Machado de Assis O FUTURO
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universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta
Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Esdras Rodrigues Silva – Guita Grin Debert João Luiz de Carvalho Pinto e Silva – Luiz Carlos Dias Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Antunes – Sedi Hirano
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Machado de Assis O FUTURO
organização, introdução e notas
Rodrigo Camargo de Godoi
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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.
ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação As76f
Assis, Machado de, 1839-1908. O Futuro / Machado de Assis; organização, introdução e notas: Rodrigo Camargo de Godoi. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2014. 1. Assis, Machado de, 1839-1908. 2. Revista O Futuro. 3. Crônicas bra sileiras. 4. Imprensa - Brasil - História. I. Godoi, Rodrigo Camargo de. II. Título.
cdd B869.341 079.81
e-isbn 978-85-268-1264-2
Índices para catálogo sistemático: 1. Assis, Machado de, 1839-1908 2. Revista O Futuro 3. Crônicas brasileiras 4. Imprensa - Brasil - História
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Sumário
Nota à edição .......................................................................................................................................... 7 Introdução .................................................................................................................................................. 9 Crônica 1 –
Rio, 15 de Setembro de 1862 ........................................................................... 37
Crônica 2 –
Rio de Janeiro, 30 de Novembro .................................................................... 49
Crônica 3 –
Rio de Janeiro, 15 de Dezembro . . ................................................................... 57
Crônica 4 –
Rio de Janeiro, 1 o de Janeiro de 1863 .......................................................... 63
Crônica 5 –
Rio de Janeiro, 15 de Janeiro de 1863. . ....................................................... 73
Crônica 6 –
Rio, 31 de Janeiro 1863 ........................................................................................ 85
Crônica 7 –
Rio, 15 de Fevereiro de 1863 ............................................................................ 91
Crônica 8 –
Rio de Janeiro, 1 o de Março de 1863.. ....................................................... 103
Crônica 9 –
Rio de Janeiro, 15 de Março de 1863.. ...................................................... 109
Crônica 10 –
Rio de Janeiro, 1 o de Abril de 1863 ........................................................ 119
Crônica 11 –
Rio de Janeiro, 15 de Abril de 1863.. ...................................................... 125
Crônica 12 –
Rio de Janeiro, 1 o de Maio de 1863 ........................................................ 133
Crônica 13 –
Rio de Janeiro, 15 de Maio de 1863 ....................................................... 137
Crônica 14 –
Rio de Janeiro, 1 o de Junho de 1863.. ..................................................... 143
Crônica 15 –
Rio de Janeiro, 15 de Junho de 1863.. .................................................... 149
Crônica 16 –
Rio de Janeiro, 1 o de Julho de 1863 ........................................................ 157
Índices
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Nota à edição
