O nascimento do cemitério: - Lugares sagrados e terra dos mortos no Ocidente medieval

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universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta

Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Elinton Adami Chaim– Esdras Rodrigues Silva Guita Grin Debert – Julio Cesar Hadler Neto Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Antunes – Sedi Hirano Coleção Estudos Medievais Comissão Editorial Néri de Barros Almeida (coordenadora) Aires Augusto do Nascimento – Bryan Ward-Perkins Dominique Barthélemy – Jerusa Pires Ferreira Maria Eurydice de Barros Ribeiro – Ricardo Antunes

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Michel Lauwers

o nascimento do cemitério lugares sagrados e terra dos mortos no ocidente medieval tradução Robson Murilo Grando Della Torre

revisão técnica Néri de Barros Almeida

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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.

ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação L953n

Lauwers, Michel O nascimento do cemitério: Lugares sagrados e terra dos mortos no Ocidente medieval / Michel Lauwers; tradução: Robson Murilo Grando Della Torre; revisão técnica: Néri de Barros Almeida. – Cam­pinas, sp: Editora da Unicamp, 2015. 1. Cemitérios – História. 2. Liturgia. 3. Morte – Aspectos religiosos. 4. Ritos e cerimônias fúnebres antigas. 5. Idade Média – História. I. Della Torre, Robson Murilo Grando, 1986-. II. Almeida, Néri de Barros. III. Título.

cdd 393.09 264.36 236.1 393.93 909.07 isbn 978-85-268-1226-0 Índices para catálogo sistemático:

1. Cemitérios – História 393.09 2. Liturgia 264.36 3. Morte – Aspectos religiosos 236.1 4. Ritos e cerimônias fúnebres antigas 393.93 Idade Média – História 909.07 5.

Título original: Naissance du cimetière: Lieux sacrés et terre des morts dans l’Occident médiéval Copyright © by Département Aubier, Éditions Flammarion, 2005

Copyright © by Michel Lauwers Copyright © 2015 by Editora da Unicamp Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, dos detentores dos direitos. Printed in Brazil. Foi feito o depósito legal. Direitos reservados à Editora da Unicamp Rua Caio Graco prado, 50 – Campus Unicamp cep 13083-892 – Campinas – sp – Brasil Tel./Fax: (19) 3521-7718/7728 www.editora.unicamp.br – vendas@editora.unicamp.br

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A Jean-Christophe, por retomar o fio de uma conversa interrompida em Città delle Pieve em uma noite do mês de agosto de 2000

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agradecimentos

Na longínqua origem deste livro, houve primeiramente a solicitação amistosa de Dominique Iogna-Prat, pedindo-me, em 1996, para organizar, no contexto das mesas-redondas que ele animava, então, sobre a “espacialização do sagrado”, uma sessão de trabalho a propósito do es­paço dos mortos e do cemitério. Após uma dezena de anos, nossas pesquisas muitas vezes se cruzaram, permitindo trocas produtivas, para meu grande proveito. Os trabalhos de Didier Méhu, de Éric Rebillard, de Manuel de Souza e de Cécile Treffort, paralelos aos meus, igualmente acompanharam minha reflexão. Reconheço também uma dívida particular com relação aos trabalhos pioneiros e estimulantes de Alain Guerreau, aos quais meu livro deve muito. Eu não esqueço meu mestre Jacques Le Goff, grande historiador do espaço e do tempo. Em 1999-2000, por ocasião de um seminário comum na École des hautes études em sciences sociales, vários dos dossiês explorados neste livro foram longamente discutidos com Charles de Miramon, que me beneficiou muito com seu saber em domínios que me eram desconhecidos e me fez conhecer certo número de textos importantes.

