Sobre a estrutura lógica do conceito de capital em Karl Marx

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universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta

Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Esdras Rodrigues Silva – Guita Grin Debert João Luiz de Carvalho Pinto e Silva – Luiz Carlos Dias Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Luiz Coltro Antunes – Sedi Hirano

coleção marx 21 Comissão Editorial Armando Boito Junior (coordenador) Alfredo Saad Filho – João Carlos Kfouri Quartim de Moraes Marco Vanzulli – Sedi Hirano Conselho Consultivo Alvaro Bianchi – Andréia Galvão – Anita Handfas Isabel Loureiro – Luciano Cavini Martorano Luiz Eduardo Motta – Reinaldo Carcanholo – Ruy Braga

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helmut reichelt

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tradução

Nélio Schneider

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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.

ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação R271s

Helmut Reichelt. Sobre a estrutura lógica do conceito de capital em Karl Marx / Helmut Reichelt; tradução Nélio Schneider. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013. 1. Karl Marx, 1818-1883. 2. Valor (Economia). 3. Capital (Economia). 4. Economia marxista. I. Nélio Schneider, 1966-. II. Título.

cdd 330.1594 335.412 isbn 978-85-268-1035-8 332.041 Índices para catálogo sistemático:

1. Karl Marx, 1818-1883 2. Valor (Economia) 3. Capital (Economia) 4. Economia marxista

330.1594 335.412 330.1594 332.041

Título original: Zur logischen Struktur des Kapitalbegriffs bei Karl Marx Copyright © by Helmut Reichelt Copyright © 2013 by Editora da Unicamp Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, dos detentores dos direitos. Printed in Brazil. Foi feito o depósito legal.

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No método de processamento, prestou-me um grande serviço o fato de eu by mere accident […] ter folheado novamente a Lógica de Hegel. Karl Marx

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sumário

observações da edição original .......................................................................................................

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observações do tradutor . .....................................................................................................................

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prefácio . .................................................................................................................................................................

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introdução . .........................................................................................................................................................

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1 – a concepção materialista de história na obra inicial de marx................

29

2 – sociedade e conhecimento em o capital. ..........................................................................

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A. Aspectos gerais do conceito de capital.................................................................... 83 B. Crítica da economia política clássica. ..................................................................... 104 1. Os fisiocratas.......................................................................................................................... 105 2. Adam Smith. ........................................................................................................................... 108 3. David Ricardo. ...................................................................................................................... 119 3 – a exposição categorial................................................................................................................... 133

1. Sobre a relação entre método lógico e método histórico....................... 133 2. O conceito marxiano de valor.................................................................................... 143 A. As categorias da circulação simples.......................................................................... 156 1. Duplicação ideal.................................................................................................................. 158

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2. Duplicação real..................................................................................................................... 165 3. A primeira determinação do dinheiro.................................................................. 175 4. Excurso sobre o conceito do tempo de trabalho socialmente

necessário....................................................................................................................................... 5. A segunda determinação do dinheiro................................................................... 6. Excurso sobre a teoria da crise. ................................................................................ 7. A segunda determinação do dinheiro (continuação)................................. 8. A terceira determinação do dinheiro. ................................................................... B. A passagem para o capital. ............................................................................................... 1. Sobre a relação entre circulação simples e capital..................................... 2. A mais abstrata das formas do capital. ................................................................

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179 187 189 197 207 231 231 246

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observações da edição original

Os escritos de Marx e Engels são citados no corpo do texto entre parênteses com base em MEW: Marx e Engels, Werke. Berlin, 1956 e ss., 43 vols. MEGA: Marx e Engels, Gesamtausgabe. Berlin, 1975 e ss. U: Marx, “Urtext zur Kritik der politischen Ökonomie”, em: Grundrisse der

Kritik der politischen Ökonomie. Berlin, 1974. Exemplo: (23/169) = MEW, vol. 23, p. 169. (II.5/43) = MEGA, Segunda Seção, vol. 5, p. 43.