Este volume foi elaborado a partir de pesquisas realizadas no Arquivo Edgard Leuenroth, da Unicamp, no projeto Brasiliana USP e na Fun dação Casa de Rui de Barbosa, no Rio de Janeiro. Com efeito, todas as 16 crônicas da série foram transcritas e anotadas a partir de exemplares originais da revista O Futuro, circunstância que permitiu a revisão das inúmeras falhas presentes na primeira e única edição conhecida da série, parte das Obras completas de Machado de Assis editadas pela Editora Jackson, em 1937. Em relação às notas, procurei seguir os critérios empregados nos demais volumes da coleção, esforçando-me para tornar legíveis aos leito res de hoje crônicas escritas por Machado de Assis há 150 anos. Para tanto, além das enciclopédias e demais obras de referência, recorrer a periódicos e livros contemporâneos às crônicas foi fundamental. A pontuação originalmente empregada por Machado de Assis foi mantida, enquanto a grafia foi atualizada. Erros tipográficos foram corrigidos e apontados nas notas. Finalmente, gostaria de agradecer ao professor Jefferson Cano, orien tador já de alguns anos, pelo inestimável apoio, bem como aos familiares e amigos que, de perto ou de longe, acompanharam o trabalho. Rodrigo Camargo de Godoi
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Introdução
I
A ascensão do gabinete de 30 de maio de 1862, chefiado pelo Marquês de Olinda, provocaria mudanças substanciais na antes combativa imprensa liberal do Rio de Janeiro. Nos meses seguintes, expoentes da causa liberal como o Correio Mercantil e o Diário do Rio de Janeiro passariam a apoiar a política de composição partidária do gabinete, a Liga Progressista, que, por sua vez, não passava de uma bem-sucedida tentativa de reeditar a conciliação entre liberais e conservadores, tão com batida por esses mesmos jornais no início dos anos 1860. Conforme sin tetizava o jornal O Espírito Público, “os liberais recuaram diante da cabeça de Medusa do gabinete Olinda”, e, uma vez petrificados, “o silêncio, que guardaram na tribuna, esta[va] sendo religiosamente observado na imprensa”. Por conseguinte, naquele momento, o Diário e o Correio Mercantil deliberadamente “não falam mais de reformas, nem exibem suas ideias políticas, econômicas e administrativas”1. Até o início de maio de 1862, Machado de Assis havia publicado no Diário do Rio de Janeiro seus “Comentários da semana”, série de crônicas iniciada em outubro do ano anterior. Machado ingressou no Diário em 1860, um ano depois que esse jornal ressurgiu como um dos mais importantes representantes do Partido Liberal na imprensa do Rio de Janeiro. Com efeito, em seus “Comentários da semana” o jovem cro nista, então afinado com as diretrizes políticas da folha, pôde produzir
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textos aguçados nos quais se mostrava nada parcimonioso em relação às críticas aos conservadores. No entanto, uma vez que o Diário do Rio de Janeiro se tornou favorável à política do gabinete de 30 de maio, fazia sentido que os “Comentários da semana” de Machado de Assis não mais encontrassem lugar em suas colunas2. Todavia, não há indícios de que, após o fim da série, Machado de Assis tenha se afastado da redação do Diário. Por certo Machado voltou a fazer o que fazia antes do início dos “Comentários da semana”, produzindo anonimamente, ou quiçá em parceria com outros jornalistas, editoriais, noticiários e anúncios. Por outro lado, o Conservatório Dra mático Brasileiro igualmente manteria o jornalista bastante ocupado. Desde janeiro de 1862, Machado de Assis, então um fervoroso defensor do Conservatório, passou a integrar a comissão encarregada de reformar os estatutos da entidade. Os novos estatutos não saíram do papel, mas em contrapartida consumiram sete longos meses de trabalho de Machado de Assis e dos demais encarregados de elaborá-lo. Além do mais, entre maio e setembro de 1862, Machado emitiria cinco pareceres de censura a peças teatrais submetidas à apreciação do Conservatório, bem como escreveria uma composição dramática original, a peça em um ato O caminho da porta, encenada pela primeira vez no teatro Ateneu na noite de 12 de setembro daquele ano3. Portanto, tendo em vista que as circunstâncias políticas contribuíram para que a pena de cronista de Machado de Assis fosse parar no “fundo da gaveta”, como ele mesmo dirá adiante, suas penas de censor dramático e de comediógrafo trabalharam com afinco. Contudo, em breve esse quadro mudaria, pois, em setembro de 1862, Machado de Assis retomou a escrita de crônicas no primeiro número de O Futuro, revista literária fundada no Rio de Janeiro por Faustino Xavier de Novaes.
