Prosa técnica

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universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta

Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Esdras Rodrigues Silva – Guita Grin Debert João Luiz de Carvalho Pinto e Silva – Luiz Carlos Dias Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Antunes – Sedi Hirano Coleção Bibliotheca Latina Comissão Editorial Coordenadores Matheus Trevizam e Paulo Sérgio de Vasconcellos Isabella Tardin Cardoso – Luiz Francisco Dias Marcos Martinho dos Santos – Pedro Paulo Abreu Funari

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Matheus Trevizam

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Catão, Varrão, Vitrúvio e Columela

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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.

ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação T729p

Trevizam, Matheus. Prosa técnica: Catão, Varrão, Vitrúvio e Columela / Matheus Trevizam. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014. 1. Catão, 234-149 a.C. 2. Varrão, 116-27 a.C. 3. Vitrúvio. 4. Columella, Lucius Junius Moderatus. 5. Literatura técnica. 6. Literatura latina. 7. Agricultura – Roma. 8. Arquitetura – Roma. I. Título.

cdd 870.01 338.1 720 e-isbn 978-85-268-1254-3 Índices para catálogo sistemático:

1. Catão, 234-149 a.C. 2. Varrão, 116-27 a.C. 3. Vitrúvio 4. Columella, Lucius Junius Moderatus 5. Literatura técnica 6. Literatura latina 7. Agricultura – Roma 8. Arquitetura – Roma

870.01 870.01 870.01 870.01 870.01 870.01 338.1 720

Copyright © by Matheus Trevizam Copyright © 2014 by Editora da Unicamp Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, dos detentores dos direitos. Printed in Brazil. Foi feito o depósito legal. Direitos reservados à Editora da Unicamp Rua Caio Graco prado, 50 – Campus Unicamp cep 13083-892 – Campinas – sp – Brasil Tel./Fax: (19) 3521-7718/7728 www.editora.unicamp.br – vendas@editora.unicamp.br


Dedicatรณria

Para Francesco

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Agradecimentos

A Paulo Sérgio de Vasconcellos, pela leitura cuidadosa e pelas preciosas sugestões; a Gilson dos Santos, por gentilmente me disponibilizar tantos materiais sobre Columela; a Teodoro Rennó Assunção, pela ajuda com a língua francesa.

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Per auxilia scientiae scriptaque, ut spero, perueniam ad commendationem. (Marcus Vitruuius Pollio – De Architectura II – prooemium) Com o auxílio do saber e meus escritos, espero, chegarei à tua recomendação. (Marco Vitrúvio Polião – De Architectura II – proêmio)

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Sumário

capítulo i – Inícios: Especificidades da antiga literatura técnica romana em prosa.................................................................................................................................. 15 i.1 Questões introdutórias......................................................................................................... 15 i.2 Vários gêneros, um mesmo fim básico comum ............................................... 30 i.3 Da sucessão das obras atinentes à prosa técnica em Roma e da

especial importância dos escritos agrários para a constituição dessa “tipologia” de textos.................................................................................................. 39

capítulo ii – O De agri cultura catoniano e a abertura da tradição

dos escritos agrários em Roma antiga................................................................. 73

ii.1 Da importância da figura de Catão Censor e da obra aqui sob

análise para o conhecimento da cultura romana antiga.......................... 73

ii.2 Aspectos da composição temática do De agri cultura e sua inserção

no momento histórico de escrita da obra.............................................................. 79

ii.3 Aspectos compositivos do De agri cultura de Catão:

Linguagem/estilo e construção geral do texto .................................................. 83

capítulo iii – O De re rustica de Varrão de Reate e a participação do

gênero dialógico nos escritos técnicos dos antigos romanos.......... 99

iii.1 Apresentação de alguns traços constitutivos gerais dos diálogos

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da terra varronianos.............................................................................................................. 99

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iii.2 Alguns aspectos da elaboração literária do De re rustica

varroniano..................................................................................................................................... 108

iii.3 Alguns traços linguísticos da composição do De re rustica ................. 115 capítulo iv – O De Architectura vitruviano: Inícios da prosa

técnica romana da Era Imperial................................................................................. 127

iv.1 Questões introdutórias ....................................................................................................... 127 iv.2 Aspectos da composição do texto e da linguagem do