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Em um momento ou em outro, eu também me aproveitei das competências de Joseph Avril, Benoît Cursente, Gilbert Dahan, Philippe Depreux, Daniel Pichot, Laurent Ripart, Barbara H. Rosenwein, Laurent Schneider, Benoît-Michel Tock e Élisabeth Zadora-Rio. A releitura e os conselhos de Luc Ferrier e em seguida de Alain Guerreau e de Didier Méhu me permitiram melhorar em vários pontos esse estudo, do qual Rosa Maria Dessì seguiu de perto a elaboração com seu habitual olhar crítico. Agradeço a Jean-Claude Schmitt, que acolheu O nascimento do cemitério na Collection Historique, assim como a Hélène Fiamma e Maxime Catroux, que realizaram sua publicação com muita atenção.

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sumário

Prefácio à edição brasileira

o nascimento da cristandade .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 A terra sagrada dos cemitérios ........................................................................................... 19 Ecclesia: Comunidade espiritual e células espaciais .................................................. 21 Uma antropologia do (con)sagrado .................................................................................. 25

primeira parte LUGARES SAGRADOS, SANTOS E RELIGIOSOS 1

um espaço polarizado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35 Os ensinamentos da arqueologia: Uma lenta aproximação entre as igrejas, as sepulturas e o habitat ........................................................................................ 37 A intervenção dos bispos carolíngios: Bens da Igreja, lugares de culto e “circuitos” funerários. . ............................................................................................................. 42 Autoridade eclesiástica, pobres e “lugares veneráveis”.. ............................................ 50 Locus, uma representação do espaço ............................................................................... 56 Do lugar à fábrica territorial .............................................................................................. 59

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lugares consagrados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75 De pessoas santas aos lugares sagrados ........................................................................... 75 Rito de consagração e contestações ................................................................................... 81 Protótipos e modelos: A pedra de Jacó e os lugares de culto bíblicos .................. 86 Moradas próprias de Deus e espelho da ordem social. . ............................................. 91 Fundação/consagração ........................................................................................................... 97 Consagração e conquista cristã .......................................................................................... 100 Uma Igreja feita de “lugares” e de “muros” ................................................................... 102

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as categorias do sagrado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115 Sagrado – religioso + santo: As categorias do direito romano.. ............................. 116 Os pastores, o espaço sagrado e o direito.. ...................................................................... 120 Sacro – santo: Uma reestruturação das categorias antigas ..................................... 121 A proteção do espaço sagrado e santo: Normas e práticas sociais (séculos IX - XI ). . .......................................................................................................................... 123 Res nullius: Os reformadores e o sagrado (século X -início do século XII ) . . ...... 127 Dos bens eclesiásticos aos lugares funerários (séculos XII - XIII ) ............................ 132

segunda parte TERRA CIMITERIATA 4

terra dos mortos, terra sagrada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145 Cimiterium: A palavra e a coisa ....................................................................................... 146 No “seio da Igreja-mãe” ......................................................................................................... 147 Terra cimiteriata. . ..................................................................................................................... 150 A terra dos ancestrais ............................................................................................................. 154 Espaço funerário vs. espaço sagrado ................................................................................ 160 Circuitus: Uma lógica de sacralização do espaço ....................................................... 165 O cemitério como espaço protegido: Um modelo jurídico romano, reinterpretado nas regiões meridionais ........................................................................... 168 Recintos protegidos e cemitérios habitados .................................................................... 172 O cemitério como espaço consagrado: Um modelo litúrgico novo, nascido nos mundos anglo-saxônico e lotaríngio . . ...................................................... 174 A difusão do rito de consagração dos cemitérios ........................................................ 178 O castelo, o diabo e o cemitério . . ........................................................................................ 180 Deambulação, consagração e bênção dos cemitérios ................................................. 183

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o espaço funerário dos cristãos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201 Corpos consagrados, um lugar sagrado e público ....................................................... 202 Tumbas no seio do espaço dos vivos e alguns ajustes necessários ........................ 204