II
Machado de Assis publicou ao todo 16 crônicas quinzenais no Futuro. A primeira delas saiu no primeiro número do periódico e, após breve
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interrupção, voltariam do sexto ao vigésimo e último número. As crô nicas encerravam as edições ocupando as últimas páginas da revista e, grosso modo, caracterizavam-se por tratar dos fatos literários e culturais da quinzena. Tal frequência temática podia não ser uma escolha arbitrária do cronista, que nesse sentido procurava alinhar-se ao programa do Futuro, uma revista literária, como veremos melhor adiante. Nos parágrafos iniciais da primeira crônica da série, Machado de Assis narrava de modo engenhoso como havia encontrado sua “pena de cronista” abandonada no fundo de uma gaveta. Em suas palavras, “A coitadinha estava com um ar triste”, tanto que pareceu “vê-la articular por entre os bicos uma tímida exprobração”. Algumas linhas adiante e Machado nos conta que enquanto cortava as tiras de papel para começar o trabalho ruminava algumas ideias, as quais sua pena “parecia escutar com religiosa atenção”. Tais reflexões, além de servirem de programa para a crônica que se iniciava, traduziam-se em conselhos à sua pena de cronista, que, atenta, acabara de livrar-se das teias de aranha. O primeiro desses conselhos era claro: “Não te envolvas em polê micas de nenhum gênero, nem políticas, nem literárias, nem quaisquer outras”. Caso contrário, facilmente passaria de pena “honrada a de sonesta, de modesta a pretensiosa, e em um abrir e fechar de olhos perdes o que tinhas e o que eu te fiz ganhar”. O segundo soava quase como uma advertência: “O pugilato das ideias é muito pior que o das ruas”. Consequentemente, sendo sua pena uma pena “franzina”, o melhor seria que, “quando couber a tua vez de escrever crônica”, recuasse “na luta” e se ativesse estritamente ao “círculo dos teus deveres”. Nada aquém, nada além dele. O terceiro e último conselho pedia à pena que ela se esfor çasse por ser “justiceira sempre”: “comenta os fatos com reserva, louva ou censura, como te ditar a consciência, sem assim cair na exageração dos extremos”4. Concluídas as recomendações, a pena pode enfim começar a deslizar pelas tiras de papel por entre os “desacostumados e emperrados dedos” do cronista. Mas, para além dos recursos estilísticos, Machado de Assis sabia, sobretudo em virtude da experiência adquirida como cronista no Diário do Rio de Janeiro, que, em se tratando do “pugilato das ideias”,
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toda imparcialidade e prudência podiam ser poucas. No entanto, finda a primeira crônica, a pena de cronista de Machado de Assis passaria nova temporada no fundo da gaveta. Nos quatro números seguintes do Futuro, as crônicas seriam assinadas por outros literatos. No segundo número, o editor-chefe da revista, Faustino Xavier de Novaes, aludindo à crônica anterior, ao passo que justificava sua falta de jeito com o gênero, dizia que Machado de Assis teria sido “mais feliz”, pois, ao encontrar-se com “uma pena que não via há muito tempo, estabeleceu com ela um extenso diálogo, cujo termo foi também o de uma página, e venceu assim uma dificuldade que me está dando água pela barba [...]”5. No terceiro número era a vez de A. Moutinho de Souza comentar “as sucessões da quinzena”, “um trabalho”, dizia ele, “que não está incluído nos meus hábitos vulgares”6. So tero de Castro, por sua vez, foi o cronista do quarto número do Futuro, afirmando, no curto preâmbulo de sua crônica, que “O leitor que desejar saber o que vai por esse mundo de Cristo, o que se passou durante a última quinzena, não tem mais do que deixar cair os olhos nesta página e acompanhar-me”7. Finalmente E. Lima foi o último a “historiar a vida da quinzena”8, antes de Machado de Assis voltar às páginas finais do Futuro, já a 30 de novembro. Comparativamente é possível observar que Machado de Assis apresentava um pouco mais de destreza no manejo da crônica, habilidade adquirida nas séries anteriores publicadas na revista O Espelho e no Diário do Rio de Janeiro. Talvez a intenção de Faustino Xavier de Novaes fosse, a princípio, apresentar a cada número do Futuro um cronista diferente, e, na medida em que essa fórmula falhou, o redator-chefe resolveu contratar Machado de Assis em definitivo. Mas, conquanto não publicasse crônicas, Machado de Assis continuou colaborando no Futuro entre meados de setembro e fins de novembro de 1862. Seu poema em versos alexandrinos “Aspiração” saiu no segundo número da revista e o conto fantástico “O país das quimeras”, no quarto. O teatro igualmente pode ter desempenhado um papel importante na interrupção das crônicas do Futuro escritas por Machado de Assis. Nesse sentido, O caminho da porta, comédia em um ato de Machado