De Architectura........................................................................................................................ 129

iv.3 Descrição de alguns dos principais conteúdos dos sucessivos

livros vitruvianos...................................................................................................................... 135

iv.4 Desdobramentos do pensamento vitruviano em tempos

posteriores....................................................................................................................................... 144

capítulo v – O De re rustica de Júnio Moderato Columela, ou o

apogeu da prosa agrária romana .............................................................................. 155

v.1 Columela e os temas “outros” suscitados pelo contato com sua

obra agronômica....................................................................................................................... 155

v.2 Apresentação esquemática dos sucessivos livros do De re rustica

de Columela.................................................................................................................................. 161

v.3 Aspectos sucintos da elaboração construtiva do De re rustica

columeliano................................................................................................................................... 170

vi – Conclusão....................................................................................................................................... 187 vii – Breve bibliografia comentada..................................................................................... 191 viii – Pequena antologia traduzida da prosa técnica romana................... 197 viii.1.1 Marcus Porcius Cato – De agri cultura I ................................................... 198 viii.1.2 Marcus Porcius Cato – De agri cultura II .................................................. 200 viii.2.1 Marcus Terentius Varro – De re rustica I, IX........................................... 204 viii.2.2 Marcus Terentius Varro – De re rustica I, XII.......................................... 208

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viii.3.1 Marcus Vitruuius Pollio – De Architectura II (prooemium)................................................................................................................................. 210 viii.3.2 Marcus Vitruuius Pollio – De Architectura IV, I, 1-10 .................... 214 viii.3.3 Marcus Vitruuius Pollio – De Architectura VI, VI.............................. 220 viii.4.1 Lucius Iunius Moderatus Columella – De re rustica II,

VI e VII................................................................................................................................................. 226

viii.4.2 Lucius Iunius Moderatus Columella – De re rustica VI

(prooemium)................................................................................................................................. 230

ix – Bibliografia geral .................................................................................................................... 237

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capítulo i

Inícios: Especificidades da antiga literatura técnica romana em prosa

I.1 – Questões introdutórias A aproximação da assim chamada “literatura técnica antiga”, tal como inscrita nos tratados de importantes praticantes da arte da palavra em Grécia e Roma, demanda, sem sombra de dúvida, alguns esforços de adaptação apreciativa por parte do público contemporâneo. Assim, herdeiros que somos do Romantismo em vários pontos de nosso entendimento valorativo, convencionou-se com alguma frequência, a partir de fins do século XVIII, compreender os âmbitos das artes e das ciências, ou saberes especializados, como domínios mutuamente excludentes do fazer espiritual humano, como se não mais houvesse chances de intercomunicação entre formas de pensar (ou escrever) esteticamente comprometidas com a expressão ou com o imediato rigor expositivo de quaisquer matérias1. Restringindo nossos olhares à contraparte literária dessa forma de categorizar os dois grandes modos de produção intelectual “possíveis”, notamos a clara proposição, por alguns pensadores do século XX, de maneiras classificatórias dos usos da linguagem conforme se destinem eles (ou não) a fins expressivos prevalentes2. Em um conhecido ensaio3, então, o estudioso