observações do tradutor

1. Para a tradução das citações literais das obras de Marx, aproveitaram-se as traduções mais recentes disponíveis atualmente no Brasil. A referência bibliográfica completa de cada obra citada encontra-se no rodapé da primeira ocorrência da obra, que, dali por diante, é citada sempre abreviadamente mediante título, volume (se for o caso) e página. 2. A abreviatura “modif.” ao final de uma referência significa que a tradução original foi modificada para adequar-se à terminologia usada na obra de Reichelt ou à terminologia científica mais atual. É o caso, por exemplo, da expressão “mais-valia”, que vem sendo substituída com razão pelo termo “mais-valor” (cf. Mario Duayer. Apresentação, em K. Marx, Grundrisse. São Paulo, Boitempo, 2011, p. 23).

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Durante a preparação desta investigação sobre a estrutura lógica do conceito de capital em Marx, apresentada na forma de dissertação como primeira tentativa de reconstrução do método dialético de Marx em O capital, não me dei conta de uma indicação central: logo depois da publicação do escrito Para a crítica da economia política, no ano de 1859, Marx escreveu a Engels, dizendo que a continuação será “muito mais popular e o método bem mais escondido do que na Parte I” (III.3/49)1. Ou seja, Marx não facilitou as coisas para os seus leitores: por um lado, ele apresenta uma obra com um nível elevado de exigência científica; por outro lado, ele “esconde” justamente o método pelo qual se define a sua cientificidade. Gerd Göhler já constatou que a dialética sofreu “redução” em O capital2, e de fato é possível provar que, já na segunda edição de O capital, Marx simplesmente riscou passagens metodológicas essenciais para a compreensão do seu procedimento3. Razões, amplitude e significado dessa “redução” ainda não foram esclarecidos. Porém, se quisermos investigá-la e reconstruir o método, evidentemente é preciso ater-se aos escritos em que ele se apresenta, por assim dizer, “não escondido”, a saber, nos trabalhos diretamente preparatórios para O capital, ou seja, sobretudo no assim chamado Rascunho [Rohentwurf *] de O capital e no Texto original [Urtext] do escrito Para a crítica da economia política. * Rascunho (Rohentwurf) é, por assim dizer, o apelido que os Esboços (Grundrisse) receberam em sua primeira edição de 1939, que saiu com o seguinte título: Grundrisse der Kritik des

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Marx orientou-se na lógica de Hegel para redigir esse volumoso rascunho, o que se deduz das indicações explícitas do próprio autor; porém, conhecimentos a respeito de Hegel por si sós não oferecem garantia nenhuma de uma compreensão adequada desse texto. Muitos hegelianos tentaram isso com esse texto sem êxito. Mesmo que se parta do pressuposto de que, nos dois escritos mencionados, o método “ainda não foi escondido”, é evidente que há outros obstáculos que dificultam o acesso. Ao lado da observação metodológica marxiana citada anteriormente, eu, a exemplo de todos os demais autores que se ocuparam com as mudanças de plano em O capital, não me dei conta de uma diferença fundamental entre o Rascunho e os escritos publicados, cujo significado, todavia, só se descortina diante do pano de fundo dos questionamentos categoriais vinculados com a reconstrução do método dialético. No Rascunho, Marx diferencia entre o “o intercâmbio que põe valor de troca” e o “trabalho que põe valor de troca”. O primeiro também é caracterizado por ele como “cir­ culação simples”, uma expressão que quase não aparece mais em Para a crítica da economia política e sumiu completamente em O capital; o conceito do trabalho que põe valor de troca pode ser lido como determinação mais antiga do caráter duplo do trabalho, e continua a ser utilizado com alguma frequência em Para a crítica da economia política. O trabalho que põe valor de troca é ca­racterizado também como “trabalho abstrato que se tornou verdadeiro na prá­tica” (cf. 42/39 e 42/219 [ed. bras. Grundrisse, pp. 58 e 231]*); o antônimo não é caracterizado expressamente como “verdade teórica” do trabalho abs­trato, mas, na concepção da exposição, o trabalho abstrato é tratado como “traba­lho em si”, como categoria, que “é ainda mais relevante para a nossa reflexão subjetiva” (42/219 [ed. bras. Grundrisse, p. 231]). Na bibliografia sobre o assunto, comenta-se que, no Rascunho, Marx busca estruturar a sua exposição de modo diferente do que faz em O capital: ele enfatiza muitas vezes que o valor é a primeira das categorias econômicas a ser submetida à crítica ou que, “para desenvolver o conceito de capital, é necessário partir não do trabalho, mas do valor e, de fato, do valor de troca já desenvolvido no movimento da circulação” (42/183 [ed. bras. Grundrisse, p. 200]). Contudo, a observação autocrítica que se encontra no contexto do desenvolvi-