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que estreou no Ateneu Dramático na noite de 12 de setembro, três dias antes da publicação da primeira crônica, foi relativamente bem recebida pela imprensa fluminense, circunstância que certamente renovou o fô lego da pena de comediógrafo de Machado de Assis, que, animado, escreveu outra comédia em um ato, O protocolo, que estreou no início de dezembro. Porém, ao contrário da primeira peça, os jornais pratica mente ignoraram as encenações de O protocolo. Diante disso, Machado de Assis venceu seus escrúpulos e comentou a própria peça, elogiando os atores que nela atuaram na crônica de 15 de dezembro. Nos dois meses em que esteve afastado das crônicas do Futuro, Machado de Assis escreveu uma poesia, um conto fantástico, estreou uma peça e emitiu mais um parecer de censura para o Conservatório Dramático, no qual sumariamente reprovou a peça A mulher que o mundo respeita, considerando-a “um episódio imoral, sem princípio nem fim”9. A crônica de 30 de novembro foi, desse modo, um novo começo para Machado de Assis nas páginas finais do Futuro. III
O poeta português, natural do Porto, Faustino Xavier de Novaes já era célebre no Rio de Janeiro quando desembarcou do paquete inglês Tamar no início de junho de 1858. Desde 1856 os versos satíricos de Novaes eram transcritos nos principais jornais e seu livro Poesias, impresso no ano anterior em Portugal, era facilmente encontrado nas livrarias da capital do Império. Contribuíam também para o renome do poeta as suas cenas cômicas, peças curtas como A vida de um ator e O devoto de Baco, encenadas com grande publicidade nos palcos da Corte10. O poeta já trazia na bagagem alguma experiência na edição de periódicos. Entre 1852 e 1855, ainda no Porto, Novaes esteve à frente do Bardo, “Jornal de Poesias Inéditas”, no qual colaboraram nomes importantes como Ca milo Castelo Branco e Alexandre Braga11. Porém, criar uma revista li terária nos moldes do que seria O Futuro provavelmente não estava entre os planos do poeta tão logo este desembarcou no Brasil.
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Em pouco tempo Novaes passaria a frequentar a loja de Paula Brito, bem como o Grêmio Literário Português, do qual foi presidente em 1859. Fundado no Rio de Janeiro em 1856, o Grêmio tinha por finali dade promover “discussões literárias, históricas e científicas” em suas reuniões dominicais na Rua das Violas12. No entanto, foi no comércio que Novaes tentou a princípio ganhar a vida. Por conseguinte, a pu blicação da revista literária O Futuro, iniciada em 1862, esteve intima mente ligada ao fracasso da loja de artigos de escritório fundada por Novaes no Rio de Janeiro em algum momento entre 1859 e 1860. Em maio desse ano, A Marmota de Paula Brito estampava um anúncio da “Loja de Papel” do poeta na Rua Direita, no 86, local onde se podiam encontrar “livros em branco e impressos, objetos de escritório e de desenho, perfumarias, chás e outros gêneros”13. Pouco mais de um ano depois, em junho de 1861, toda a loja foi leiloada, conforme noticiava o Correio Mercantil. Na ocasião, o leiloeiro J. da C. Guimarães acrescen tava ao lote a “propriedade de três dramas originais portugueses do distinto dramaturgo Ernesto Biester ainda não levados à cena em parte alguma” 14. Complicador maior, no entanto, teria sido um incêndio rapidamente controlado pelos vizinhos, que por pouco não consumiu o prédio em que funcionava a loja de Novaes poucos dias depois do anúncio do leilão15. É possível inferir que o projeto da revista O Futuro começou a fermentar na cabeça de Novaes somente após a liquidação da loja, em meados de 1861. Já em fins de março do ano seguinte, Machado de Assis ofereceria informações mais concretas sobre a revista em um dos seus “Comentários da semana”. Nessa crônica, Machado falava do formato e da periodicidade da publicação, “um folheto de trinta páginas, publicado cada quinzena”, informando também que ela seria “mais um laço de união entre a nação brasileira e a nação portuguesa”. Talvez sem saber que meses mais tarde colaboraria no Futuro, o então cronista do Diário do Rio de Janeiro definia o novo empreendimento de Faustino Xavier de Novaes como “uma publicação séria e [que] porventura será duradoura”16.
