição de um bilontra e o teatro de revista de Arthur Azevedo.
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4 – WLAMYRA RIBEIRO DE ALBUQUERQUE. Algazarra nas ruas. Comemorações da Independência na Bahia (1889-1923). 5 – SUEANN CAULFIELD. Em defesa da honra. Moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). 6 – J AIME R ODRIGUES. O infame comércio. Propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). 7 – CARLOS EUGÊNIO LÍBANO SOARES. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). 8 – EDUARDO SPILLER PENA. Pajens da casa imperial. Jurisconsultos, escravidão e a Lei de 1871. 9 – JOÃO PAULO COELHO DE SOUZA RODRIGUES. A dança das cadeiras. Literatura e política na Academia Brasileira de Letras (1896-1913). 10 – A LEXANDRE LAZZARI. Coisas para o povo não fazer. Carnaval em Porto Alegre (1870-1915). 11 – MAGDA RICCI. Assombrações de um padre regente. Diogo Antônio Feijó (1784-1843). 12 – GABRIELA DOS REIS SAMPAIO. Nas trincheiras da cura. As diferentes medicinas no Rio de Janeiro imperial. 13 – MARIA CLEMENTINA PEREIRA CUNHA (org.). Carnavais e outras f(r)estas. Ensaios de história social da cultura. 14 – S ILVIA C RISTINA MARTINS
DE
S OUZA. As noites do Ginásio.
Teatro e tensões culturais na Corte (1832-1868). 15 – SIDNEY CHALHOUB, VERA REGINA BELTRÃO MARQUES, GABRIELA DOS REIS SAMPAIO e CARLOS ROBERTO GALVÃO SOBRINHO (orgs.).
Artes e ofícios de curar no Brasil. Capítulos de história social. 16 – LIANE MARIA BERTUCCI. Influenza, a medicina enferma. Ciência e práticas de cura na época da gripe espanhola em São Paulo.
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17 – PAULO PINHEIRO MACHADO. Lideranças do Contestado. A formação e a atuação das chefias caboclas (1912-1916). 18 – CLAUDIO H. M. BATALHA, FERNANDO TEIXEIRA DA SILVA e ALEXANDRE FORTES (orgs.). Culturas de classe. Identidade e diversidade na formação do operariado. 19 – TIAGO DE MELO GOMES. Um espelho no palco. Identidades sociais e massificação da cultura no teatro de revista dos anos 1920. 20 – EDILENE TOLEDO. Travessias revolucionárias. Idéias e militantes sindicalistas em São Paulo e na Itália (1890-1945).
PRÓXIMO
VOLUME
21 – S IDNEY CHALHOUB, MARGARIDA DE SOUZA N EVES e LEONARDO A FFONSO DE MIRANDA PEREIRA (orgs.). História em cousas miúdas. Capítulos de história social da crônica no Brasil.
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ร memรณria de minha avรณ, Antonia Morales dos Reis Sampaio.
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A GRADECIMENTOS Este livro é uma versão revisada de minha dissertação de mestrado, apresentada ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas em março de 1995. O texto é basicamente o mesmo, embora tenha buscado atualizar em notas a bibliografia relativa ao tema. Nos últimos anos, a produção de obras sobre a história da medicina, em uma perspectiva próxima à deste trabalho, cresceu bastante. Diversos autores vêm discutindo o conflituoso processo de constituição da medicina científica como hegemônica no país, buscando resgatar as experiências dos diversos sujeitos envolvidos, bem como as várias outras formas de exercício das artes de curar existentes, as quais disputavam a preferência dos pacientes em pé de igualdade com a medicina dos doutores. Apesar do tempo decorrido, acredito que seja importante trazer a público a pesquisa inédita e as discussões presentes neste trabalho. Gostaria de agradecer as várias pessoas que colaboraram, de diversas maneiras, para a elaboração deste trabalho, que passou por inúmeras fases até chegar nesta forma bonita de livro. Aos professores da minha graduação em ciências sociais que me iniciaram na vida de pesquisadora, mostrando-me a importância e a beleza desta atividade, ainda na graduação: Carlos Rodrigues Brandão e Fernando Lourenço, que tanto me ensinaram com sua paixão pela pesquisa, sabedoria, alegria e amizade. Aos meus queridos Paulinho, Andréa, Clarissa, Pedro e Jorge, amigos de todas as horas, companheiros de casa, de far-