politischen Ökonomie (Rohentwurf). Nesta tradução, mantém-se a distinção terminológica adotada pelo original, embora se trate do mesmo texto. (N. do T.) * Ref. completa da edição brasileira: K. Marx, Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. Trad. Mario Duayer e Nélio Schneider. São Paulo, Boitempo, 2011. (N. do T.)

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mento do dinheiro, a saber, que “será necessário mais tarde [...] corrigir o modo idealista da apresentação que produz a aparência de que se trata simplesmente das determinações conceituais e da dialética desses conceitos” ( 42/85-6 [ed. bras. Grundrisse, p. 100]), é tida como confirmação de que o Rascunho ainda representaria um desenvolvimento idealista, meramente conceitual imanente, em relação a Para a crítica da economia política e O capital, em que Marx teria partido da mercadoria e, desse modo, se moveria em terreno materialista firme4. É possível até mesmo delimitar temporalmente o momento em que ocorreu essa mudança na concepção da exposição, mas em lugar nenhum se encontram indicações explícitas para as razões dessa mudança5. De que trata esse conceito da circulação simples, para o qual, a seu tempo, já chamei a atenção?6 Esse conceito tem duplo sentido: por um lado, o intercâm­ bio que põe valor de troca é entendido numa dimensão histórica, ainda que não no sentido de uma descrição histórica trivial (como a que foi canonizada na ortodoxia marxista como relação entre lógico e histórico, em conexão com certas formulações infelizes de Engels); essa dimensão pode ser apreendida, muito antes, como a interpenetração recíproca de uma lógica do desenvol­ vimento e uma dinâmica do desenvolvimento, que, no entanto, não foi elaborada explicitamente por Marx. Por outro lado, com o conceito da circulação simples Marx vincula a concepção de uma “superfície” do processo de re­ produção capitalista geral, que manifestamente está orientada na lógica hegeliana. Há formulações em que se chega a ter a impressão de que Marx assumiu textos em toda a sua literalidade, como, por exemplo, na passagem para o capital, cuja formulação segue o modelo da passagem da lógica do ser para a lógica da essência7. Deixar de perceber o sentido duplo dessa concepção (o que até agora sempre aconteceu) leva a manter trancado o acesso ao método que Marx “aplica” no Rascunho, uma formulação no mínimo perturbadora de Marx — pois a expressão “aplicar” dá a entender que se trata, nesse caso, de um método já pronto que estaria à disposição. Mas seria possível “aplicar” a outro objeto um método do qual insistentemente se diz que não pode ser explicitado independentemente do seu conteúdo? E ainda por cima sem pagar por isso o preço do idealismo — pois, em Hegel, esse conteúdo é o “automovimento da coisa” e este é, em última instância, o conceito que explicita a si mesmo? Isso dá margem à crítica de que a exposição marxiana do “conceito geral do capital” seria meramente uma construção teórica que sugere uma necessidade interior e que procura desenvolver o capital como uma explicação conceitual lógico-ima­nente, tanto mais porque Marx jamais esclareceu nem mesmo rudimentarmente a 13