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Exclusões, cemitérios judeus e lugares “intermediários” .......................................... 207 Átrios perigosos e consagrações miraculosas . . ............................................................... 216 6

a forma do sagrado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 235 Modificar o espaço consagrado ........................................................................................... 236 A atração da santidade e a forma do sagrado ............................................................. 242 Violação, poluição, contágio.. ............................................................................................... 244 Extensão do sagrado e aderência à terra.. ...................................................................... 248

terceira parte POSSE E USOS DA TERRA CEMITERIAL 7

a sepultura de abraão e o campo de efron: modelo escriturário e prática social.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 265 Abraão, fundador do túmulo dos Patriarcas (Gn 23 ) ................................................ 266 A exegese cristã de Gn 23 : Do bom uso da sepultura ................................................ 269 Abraão, inventor do cemitério.. ........................................................................................... 271 Os túmulos e a terra de Hebron, lugar de peregrinação disputado ..................... 275 A compra da gruta de Macpela, prefiguração das doações funerárias.. ............. 279 O pecado de Efron e a venda da terra sagrada . . .......................................................... 283 Igrejas patrimoniais, lugares funerários e reforma eclesiástica. . ........................... 286 Restituições e partilhas de cemitérios.. ............................................................................. 291 Algumas resistências às cobranças eclesiásticas . . ......................................................... 296 Comércio, terra cemiterial e terra profana .................................................................... 298 Espaço “misto”, direito de patronato, transferência e comutação. . ....................... 301

epílogo: o cemitério como espaço sagrado.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 323 Um lugar reservado aos mortos a partir de agora . . .................................................... 323 A recusa do profano e das práticas costumeiras .......................................................... 326

conclusão: a igreja, a terra e os mortos.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 335 Um processo de inecclesiamento ....................................................................................... 335 Uma construção do espaço bem particular. . .................................................................. 340

posfácio à edição brasileira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 343 bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 353 índice onomástico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 391

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Prefácio à edição brasileira

o nascimento da cristandade Néri de Barros Almeida

A obra de Michel Lauwers resulta da aproximação entre dois campos de estudo que a história toma emprestados da antropologia: as atitudes diante da morte e dos mortos e as formas de interação cultural das populações com o espaço. O título do trabalho presta homenagem justamente à mais extensa e notória investida nesse sentido realizada até então por um medievalista, o livro O nascimento do purgatório, de Jacques Le Goff, publicado originalmente na França em 1981. O discípulo de Le Goff, no entanto, extrai consequências novas dessa aproximação. Jacques Le Goff foi um grande entusiasta do estudo das representações. O resultado de seu trabalho deve-se em boa medida à sua opção preferencial pelos relatos de visões dos mortos e de espaços no Além. Menos comprometido com as representações, Lauwers as incorpora a um sistema mais complexo de interação entre elementos materiais e imateriais da vida social. Assim, elege para a abordagem específica dos dois campos mencionados um dado material da experiência: o espaço de inumação. Seu estudo aprofunda nossos conhecimentos sobre as implicações sociais e políticas de práticas e representações culturais em uma sociedade em que os mundos terreno e ultraterreno encontram-se profundamente 13