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ras, de trabalho e de tudo o mais, com quem sempre pude contar. À Cristiana, grande parceira durante a pesquisa no Rio, que me acolheu tantas vezes e virou uma grande amiga. Ao Leonardo, meu grande amigo, que acompanhou o trabalho desde suas origens. Suas contribuições estão presentes ao longo de todo o texto, que ele leu, criticou e encorajou inúmeras vezes. Ao seu Bento e à dona Zima, que me receberam com tanto carinho nas primeiras idas ao Rio, e se tornaram meus avós postiços. À dona Lycia, pelo apartamento, a animada companhia e o apoio fundamental. Aos diversos funcionários dos arquivos e bibliotecas em que estive, em especial do Arquivo Nacional, do Arquivo Estadual do Rio de Janeiro, do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, da Academia Nacional de Medicina e da Biblioteca Nacional. Às professoras Silvia Lara, Maria Clementina Pereira Cunha e Lilia Schwarcz, que examinaram o texto em diferentes momentos, com leituras detalhadas, muitas críticas e sugestões, contribuindo de forma decisiva para o amadurecimento e revisão do trabalho. À Clementina, em especial, devo um grande agradecimento pelo auxílio e atenção na reta final. Ao orientador deste trabalho, Sidney Chalhoub, que despertou meu interesse pela História ainda na graduação, em suas aulas instigantes e divertidas. Tive a sorte de trabalhar com o Sidney desde lá, como bolsista de iniciação científica, quando esse livro começou a ser pensado. O resultado agora apresentado deve muito ao seu incentivo, suas críticas e paciência, sempre acompanhados de um imprescindível bom humor. À minha família, que me ajudou nas horas mais difíceis e fez de tudo para que eu tivesse boas condições para trabalhar: meus pais, Mercês e Euclides, e meus irmãos e cunhadas, Euclides, Adriana, Marcelo e Ana, são parte fundamental deste livro. À minha amiga Alessandra, agora também colega de passeios pelo século XIX, não só por ler e comentar o texto, mas principalmente por seu incondicional incentivo. Ao
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Murillo, pois sem a sua ajuda tudo teria sido muito mais difícil. Contei também com bolsa de pesquisa do CNPq, o que me permitiu dedicação em tempo integral a este trabalho. Ao Daniel, por ter participado com tanto carinho de todos os momentos deste percurso e ter sido o grande companheiro que foi.
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S UMÁRIO PREFÁCIO ............................................................................................................................................................ 17 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................................... 21 Notas ................................................................................................................................................................... 30 Capítulo 1 O DOUTOR FURA-URETRAS E OUTRAS HISTÓRIAS DE CURA ......................................... 31 Notas ................................................................................................................................................................... 62 Capítulo 2 O GOVERNO DA MULTIDÃO ................................................................................................................... 67 Notas ............................................................................................................................................................... 106 Capítulo 3 A HIGIENE E AS ARTES DE CURA NO IMPÉRIO ........................................................................ 111 Notas ............................................................................................................................................................... 139 CONCLUSÃO .................................................................................................................................................. 143 Notas ............................................................................................................................................................... 154 FONTES ............................................................................................................................................................. 155 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................................................... 159
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PREFÁCIO O passado é um outro país. Tudo lá parece diferente. Gabriela Sampaio permite-nos ler as folhas diárias publicadas na Corte imperial por cima de seus ombros. Bisbilhoteiros, vemos as desavenças entre o doutor Fura-Uretras e o doutor Monat, em O Paiz dos anos 1880. Alguém havia esquecido uma sonda na bexiga do paciente. Os doutores trocam desavenças pelo jornal durante vários dias, xingam-se, desqualificam os procedimentos científicos um do outro, protagonizam verdadeira “briga de venda”, na avaliação divertidamente preconceituosa da sociedade carnavalesca Clube dos Democráticos, grêmio de “finos rapazes” devotos de Momo. Seguem-se outras notícias, concordes todas em sugerir que os esculápios daquele tempo não hesitavam em discutir as suas diferenças publicamente, para desdouro próprio, perplexidade dos pacientes e deleite dos galhofeiros de costume. Melhor quando o paciente perplexo ficava galhofeiro, divertindo-se