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razão objetiva que o levou a traduzir a realidade do capitalismo na forma de um “conceito geral do capital”8. Em carta a Lassalle, Marx caracterizou o seu trabalho teórico como “crítica das categorias econômicas, ou, if you like [se preferir], o sistema da economia burguesa apresentado criticamente” (29/550). Como demonstrou Hans-Georg Backhaus9 detalhadamente com base nos textos de Marx, o conceito da crítica e a expressão “sistema da economia burguesa” não se referem só à crítica de outras teorias, como foi entendido em termos exclusivos pelo marxismo ortodoxo, mas também à realidade desse sistema econômico. Mas o que é a realidade desse sistema econômico? Ele é constituído pelas formas sob as quais os seres humanos produzem e trocam, as formas que se ajustam para formar um sistema sacudido por contradições e crises, uma engrenagem autono­ mizada, que ele caracteriza já nos Manuscritos de Paris como mundo distorcido, cuja eliminação prática deveria ser o objetivo do movimento comunista: “O existente que o comunismo cria é precisamente a base real para tornar impossível tudo o que existe independentemente dos indivíduos, na medida em que o existente nada mais é do que um produto do intercâmbio anterior dos próprios indivíduos” (3/70 [ed. bras. Ideologia alemã, p. 67]*). Portanto, a crí­ tica marxiana da economia política não consiste em uma nova variante da assim chamada teoria do valor do trabalho (isso também), mas — é isso que diferencia a crítica econômica marxiana de toda teoria econômica — é o desenvolvimento teórico dessa distorção e autonomização reais. O conceito de crítica nesse sentido é idêntico ao conceito da exposição como desenvolvimento genético gradativo dessa autonomização a partir de um “princípio real”; Adorno o chama de princípio da troca, a partir do qual deveria ser desenvolvida a sociedade, que ele caracteriza com palavras quase idênticas às utilizadas pelo jovem Marx: “A racionalidade objetiva da sociedade, a da troca, distancia-se, por sua dinâmica, cada vez mais do modelo da razão lógica. É por isso que a sociedade, o autonomizado, por sua vez, já não pode mais ser compreendida; unicamente a lei da autonomização [pode ser compreendida]” (grifos meus, H. R.)10. Uma caracterização certeira da dialética marxiana, a saber, a reconstrução da lei do processo social de irracionalização. Tentemos acercar-nos do problema no plano da ciência econômica. Em muitas de suas publicações11, Hans-Georg Backhaus apontou reiteradamente

* Ref. completa da edição brasileira: K. Marx e F. Engels. A ideologia alemã. Trad. R. Enderle, N. Schneider e L. Martorano. São Paulo, Boitempo, 2007. (N. do T.)

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para o fato de que a ciência econômica é caracterizada por uma contradição, da qual, porém, bem poucos economistas têm consciência: em todas as suas ponderações macroeconômicas, a ciência econômica pressupõe um valor absoluto, objetivo, abstrato, que ela própria, todavia, não consegue fundamentar. Na bibliografia mais antiga, esse valor é caracterizado como quantidade de valor, volume de valor, o produto social enquanto massa de valor. Esse valor abstrato, objetivo, adicionável, que, além disso, cresce, constituindo, portanto, um valor objetivo intertemporal, é a condição da possibilidade da ciência econômica, seu objeto “propriamente dito”, mas só poucos economistas viram isso. Schumpeter constata o seguinte: “A rigor” os conceitos da macroeconomia, portanto as suas grandezas totais, são “sem sentido”12. Por essa razão, ele também zomba dos economistas — mencionando, entre outros, também Keynes — por “operarem com essas grandezas sem apresentar sintomas de consciência crítica”13. Esse valor foi caracterizado pelo economista Sismondi (portanto, na primeira metade do século XIX) como “ideia comercial”, em alusão bem consciente à teoria platônica das ideias. Ele compara esse valor com uma “qualidade não substancial, metafísica, de posse do mesmo cultivateur [cultivador, lavrador]”. E esse valor se situa além das duas teorias do valor, ou seja, da teoria subjetiva do valor ou teoria da utilidade do valor e da assim chamada teoria objetiva ou teoria do valor-trabalho, que foi elaborada por Adam Smith e especialmente por David Ricardo. Essas duas teorias do valor, até onde consigo ver, nem são mais discutidas hoje, e tampouco o terceiro conceito de valor. Trata-se, por assim dizer, de uma ciência econômica “sem valor”. (De modo similar, Adorno falou da sociologia como ciência sem sociedade.) Schumpeter anota, em sua história dos dogmas, que Marx desenvolve, em O capital, uma teoria que confere centralidade precisamente a essa problemática, sem, no entanto, mencionar isso explicitamente: a saber, a fundamentação do valor objetivo e do valor absoluto, isto é, valores adicionáveis que podem ser compu­ tados como produto social. Porém, nessa passagem de sua história dos dogmas, Schumpeter não diz como pretende lidar com essa descoberta. Surpreendentemente essa descoberta foi feita também por um filósofo, a saber, por Klaus Hartmann, em seu volumoso livro sobre Marx. Ele também constata isto: Se o valor de troca fosse o único conceito econômico de valor, ele não passaria de um conceito relacional, uma categoria intermediadora para atos de troca. Nesse caso, não seria possível somar tais valores de troca, nem calcular um valor total. Porém, isso deve ser possível, na medida em que Marx pretende explicar a acumulação de valor e