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associados. Isso é possível graças à dimensão simultaneamente material, espiritual e cotidiana do espaço cemiterial. Essa opção traz a vantagem suplementar de permitir a comprovação dos resultados de pesquisa por meio da confrontação entre testemunhos escritos e arqueológicos. A obra demonstra que os cemitérios – locais de inumação tipicamente cristãos – atuaram de maneira decisiva como produtores de sentidos e formas sociais. Lauwers encontra nos documentos mais do que formas de percepção das relações sociais. Ele nos mostra sua dimensão propositiva bem como seus efeitos sobre a sociedade. Ao evidenciar dessa forma a racionalidade dos testemunhos, as análises introduzem o leitor em um debate acadêmico situado no cerne do próprio conceito de Idade Média. O ponto de partida da investigação é o postulado assentido por muitos especialistas de que a comunidade de fé cristã, que começa a tomar corpo no século IV – por meio de uma série de fatores que promoveram sua unidade, sobretudo doutrinária –, se transforma entre os séculos IX e XI em uma comunidade política, a cristandade. Seu surgimento estaria associado a elementos diversos. Um deles seria o desenvolvimento de uma profunda inventividade no campo litúrgico que multiplica e adensa as relações entre os fiéis e o sagrado, processo este realizado com uma mediação cada vez mais sólida do clero. Michel Lauwers se ocupa do estudo de um dos segmentos dessa revolução litúrgica: o rito de consagração da terra de inumação por meio do qual se realiza a transição fundamental entre a necrópole antiga e o cemitério cristão. O nascimento do cemitério a que alude o título da obra remete, primeiramente, ao rito que estabelece o caráter eclesial, sagrado, e, portanto, exclusivamente cristão, dos locais de sepultamento. A partir de então, judeus, muçulmanos e cristãos não puderam mais partilhar o mesmo ambiente de inumação. O cemitério expressava uma comunidade politicamente hegemônica que se estendia da terra ao céu, incluindo os vivos e os mortos que haviam passado pelo rito do batismo. O estudo nos mostra que as mudanças não se limitaram a essa separação portadora de sentido de grande repercussão histórica. Ela se desdobra em formas de discriminação, organização e hierarquização dentro da sociedade cristã. O rito de consagração deu lugar a uma reorganização espacial das comunidades cristãs. As igrejas e os locais de inumação que as circundavam se tornam polos territoriais organizadores das relações 14

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sociais. A hierarquia social se reorganiza de forma concêntrica a partir desses pontos consagrados, ou seja, de caráter espiritual. A cristandade se manifesta então como uma sociedade política organizada por meio de um conjunto de polos consagrados. O livro de Michel Lauwers altera e enriquece de forma significativa nossa percepção da sociedade medieval. O estudo apoia duas mudanças de ponto de vista afirmadas pela historiografia recente. Em primeiro lugar, que as relações sociais no período não são estáticas e que as razões da dominação não estão depositadas apenas na força das armas e no temor religioso. A obra propõe um quadro diferente à imaginação comum congelada em torno da ideia de uma sociedade cuja organização encontra-se completamente orientada pelos laços feudo-vassálicos, em que a aristo­ cracia, que inclui os homens de poder do clero, se apropria da riqueza produzida por aqueles que trabalham. Sem romper com a ideia de sociedade feudal, Lauwers desvenda aspectos cruciais de sua constituição ideo­ lógica e funcionamento cotidiano. Revela dados sutis das redes de poder, autoridade e legitimidade. Identifica, em zonas estratégicas do convívio como os espaços de culto e inumação, fontes materiais e abstratas de sentido que produzem a reorganização e a reprodução das formas sociais. A segunda mudança de ponto de vista se refere ao lugar conferido à Igreja na compreensão dessa sociedade feudal. O autor deixa claros conflitos de interesse entre a aristocracia laica e a aristocracia eclesiástica que repercutem sobre as formas sociais. De maneira geral, as diversas teses sobre o que teria sido o feudalismo sempre deram à Igreja um papel subordinado à aristocracia guerreira. A tese de Lauwers documenta na gestação da sociedade feudal uma situação inversa, em que a Igreja altera sua posição em relação à aristocracia impondo sua hegemonia em setores cruciais das representações e das práticas sociais. Defensores da ideia de que o feudalismo se impõe no final do século X em face do vazio político resultante do enfraquecimento progressivo dos grandes senhores que haviam exercido a autoridade pública desde o ocaso carolíngio no século anterior costumam ver a Igreja nesse período submersa em dificuldades, obrigada a tecer estratégias de aproximação com agressores que devassam seus bens e põem em risco sua autoridade. A valorização social da cavalaria, por meio da domesticação da violência dessa franja inferior indócil da aristocracia guerreira arredia à autoridade dos 15