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russo Roman Jakobson dividiu os usos de linguagem usuais em seis grandes “funções”, conforme se evidencie mais cada um dos grandes componentes que julga sempre envolvidos em todo processo comunicativo. Tais componentes, a título de lembrança sumária, são o “emissor”, que corresponde ao ponto de partida do processo de comunicação, o “receptor”, seu ponto de chegada, a “men­ sagem”, ou modo de realizar concretamente os dizeres, o “contato”, verdadeiro elo de união prática entre os dois primeiros elementos citados, o “contexto”, ou referente do discurso, e o “código”, que equivale ao próprio sistema linguístico a cada vez posto em uso para a interação verbal entre os envolvidos. Ora, quando o emissor se põe em evidência em um dado processo comunicativo, para Jakobson intentaria, antes de mais nada, “chamar a atenção” do ouvinte para suas próprias reações diante do que diz4, exemplificando a função “emotiva” da linguagem, cujo recurso linguístico mais “puro” corresponde às interjeições. Quando, por outro lado, desloca o foco intera­ cional para o receptor, ocorrendo que o configure como “alvo” dos dizeres, o emissor tipicamente se vale de empregos gra­ maticais como os do vocativo e do imperativo e dá vazão à função “conativa”5. Por sua vez, enfatizar a “mensagem” e o “contato” resulta na respectiva prevalência das funções “poética” e “fática”, sobre­ tudo se caracterizando a primeira pela mobilização de maneiras de dizer mais expressivas que o comum e a segunda pela abertura e manutenção de um “canal” comunicativo entre emissor e receptor. Na primeira função, assim, havendo a “projeção do eixo paradigmático (das escolhas) sobre o sintagmático (da combinação)”, constroem-se dizeres valorizadores das palavras em si, mais do que do mero conteúdo6. Na outra, como nos –16–

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vemos diante de fórmulas socialmente destinadas a encetar a interação verbal entre os falantes (“com licença”, “olá”, “bom-dia”), ou mesmo a dar sinais de atenção ao interlocutor (em uma conversa telefônica, “claro”, “sei”, “hum”...), favorece-se a própria criação de um “espaço” para que aconteça o processo comunicativo. As duas últimas funções, enfim, correspondentes ao foco sobre o contexto e o código, denominam-se “referencial” e “metalinguística”, como se a primeira delas tornasse a linguagem em simples veículo para a “transmissão” de informações e a outra operasse pelo comentário sobre aspectos do próprio sistema linguístico (“entender significa assimilar uma ideia”). Ora, embora o estudioso reconheça que muito dificilmente se encontra nas efetivas realizações linguísticas a “presença” de uma única tipologia, pois “a diversidade reside não no monopólio de alguma dessas diversas funções, mas numa diferente ordem hierárquica de funções”, dependendo a estrutura verbal de uma mensagem basicamente daquela predominante7, parece-nos viável divisar no contraste entre os tipos “poético” e “referencial” uma entrada teórica para contrapor discursos de fato comprometidos com a face expressiva da estruturação linguística ou não. Uma conhecida passagem do livro IV das Geórgicas de Virgílio, assim, servir-nos-á de exemplificação prática para a “função poética”, segundo as ideias de Jakobson: At mater sonitum thalamo sub fluminis alti sensit. Eam circum Milesia uellera Nymphae carpebant hyali saturo fucata colore, Drymoque Xanthoque Ligeaque Phyllodoceque, caesariem effusae nitidam per candida colla,

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[Nesaee Spioque Thaliaque Cymodoceque] Cydippeque et flaua Lycorias, altera uirgo, altera tum primos Lucinae experta labores, Clioque et Beroe soror, Oceanitides ambae, ambae auro, pictis incinctae pellibus ambae, atque Ephyre atque Opis et Asia Deiopeia, et tandem positis uelox Arethusa sagittis. Inter quas curam Clymene narrabat inanem Vulcani Martisque dolos et dulcia furta, aque Chao densos diuom numerabat amores. Carmine quo captae dum fusis mollia pensa deuoluunt, iterum maternas impulit auris luctus Aristaei, uitreisque sedilibus omnes obstupuere; [...]8

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Nesse excerto, lê-se a descrição dos domínios subaquáticos de Cirene, ninfa das águas e mãe de Aristeu, mítica figura de apicultor retratada no último livro das Geórgicas virgilianas também como filho de Apolo. A menção ao barulho trazido àquelas sossegadas paragens vincula-se a um ponto peculiar da trajetória de vida desse herói, pois, tendo perdido todas as suas abelhas em razão de um erro do passado9, então viera solicitar em lágrimas o socorro materno com vistas à segura reparação do dano. Destacam-se, nas maneiras a que recorreu o poeta para compor tais versos, de todo evocativos de um ambiente fantástico – uma corte inteira de ninfas sob as agitadas águas do rio Peneu! –, certos recursos construtivos que julgamos atinentes à dimensão literária, ou, nos termos vistos de Jakobson, poé­tica. Introduzimos o assunto, portanto, pelas sugestivas indicações cromáticas de que Virgílio se serviu para uma mais viva “pintura” da cena: além dos tons “aquosos” do verde-escu-