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dinheiro e capital, e, numa passagem posterior, passa a fazer um cálculo macroeconômico total14.

Portanto, Hartmann vê o problema com bastante precisão. A solução só pode consistir num valor absoluto; mas isso seria — e esta é a crítica enviada por ele ao endereço de Marx — uma “escamoteação”. Werner Hoffman, economista falecido há poucos anos, passa a falar de modo coerente do valor absoluto quando ele discute as teorias do crescimento. Esse valor absoluto, objetivo e abstrato, que a teoria macroeconômica vai somando até chegar a uma quantidade total de valor do produto social, constitui o objeto central da crítica marxiana, que explicita esse valor desde os seus primórdios até chegar à forma em que “toda a riqueza da sociedade” aparece como uma quantidade de mercadorias, portanto, uma quantidade de valor. Repetidamente encontram-se no Rascunho expressões como estas: o valor “não desenvolvido”, o “ulterior desenvolvimento do valor de troca” (42/164 [ed. bras. Grundrisse, pp. 180-1]), o “valor de troca em seu movimento” (42/163 [ed. bras. Grundrisse, p. 178]), o “valor de troca autonomizado” (42/146 [ed. bras. Grundrisse, p. 163]; II.2/77 e 78), o “valor de troca consumado” (42/160 [ed. bras. Grundrisse, p. 177]). Fala-se expressamente de um movimento do valor, mas esse modo de falar pode mesmo apontar para algo significativo ou trata-se de pura especulação? O que poderia significar movimento nesse contexto? Pensa-se num universal idêntico a si mesmo que assume diferentes formas, que se conserva em meio a essa mudança de forma e, além disso, pode crescer. Mas o que é esse universal? Naturalmente é o valor! Porém, o que é o valor? Tempo de trabalho objetivado é o que consta no Rascunho. Isso acarreta problemas consideráveis que serão abordados mais adiante. No Rascunho, isso simplesmente é afirmado e faz-se a tentativa de compreender o valor autonomizado na circulação — a saber, a forma-dinheiro — como ponto de partida de todo o movimento de autonomização, de derivar o “conceito do capital” do valor presente na circulação. Em vários passos (que são reconstituídos neste livro), esse processo de autonomização é acompanhado, tanto no Rascunho como no Texto original [Urtext], até o primeiro conceito abstrato do capital: “A autonomização aparece não só na forma em que se confronta, como valor de troca abstrato autônomo — dinheiro —, com a circulação, mas também em que esta constitui simultaneamente o processo de sua autonomização; ele [o capital, H. R.] provém dela como autonomizado” (II.2/82). Ora, não é possível repetir aqui toda a argumentação; o que interessa é unicamente a prova de que a intenção marxiana no Rascunho e também no 16