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Em julho de 1862, a redação da revista já estava instalada na Rua do Ouvidor, no 46, e por meio de um anúncio na imprensa Novaes pedia a todos que tivessem listas de assinantes que as devolvessem com urgência17. Veremos adiante que assinantes e cobradores de assinaturas seriam a ruína da revista. Mas, naquele momento, pouco antes da publicação do primeiro número, o Futuro parecia promissor. A revista seria quinzenal e teria 40 páginas, trazendo em cada edição ao menos uma gravura. As assinaturas pelo período de um ano custavam 15 mil réis para o Rio de Janeiro e 17 mil réis para outras localidades, preço razoável, se comparado, por exemplo, aos 20 mil réis cobrados pela assinatura anual para a Corte da Revista Popular, periódico editado no Rio de Janeiro por Baptiste Louis Garnier18. Novaes não poupou esforços para garantir a qualidade e a ampla circulação de sua revista. Espalhou correspondentes pelas principais províncias do Império, do Maranhão a São Pedro do Rio Grande do Sul, e acordou com colaboradores do Brasil e de Portugal, país em que O Futuro também circularia. Assim, figuraram no Futuro nomes destacados das letras luso-brasileiras, como Camilo Castelo Branco, Ramalho Ortigão, Joaquim Pinto de Campos, Antônio Feliciano de Castilho, entre outros. O programa da revista, intitulado “Ao público brasileiro e português”, foi redigido por Reinaldo Carlos Montoro, personagem então “bem conhecido na república das letras”, conforme o Correio Mercantil19. Nesse artigo, publicado no primeiro número do Futuro, Montoro não se distanciava em demasia do que havia adiantado Machado de Assis ainda no Diário, segundo o qual o periódico seria “mais um laço de união entre a nação portuguesa e a nação brasileira”. No entanto, Montoro acrescentava: Este periódico vai tentar a realização de um pensamento há muito conce bido por todos os que prezam as literaturas dos dous países em que se fala a língua portuguesa. Estabelecer um campo comum, em que livremente, sem preocupações mesquinhas de opinião ou nacionalidade, viessem discursar os escritores de ambas as nações, levar a estas o conhecimento mútuo do movimento literário de cada uma, e dar impulso com o exemplo recíproco, ao progresso literário de países tão férteis em imaginações ricas e pensadores elevados [...]20.
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As informações sobre a revista figuravam na última página de cada edição.
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Capa do sexto número do Futuro.
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Pretendia-se nas páginas da revista um “abraço literário” entre os homens de letras do Brasil e de Portugal, não se excluindo desse esforço um projeto de intervenção e transformação social por intermédio das letras em ambos os países. Por conseguinte, nem Montoro, nem Machado, bem como provavelmente nenhum outro literato oitocentista concebia a arte como desobrigada em relação à sociedade21. Os “soldados da pátria intelectual”, como os definia Montoro, deveriam se unir dando “força à existência social de cada nação”, “promovendo com a emulação nobre, o adiantamento literário, que é a muralha ideal sim, mas inexpugnável, que defende as nações contra estranho do mínio”22. Contudo, mesmo diante de tamanho empenho, havia os que duvidavam da força transformadora das letras e da nobre missão dos literatos. Montoro os identificava primeiramente entre aqueles que percebiam a literatura como assessório dispensável na ordem regida pelo capital: [...] Deixai os apaixonados da bolsa, os poetas do macadam e do ferro fun dido, condenar a literatura e trocar um idealista, um pensador, um coleciona dor histórico pelo primeiro enfileirador de algarismos: as nações crescem, e conquistam o futuro com os primeiros, decaem e ficam presas ao sórdido inte resse com as almas pequenas que tudo vendem e tudo avaliam em dinheiro23.