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grandes senhores, seria uma das estratégias por meio das quais a Igreja procurava se adaptar a uma situação social nova. Sem negar o vazio de poder público entre os séculos IX e XI, Lauwers atribui à Igreja nesse momento um papel de liderança e não de passividade. Os ritos de consagração dos espaços eclesiais que então surgem ou se firmam não seriam resposta a uma situação nova, mas uma política agressiva cujo fim seria produzir mudanças nas formas tradicionais de relação entre a Igreja e a aristocracia. Dessa forma é a Igreja que avança sobre o vazio deixado procurando alterar, por meio da consagração, o estatuto dos bens sobre os quais estava fundamentada sua estabilidade material. Resultantes de doação à Igreja, esses bens sempre haviam se man­ tido sob a tutela das famílias doadoras, não se transformando na­quilo que entendemos como uma propriedade plena. Igrejas e senhores locais mantinham direitos partilhados sobre esses bens. A doação não implicava desvinculação das famílias em relação ao bem doado. Pelo contrário, um dos alvos da doação era exatamente a vinculação visível dessas famílias poderosas com a Igreja e o divino por meio desses bens. O avanço das prá­ ticas de consagração realizava a alteração do estatuto dessas doações – edifícios, terras, objetos –, impedindo que continuassem tratadas como bens próprios dos doadores. Dessa forma a Igreja usurpava da aristocracia direitos e domí­nios tradicionalmente situados sob seu poder e autoridade. Doravante, os di­ rei­tos sobre esses bens, tornados divinos pela consagração, caberiam ape­ nas ao clero, também consagrado. A consagração do espaço cemiterial par­ticipa, portanto, de uma lógica geral de demarcação de domínios e au­to­ridade exclusivos do clero. Observados do ponto de vista do sistema de comunicação para o qual estavam destinados através da pastoral religiosa, é possível presumir as significativas implicações sociais das ações eclesiásticas no campo litúrgico. Por meio da exposição de mecanismos objetivos que criam simultaneamente práticas religiosas e sociais, vemos a Igreja si­tuada em um lugar em que fica evidente sua importância social autô­noma. Os ritos de consagração – de cemitérios e igrejas – têm pelo menos três grandes consequências dignas de nota. Permitem a delimitação clara dos bens e da autoridade da Igreja. Dessa forma, os eclesiásticos dão um passo decisivo para retirá-los da tutela leiga sob a qual tradicionalmente 16

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estavam colocados. O processo de disputa pela posse desses bens dá lu­gar a um debate implicado, a longo prazo, na retomada do direito romano – de fato, nos séculos XII e XIII podemos dizer que a uma civilização da liturgia, sucede uma civilização da norma em que, por obra dos homens da Igreja, o direito romano terá papel capital ao lado do direito canônico. E, por fim, permitem à Igreja interferir na hierarquia social ao associar espaço terreno e espaço ultraterreno numa lógica em que as chaves da interação estavam guardadas sob sua autoridade. A administração do acesso ao centro dos espaços consagrados, reservados à manifestação ritual da presença divina e à sepultura dos santos, também lhe permitia confirmar e distribuir prestígio social. Ter uma sepultura junto ao altar significava prestígio não apenas para o morto, mas para todos os membros vivos de sua família. Assim, a posição relativa entre Igreja e aristocracia muda. A Igreja se tornaria produtora da sociedade de maneira que a aristocracia laica tende a se tornar dependente dela. Se, conforme nos acostumamos a pensar, o poder na Idade Média reside no controle da terra, a separação dos espaços consagrados sob a autoridade exclusiva do clero pede que o feudalismo, tal como tradicionalmente imaginado, seja reconsiderado. A espacialização e a espiritua­ lização dos laços sociais, ao revelarem uma outra orientação da sociedade, demandam uma nova compreensão das relações políticas na origem da sociedade feudal. Pedem, sobretudo, uma atenção às formas de conciliação e à dinâmica cotidiana de uma sociedade em que a Igreja tem um desempenho determinante e a aristocracia um poder que, embora alterado, não perde significado. A paulatina pulverização dos laços locais fundamentados nas relações de parentesco e o enraizamento espacial promovido pelas armas da representação social produzidas pela Igreja pedem, igualmente, que a relação entre todos os estratos da sociedade seja reconsiderada.