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Texto original [Urtext] estava direcionada para desenvolver o capital com toda a sua contraditoriedade e regularidade a partir da efetuação dessa autonomização do valor. O desenvolvimento exato do conceito de capital é necessário, porque é o conceito fundamental da Economia moderna, da mesma maneira que o próprio capital, cuja contraimagem abstrata é seu conceito, é o fundamento da sociedade burguesa. Da concepção rigorosa do pressuposto fundamental da relação têm de resultar todas as contradições da produção burguesa, assim como o limite em que a relação impulsiona para além de si mesma. (42/250 [ed. bras. Grundrisse, p. 261])

Mediante alusão a uma observação autocrítica sobre os limites da “forma dialética de exposição” (II.2/91), com frequência se constatou que a execução dessa concepção dialética suscita problemas metodológicos. Nessa constatação, Marx se refere à existência da classe trabalhadora, cujo surgimento não pode, ele próprio, ser “desenvolvido a partir do conceito”. Ora, anteriormente já apontamos para o duplo significado do conceito da circulação simples. No decorrer do registro por escrito, essa duplicidade se torna mais precisa e, desse modo, aumenta também a nitidez do seguinte problema: o que Marx identifica no Rascunho como a esfera da aparência, a circulação simples, que já ali é caracterizada por ele como superfície do processo capitalista de reprodução, é a mercadoria como produto do capital. O processo de circulação aparece como simples troca, e a economia assume essa aparência; enquanto teoria, ela constitui a formulação dessa aparência. Em si, porém, sempre já estamos lidando com o processo de circulação do capital, que provém do processo de produção e lança a mercadoria no mercado. É com essa mercadoria que Marx inicia a exposição no escrito Para a crítica da economia política, bem como depois em O capital. Desse modo, um dos dois significados desse conceito é absolutizado e a expressão “circulação simples” não é mais usada; ao mesmo tempo, parece ilógico continuar a falar de um movimento da autonomização do valor quando Marx já começa com a mer­ cadoria como produto do processo capitalista de produção, com o resultado social desse processo de distorção e autonomização. Quando a explicitação do conceito de capital é eliminada do valor autonomizado na circulação, a explicitação ulterior do capital dificilmente poderá ser feita segundo esse método: ela precisa, portanto, ser “ocultada”. Assim, todas as indicações para esse procedimento são sistematicamente eliminadas ou relegadas a segundo plano15.

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Ligada a essa concepção expositiva encontra-se outra problemática teórica e metodológica. O Rascunho — em correspondência à diferenciação entre o intercâmbio que põe valor de troca e o trabalho que põe valor de troca — diferencia entre a “verdade teórica” do trabalho abstrato, que “ainda incide antes na nossa reflexão subjetiva”, e o trabalho abstrato efetivado na prática, e, desse modo, pela primeira vez fundamenta sistematicamente a categoria do trabalho abstrato-universal, assim como a teoria do valor do trabalho; em contraposição a isso, em O capital, o conceito do trabalho abstrato é introduzido em termos definitórios. Abstraindo do fato de isso já ter sido alvo de crítica logo após a publicação do primeiro volume, o próprio conceito permanece obscuro e não foi esclarecido em toda a história da discussão sobre a teoria marxiana do valor; e também a conexão com o próprio valor ainda carece de explicação. No fundo, porém, essa questão só surge quando a natureza específica da abstração da troca é posta em debate. Em conexão com a cunhagem do termo por Simmel16, Sohn-Rethel falou de uma abstração real; Adorno assumiu essa ideia de Sohn-Rethel e caracterizou a abstração da troca como uma “conceitualidade objetiva reinante na própria coisa”, como uma “abstração objetiva”. Porém, as interpretações permaneceram insatisfatórias ou, como no caso de Adorno, não passaram de indicações programáticas. Podemos de fato recorrer a Marx que não deixa margem a dúvidas ao afirmar que o valor representa um produto de abstração gerado pelos próprios envolvidos na troca. Todavia não é no Rascunho, mas só depois, em O capital, que se encontram indicações explícitas quanto ao que se deve imaginar por categorias e em que termos estas devem ser desenvolvidas em conexão com o valor enquanto abstração efetuada pelos próprios agentes da troca. As categorias são caracterizadas ali com toda a clareza desejável como “formas de pensamento [...] dotadas de objetividade” (23/90 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 151]*), como formas “subjetivas-objetivas”, e o valor como produto da abstração que “existe na cabeça”: “Equivalente significa aqui apenas igualdade de grandeza depois que as duas coisas foram reduzidas tacitamente, na nossa cabeça, à abstração ‘valor’” (II.5/632). Em vista dessa determinação do valor como abstração ideal, levanta-se a questão referente ao modo como deve ser concebida a conexão entre trabalho e valor. Mas isso só é viável se levarmos a sério o programa de Marx do jeito que ele o sumarizou sucintamente no primeiro volume: * Ref. completa da edição brasileira: K. Marx, O capital. Crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo, Boitempo, 2013. (N. do T.)