Abrasando suas sardinhas, Montoro defendia que as letras desem penhavam um papel de extrema relevância naquela sociedade, uma vez que o trabalhador, após crestar “o rosto aos sóis diurnos da atividade mercantil”, ou calejar “as mãos nas lides afanosas da mecânica industrial”, viria, ao fim do dia, nas horas de descanso, “cultivar o espírito, alimentar-se de nobres intenções nos livros dos narradores e poetas, e ensinar seus filhos a serem moralizados e instruídos, para engrandecimento da família e da pátria”24. No entanto, Portugal e Brasil estariam em desvantagem nesse processo, sobretudo em virtude “dos maldizentes das próprias nações” que colocavam em dúvida as capacidades dos “jovens” que pelejavam “contra a estagnação intelectual nas nossas pátrias”. Para aqueles, o que pro-
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duziam os “pobres homens de letras de aquém e além-mar” era imper feito, sem “o cunho da graça francesa, da profundidade alemã, do po sitivismo inglês”. Nesse ponto, Montoro negava o absoluto desprezo às traduções e, consequentemente, aos grandes mestres de outras nacio nalidades. Conforme sua avaliação, o reconhecimento aos contempo râneos estrangeiros de forma alguma significava reconhecer “seus direitos de direção na república democrática e federalista do mundo lite rário”. Nesse congresso das letras, portugueses e brasileiros deveriam defender seus assentos e a partir de então, como iguais, oferecerem modelos às outras nações: [...] Não temos por ventura historiadores, poetas, economistas, narradores, que valem os das nações mais adiantadas? É escusado citar nomes, nem queremos fazer preferências entre amigos e mestres, que prezamos pela comunidade das intenções generosas; são hoje tão numerosos entre nós, que devemos abençoar o sol da liberdade, que em ambas essas terras tão rica messe de talentos veio dar a nações há pouco desfalecidas e presas ao carro mortuário da reação monárquica e religiosa25.
O programa que Montoro traçava para O Futuro não excluía claras intenções sociais e políticas. Poetas e narradores do Brasil e de Portu gal, abençoados pelo “sol da liberdade”, deveriam contribuir indicando novos rumos às duas nações há pouco atadas ao atraso, muito bem representado pela imagem do “carro mortuário da reação monárquica e religiosa”.
IV
“Se me fosse dado escrever uma crônica política [...]”, afirmou Machado de Assis no Futuro de 15 de maio ao comentar a dissolução da câmara dos deputados, “esta seria de todas as minhas crônicas a mais farta e a mais interessante”. O cronista se lamentava por não poder avançar no assunto. Porém, como observado, o perfil literário do Futuro definiria
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as principais diretrizes da série de crônicas assinadas por Machado de Assis nessa revista. Mas, mesmo não tratando diretamente de política partidária, o cronista seria mais um “soldado da pátria intelectual”, conforme a definição de Reinaldo Carlos Montoro, a lutar pelo progresso literário, cultural e social do Brasil e de Portugal. Exemplifica bem o engajamento de Machado de Assis nessa série a maneira como ele duramente criticou o clero brasileiro, empenhando-se em favor de um catolicismo liberal e ilustrado. Isso se deu em três momentos. O primeiro deles quando, no início de março de 1863, o cronista destacou entre os acontecimentos da quinzena o cancelamento da procissão de cinzas, ofício religioso que abria a quaresma. Assim, após retomar o argumento e assumir a autoria de um texto anônimo publicado no ano anterior no Jornal do Povo, Machado de Assis defendia que: Para acreditar possível uma reforma completa que faça do culto uma cousa séria, tirando-lhe o aparato e as empoeiradas usanças, era preciso admitir no clero certa elevação de vistas que infelizmente não lhe coube na partilha da humanidade. Sem exageração, o nosso clero é tacanho e mesquinho; nada enxerga para fora das paredes da sacristia, metade por ignorância, metade por sistema. Notem bem que eu não digo fanatismo ou excesso de fé26.
Tais “empoeiradas usanças” persistiam graças à inépcia de um clero obsoleto, definido como “tacanho e mesquinho”, ideia que seria novamente desenvolvida por ocasião da morte do bispo do Rio de Janeiro, em junho de 1863. Machado então defendeu que o governo imperial, responsável pela nomeação dos bispos em virtude do padroado, deveria ficar atento ao escolher o substituto de D. Manuel de Monte. Portanto, sem pejo algum ante as instituições eclesiásticas, Machado recomen dava um prelado “enérgico e ilustrado”, forte o suficiente para “esmerilhar nesse corpo mais fanático que religioso, mais intolerante que instruído, os elementos puros ou aproveitáveis e com eles empreender a obra árdua de uma regeneração”27.
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