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ro (hyali saturo... colore – v. 335) e dos “vítreos assentos” (uitreisque sedilibus – v. 350)10, importa ainda mencionar neste ponto a “brilhante cabeleira” (caesariem effusae nitidam – v. 337) de ninfas como Drimo, Xanto, Ligeia e Filódoce, com a inerente sugestão de luminosidade, bem como o “ouro” e as “peles pintadas” (de negro?) das vestes das Oceânides. Também se faz presente nesses versos a criação de um efeito que não consideraríamos, estritamente, indispensável para o esboço físico do espaço da corte em pauta: com isso nos referimos à relativa copiosidade dos nomes de ninfas empregados por Virgílio, de modo a surgirem acima 17 palavras do tipo, ao longo das meras 19 linhas do trecho; se ainda juntarmos os ­nomes de (Juno) Lucina (v. 340), dos deuses Marte e Vulcano (v. 346), da primitiva divindade associável a “Caos” (v. 347) e do próprio Aristeu (v. 350), veremos aumentar a soma para 22 nomes, embora falte a esses últimos a mesma aura de “es­ tranheza” que paira sobre o vocabulário onomástico utilizado para cobrir a peculiar variedade das ninfas no paço subaquático de Cirene11. Ora, uma resposta para esse modo de proceder do poeta poder-se-ia encontrar em suas conhecidas vinculações a modos “alexandrinos” de compor. Isso se reforça, em nível macroscópico, pela inserção do relato da lenda de Aristeu em contexto narrativo entrelaçado com a de Orfeu, o que por vezes integra um artefato compositivo complexo, chamado epýllion pelos críticos modernos12. Correspondem a alguns gostos dos poetas de língua grega dessa vinculação, bem como de seus “herdeiros” em Roma antiga, elaborar em minúcias as obras ou partes delas, de modo a produzirem textos não tão extensos ou grandiloquentes, mas de extrema erudição e requinte construtivo13. Assim, fizeram-se e puseram-se em circulação os textos, à ma–19–

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neira alexandrina, em verdadeiros ambientes de connaisseurs, por exemplo capazes de associar detalhes miúdos como os nomes de tantas divindades aquáticas menores às obras de outros poetas do passado14 ou, talvez, até a aventuras míticas de muito restrita difusão15. No estrito plano do emprego das palavras, em maior conformidade com as colocações de Jakobson sobre a estrutura da linguagem “poética”, merecem especial atenção os versos de número 336, 33816 e 343, que se identificam, nos três casos, com integrais e distintas listagens de nomes. Ora, poeticamente, além do “acúmulo” de vocábulos dessa natureza, contribui para intensificar o efeito de copiosidade dos nomes próprios – e consequente erudição! – a própria repetição de algumas das partículas aditivas disponíveis na língua latina [-que enclítico, vv. 336 e 338/ atque (et), v. 343], pois, assim, como que podemos receber também por via auditiva uma impressão de “fartura”. A isso se acrescente, no quesito similar da concatenação das partes, que o intervalo dos versos 334 a 344 se faz em contínua coordenação, ou justaposição, de segmentos complementares, vindo a operar essa mesma fluidez sintática para fins da amplitude descritiva daquele ambiente. Embora outros elementos mais da poeticidade dessa pas­ sagem se pudessem referir, apenas mencionamos aqui alguns delicados recursos de “individualização”, ou parcial “fechamento” sobre si, de dois pares seguidos de versos: Cydippeque et flaua Lycorias, altera uirgo, altera tum primos Lucinae experta labores, Clioque et Beroe soror, Oceanitides ambae, ambae auro, pictis incinctae pellibus ambae,

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