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É verdade que a economia política analisou, mesmo que incompletamente, o valor e a grandeza de valor e revelou o conteúdo que se esconde nessas formas. Mas ela jamais sequer colocou a seguinte questão: por que esse conteúdo assume aquela forma, e por que, portanto, o trabalho se representa no valor e a medida do trabalho, por meio de sua duração temporal, na grandeza de valor do produto do trabalho? (23/94-5. [ed. bras. O capital, vol. I, p. 151])

Porém, como é que o trabalho humano-abstrato, que é definido como “dispêndio produtivo de cérebro, músculos, nervos, mãos etc. humanos” (23/58 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 121]), se transforma nessa abstração do valor? Como esse dispêndio consegue “assumir a forma do valor”? Como uma abstração se relaciona com a outra? A meu ver, a resposta a essa pergunta só pode ser obtida pela via da explicação aprofundada de uma concepção da qual em Marx só aparecem breves indicações e que, em toda a discussão sobre a teoria marxiana, não foi descoberta nem abordada mais detidamente. Em O capital, Marx opera com uma concepção de validade impossível de ser ignorada terminologicamente — ele fala bem mais de 30 vezes de validade em diversas locuções só na primeira edição do anexo “A forma de valor” —, mas ele elucida apenas indiretamente, por meio de alusões e exemplos velados, essa ideia que tem como ponto de partida a concepção da reflexão ponente e da reflexão exterior da lógica hegeliana da essência. É só nesse contexto que parece ser possível tematizar satisfatoriamente a “abstração ‘valor’” — enquanto unidade de validade e ser. Isso também possibilitaria outra interpretação do conceito do trabalho universal-abstrato, bem como ofereceria uma resposta à pergunta anteriormente levantada referente à razão pela qual Marx consegue expor o capitalismo na forma de um “conceito geral do capital”17. Bremen, setembro de 2001

Notas 1 Quem chamou minha atenção para essa passagem epistolar foi Hans-Georg Backhaus. 2 Gerhard Göhler, Die Reduktion der Dialektik durch Marx, Stuttgart, 1980. 3 Por exemplo, o seguinte parágrafo, que faz a ponte para o segundo capítulo tanto em Para a

crítica como em O capital, e que, na segunda edição, foi simplesmente riscado: “A mercadoria é unidade imediata de valor de uso e valor de troca, portanto, de dois opostos. Por conseguinte, ela é uma contradição imediata. Essa contradição necessariamente ficará explícita no