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introdução

A terra sagrada dos cemitérios A coabitação dos vivos e dos mortos constitui um dos traços maiores das formas de organização social que se impuseram na Europa ocidental ao longo da Idade Média. Essa coabitação se inscreve na paisagem: entre os séculos VII e XII, nos campos e nas cidades, as populações se estabeleceram, com efeito, nas proximidades imediatas dos restos mortais de seus defuntos. Tal presença de restos humanos de gerações precedentes no coração do espaço habitado, bem como seu agrupamento em lugares públicos, lugares de inumação, a partir de então, obrigatórios para todos, representava uma grande novidade em relação às tradições funerárias que tinham caracterizado as sociedades antigas. Desde cedo qualificadas de “cemitérios”, essas zonas de sepultura coletiva estritamente ligadas às aldeias e às cidades tinham a aparência de terrenos mais ou menos vastos, nos quais se encontravam enterrados, de maneira geralmente indiferenciada, os corpos dos defuntos. A terra dos cemitérios era frequentemente revirada, trabalhada, e, de maneira regular, ossos eram extraídos dela a fim de dar lugar a novos corpos, des19

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tinados a se misturarem no seio do espaço funerário. Para dar conta dessa realidade, em meados do século XI, um clérigo gramático e lexicógrafo da Itália do norte, conhecido pelo nome de Pápias, encontrou uma nova etimologia para cimiterium, a palavra latina que tinha servido, nos sécu­ los precedentes, para designar diferentes tipos de lugares funerários (sepulcros, mausoléus familiares, tumbas santas), mas que tendiam, então, a se remeter exclusivamente a áreas de inumação coletiva: Pápias substituiu a ideia de repouso na morte (em grego, koimētērion é o “dormitório”), pela imagem de “cinzas” dos mortos, derivando o vocábulo cimiterium, segundo ele, de cinis-terium – cinis significando a “cinza”1. A representação de um cemitério no qual os cadáveres se consumiam para retornar ao estado de cinzas se difundiu rapidamente e deu origem, no século XII, à noção de “terra cemiterial” (terra cimiteriata), que fazia referência, de fato, à realidade física dos campos funerários da Idade Média, mas também à realidade social, em um mundo onde o poder dos dominantes, dos se­ nhores, clérigos ou leigos, jazia sobre o controle da terra e dos homens que nela habitavam. A terra do cemitério misturada com os restos dos mortos se tornou um espaço social fortemente envolvente: fornos e oficinas, ceramistas ou açougueiros com suas mesinhas, armazéns, celeiros e habitações se encontravam instalados nas proximidades das sepulturas, enquanto a população se reunia, com frequência, na área do cemitério por ocasião de assembleias de justiça, para concluir um acordo, para registrar atas por escrito ou para validá-las. Mercados e feiras, espetáculos, jogos e divertimentos faziam do campo funerário um lugar de sociabilidade e de encontros para os vivos. Sem dúvida, a fisionomia dos cemitérios medievais, que constituíam espaços livres e protegidos no coração do terreno edificado, em parte justifica esses usos, mas não é suficiente para explicar a forte atração que exerceram os cemitérios sobre os homens: se os vivos acorriam ao próprio local onde enterravam seus mortos, é porque eles queriam sua presença. O cemitério era, com efeito, o lugar dos pais e dos ancestrais – os patres, maiores e antecessores que os historiadores encontram em seus documentos; não ainda os “ancestrais” no sentido genealógico e individualizado, mas um mundo de mortos concebido de modo coletivo e anônimo, indissociável da dimensão costumeira da sociedade medieval. Os ancestrais sepultados na terra do cemitério representavam a autoridade e encarnavam a norma; 20

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