com a própria desdita. Na medicina do século XIX, no Brasil e alhures, a sangria era terapia essencial contra males diversos, verdadeira panacéia. Em periódico de “política, literatura, belas artes, teatro e modas” dedicado às “senhoras brasileiras”, publicado na década de 1820, encontramos o relato intitulado “Reflexões à boca da sepultura por um homem, vítima de 130 sanguessugas, e de 40 dias à canja de arroz”. O coitado estava constipado, e o doutor receitara que vivesse algum tempo “entre um boião de canja de arroz, e uma infinidade de boiões de bichas”. Após dias de tratamento, a sangria deixara-lhe sem “pinga de sangue”, sentia-se “perfeitamente como as baratas”. Nas veias, corria-lhe agora “canja de arroz cozido”. O paciente
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achava que o “sistema” seguido por seu médico resultava na abreviação da vida humana, parecia talhado para diminuir “a povoação”. Querelas entre esculápios, ceticismo dos doentes, nada poderia abalar o progresso da medicina. Cada vez mais científica, a medicina oficial começava a debruçar-se sobre estatísticas. Então, Gabriela nos deixa ler essa, em O Paiz de 25 de janeiro de 1888: um doente em estado grave pergunta a seu médico: então, doutor, posso me salvar? “Cura infalível”, responde o doutor, com aquela fleuma de praxe, pois “os autores mais notáveis provam com estatísticas, que nas condições em que você está, de cem escapa um...”. Em seguida, explica ao paciente que já tratara de 99 indivíduos com a mesma doença, e todos haviam morrido... É talvez ingrato o prefaciador que arruma mote ao próprio texto no furto das anedotas recolhidas pela autora da obra prefaciada. Não pecarei de novo. Também não devolvo os chistes furtados, que ficam de aperitivo ao leitor do livro. Nas trincheiras da cura nos oferece um panorama, ao mesmo tempo conciso e abrangente, das transformações nas artes de curar no Brasil do século XIX. Por um lado, mostra que a medicina oficial era uma arena de conflitos diversos, fragmentada pelas disputas entre diferentes sistemas médicos, dividida quanto às terapêuticas mais eficazes para várias doenças, confusa quanto às formas de prevenir e combater a propagação de doenças epidêmicas. Enfim, longe de gozar do prestígio e influência junto ao poder público que aparecem como pressupostos em muito da bibliografia sobre a história da medicina e da saúde pública aqui comentada, a medicina oficial não existia como fenômeno coeso e monolítico capaz de produzir a tal “medicalização da sociedade”. Por outro lado, Gabriela Sampaio insiste na necessidade de incorporar outros sujeitos políticos a essa história, pois que, sem eles, qualquer narrativa sobre as medicinas do Brasil imperial produz silêncios perturbadores: lá estavam os curandeiros, diagnosticando “espinhela caída” e outras mazelas, receitando chás, manipulando ervas, mobilizando crenças diversas; lá estavam os chamados “pacientes”, ainda que ativos, plurais, às vezes contraditórios, tomando decisões próprias sobre 18
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terapias e curadores; lá estavam autoridades públicas várias — policiais, municipais, provinciais, ministeriais —, todas tateantes, incertas, a apoiar e confrontar a ciência dos higienistas. Ao fim e ao cabo, saímos enriquecidos, cientes da complexidade de um processo histórico tantas vezes narrado de forma linear e desatenta a “saberes e poderes” outros que não os de certos médicos. De fato, o passado é um outro país e tudo lá parece diferente. Dia desses, porém, fui ao médico e tive de lembrar do doutor Aquoso, personagem de comédia hilariante de Martins Pena, escrita em meados da década de 1840. O doutor Aquoso era hidropata, em oposição aos alopatas e homeopatas do tempo, ponderava que “Deus não criou tanta água no mundo debalde” e concluía que a “água fria é a grande panacéia universal, “remédio eficaz para curar todas as moléstias”. Pois eu estava com problemas digestivos, acho, e o doutor me disse, com ar professoral, que eu tinha de passar a beber dois litros de água por dia, “seis a oito copos cheios”. Crente na ciência médica, segui a receita. Nem conto a vocês o suplício de permanecer em pé dando aquela aula de duas horas no curso de graduação. Sentia-me um filtro ambulante, bica pingando o dia todo. Dias depois, li no jornal que pesquisas recentes criticam a idéia de que se deva beber tanta água. Sugerem que as pessoas bebam água apenas quando têm sede... “Crente na ciência médica”, desde então bebo água quando tenho sede, não importa o que diga o esculápio do dia. O passado, afinal, não é tão longe daqui. Sidney Chalhoub
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