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sobre a estrutura lógica do conceito de capital em karl marx

momento em que ela não for considerada, como até agora, analiticamente ora do ponto de vista do valor de uso, ora do ponto de vista do valor de troca, mas quando, na condição de to­talidade, realmente for posta em relação com outras mercadorias. A relação real das mercadorias entre si é o seu processo de troca” (II.5/51). O mesmo ocorre com a frase de transição no capítulo da acumulação: “O prosseguimento da exposição levará mais tarde, através de sua própria dialética, àquelas formas mais concretas”, após a seguinte frase: “Consequentemente a sua análise pura exige que se abstraiam provisoriamente todos os fenômenos que escondem o funcionamento interno do seu mecanismo” (II.5/457). 4 Cf. Fred E. Schrader, Restauration und Revolution, Die Vorarbeiten zum “Kapital” von Karl Marx in seinen Studienheften 1850-1859, Hildesheim, 1980, p. 205. 5 Schrader, pp. 204-5. 6 Essa concepção não deve ser confundida com a ideia da “produção simples de mercadorias”, desenvolvida por Friedrich Engels e delimitada por ele contra a produção capitalista de mercadorias. Cf. Engels, em: “Ergänzung und Nachtrag zum 3. Buch des Kapital [Suplemento ao Livro Terceiro de O capital]” (25/905 e ss. [ed. bras. O capital, vol. III, Tomo 2, pp. 319 e ss.]). Por não ser idêntica à ideia de Engels, a concepção da circulação simples não podia ser discutida na União Soviética. Sobre o conceito da circulação simples, ver agora também: Nadja Rakowitz, Einfache Warenproduktion, Ideal und Ideologie. Freiburg, 2000. 7 “O dinheiro, em sua determinação última, acabada, manifesta-se, pois, sob todos os aspectos, como uma contradição que se resolve a si mesma; que tende à sua própria resolução” (42/160 [ed. bras. Grundrisse, pp. 176-7]). E, Hegel diz, na passagem para a essência: “Porém, o suprassumir-se da determinação da indiferença já ocorreu; na explicitação do seu ser-posto, ela se manifestou, em todos os seus aspectos, como uma contradição. Ela é em si a totalidade, na qual todas as determinações do ser estão suprassumidas e contidas” (G. W. Hegel, Wissenschaft der Logik I. Frankfurt, 1986, p. 456). Quando, tempos depois, Marx caracterizou a sua relação com Hegel como um coqueteio com a linguagem hegeliana, isso não só é uma subestimação dos fatos, mas um evidente despiste, porque se verifica uma profunda coincidência na estruturação concepcional. Assim como todas as determinações da lógica do ser são suprassumidas na lógica da essência, Marx também quer mostrar que a esfera da circulação simples se manifesta no decurso subsequente como uma abstração: “Considerada em si mesma, a circulação é a mediação entre extremos pressupostos. Porém, não é ela que põe esses extremos. Por conseguinte, sendo ela própria a totalidade da mediação, o processo total, ela necessariamente é mediada. Por conseguinte, o seu ser imediato é pura aparência. Ela é o fenômeno de um processo que se desenrola às suas costas. Ela passa, então, a ser negada em cada um dos seus momentos, enquanto mercadoria, enquanto dinheiro e enquanto relação entre ambos, ou seja, enquanto troca simples entre os dois, enquanto circulação” (II.2/64). 8 A totalidade das investigações sobre as alterações de planos por parte de Marx evita esse problema; o objeto sempre se limita à questão referente ao que deve ser atribuído a esse “conceito geral”, ao “capital em geral” e ao que não pertence mais a ele. 9 Hans-Georg Backhaus, “Über den Doppelsinn der Begriffe ‘politische Ökonomie’ und ‘Kritik’ bei Marx und in der Frankfurter Schule”, em: Wolfgang Harich zum Gedächtnis, Eine Gedenkschrift in zwei Bänden. München, 2000, vol. 2, pp. 10-213. 10 Theodor W. Adorno. “Einleitung zum ‘Positivismusstreit in der deutschen Soziologie’”, em: GS, vol. 8, p. 296. 11 Sintetizado em grande parte em: Dialektik der Wertform, Untersuchungen zur Marxschen Ökonomiekritik. Freiburg, 1997. 12 Josef Schumpeter, Geschichte der ökonomischen Analyse, 2 vols., ed. E. B. Schumpeter. Göttingen, 1965, vol. 1, p. 754. 13 Schumpeter, vol. 2, p. 1.213.

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