Sobre a história do estilo cinematográfico

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universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta

Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Esdras Rodrigues Silva – Guita Grin Debert João Luiz de Carvalho Pinto e Silva – Luiz Carlos Dias Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Luiz Coltro Antunes – Sedi Hirano

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David Bordwell

sobre a história do estilo cinematográfico

Tradução Luís Carlos Borges

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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.

ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação B644s

David Bordwell, 1947Sobre a história do estilo cinematográfico / David Bordwell; tradução: Luís Carlos Borges. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2013. 1. Cinema. 2. Cinema – Estética. 3. Filme cinematográfico. 4. Cinema – História. I. Luís Carlos Borges. II. Título.

cdd 791.43 791.4301 778.53 isbn 978-85-268-1021-1 791.4309 Índices para catálogo sistemático:

1. Cinema 2. Cinema – Estética 3. Filme cinematográfico 4. Cinema – História

791.43 791.4301 778.53 791.4309

Título original: On the histoy of film style. Copyright © President and Fellows of Harvard College , 1997 Published by arrangement with Harvard University Press.

Copyright © by David Bordwell Copyright © 2013 by Editora da Unicamp

Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, dos detentores dos direitos. Printed in Brazil. Foi feito o depósito legal.

Direitos reservados à Editora da Unicamp Rua Caio Graco prado, 50 – Campus Unicamp cep 13083-892 – Campinas – sp – Brasil Tel./Fax: (19) 3521-7718/7728 www.editora.unicamp.br – vendas@editora.unicamp.br

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Agradecimentos

Iniciei este livro com o auxílio de uma bolsa de estudos da John Simon Guggenheim Memorial Foundation. Sou grato à fundação pelo seu apoio. A maior parte do original foi escrita enquanto eu era Senior Fellow no Institute for Research in the Humanities da University of Wis­ consin-Madison. Sou muito grato pela camaradagem erudita que meus colegas de instituto me proporcionaram, particularmente o enérgico e bem-humorado diretor, Paul Boyer. O livro foi completado com a ajuda de fundos do Graduate School Research Committee da University of Wisconsin-Madison, sob os auspícios da Wisconsin Alumni Research Foundation. Este livro deve sua existência a muitos arquivistas que me propor­ cionaram acesso a filmes e documentos impressos. Este incluem Mary Corliss e Charles Silver, do Museum of Modern Art (os mais antigos amigos arquivistas que tenho); Enno Patalas, Klaus Volkmer e Gerhardt Ullmann, do Museu do Cinema de Munique; Masaioshi Ohba e particu­ larmente Hisashi Okajima, do Film Center de Tóquio; Elaine Burrows, do National Film and Television Archive, do British Film Institute; os irreprimíveis Chris Horak e Paolo Cherchi Usai, ambos então na presi­ dência da Motion Picture Collection do George Eastman International Museum of Photography, e a arquivista extraordinária Maxine FlecknerDucey, do Wisconsin Center for Film and Theater Research. Sou espe­ cialmente grato a Gabrielle Claes, diretora da Cinémathèque Royale de Belgique, que durante muitos anos apoiou lealmente o meu trabalho. O alegre pessoal da Cinémathèque — Clémentine, Liliane, Alain, JeanVictor, Axel e todos os outros — fez dela um lugar maravilhoso para a condução de uma pesquisa. Devo também agradecer a Michael Campi, Jerry Carlson, Seymour Chatman, Charlie Keil, Alison Kent, Hiroshi Komatsu, Richard Kos­ zarski, Graziella Menechella, Mike Pogorzelski, Rony Rayns, Donald Richie, Andreas Rost, Patrick Rumble, Ben Singer, Meier Sternberg e Lindsay Waters, por prestarem assistência ao projeto de várias maneiras. Dois representantes da veneranda velha guarda dos estúdios cinemato­

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gráficos faleceram enquanto eu fazia a revisão do original. Tanto John Gillet, do British Film Institute, como William K. Everson, da New York University, compartilhavam o seu amor pelo cinema com todos aqueles com quem tinham contato, e livros como este se beneficiaram grande­ mente de sua generosidade espontânea. Também quero recordar a ami­ zade de Jeanne Allen e David Allen; no dia de Ação de Graças de 1976 eles me presentearam com a Estética de Hegel, o presente que continua a se ofertar. Vários alunos de meu seminário de 1994 sobre o estilo cinematográ­ fico ofereceram-me novos discernimentos. Tino Balio, Don Crafton, Vance Kepley, J. J. Murphy e outros colegas de Wisconsin regular­mente enriquecem meu entendimento do cinema. Um esboço do original foi criticado detalhadamente por Kristin Thompson, Yuri Tsivian, Ed Bra­ nigan e Dana Polan, leitora da Harvard University Press. Kristin também forneceu algumas ampliações de fotogramas e imprimiu todas as ilus­ trações, provando mais uma vez que o amor perdoa a insensatez. Devo destacar mais quatro amigos. Os comentários extensos e in­ quisitivos de Noël Carroll sobre o original remodelaram meus argu­ mentos de maneira fundamental. Noël ofereceu-me críticas tão boas que tive de economizar algumas para outro livro. Lea Jacobs e Ben Brewster permitiram que eu assistisse ao seu seminário sobre o período inicial do cinema, autorizaram que eu emitisse ocasionalmente uma interjeição monossilábica e escutaram com paciência minhas observa­ ções sobre assuntos que eles conhecem muito melhor do que eu. Ben também leu o livro e corrigiu importantes questões de fato. Final­mente, Tom Gunning deu-me dúzias de sugestões cuidadosas para o livro. Ele foi generosíssimo ao discorrer sobre os trechos em que eu criticava seus argumentos. Este livro originou-se de um artigo escrito para Film History, em 1994. Porções do livro foram apresentadas como palestras no MIT e na Universidade de Hong Kong, e agradeço às pessoas que me convidaram, Henry Jenkins e Patricia Erens, respectivamente, assim como aos ou­ vintes que ofereceram comentários. Paolo Cherchi Usai, Lorenzo Codelli, Piero Colussi, Andrea Croz­ zoli, Livio Jacob, Carlo Montanaro, Piera Patat, Davide Turconi, e o resto da equipe de Pordenone são grandemente responsáveis por abrir meus olhos para os esplendores dos primeiros tempos do cinema. Tal­ vez este volume pague parcialmente todos os atos de gentileza que eles dispensaram a tantos cinéfilos.

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VocĂŞ pode observar um bocado assistindo. Yogi Berra

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Sumário

apresentação da edição brasileira....................................... 11 capítulo 1 — A aparência dos filmes: A importância da

história estilística. . .......................................................................... 13 capítulo 2 — Defendendo e definindo a sétima arte:

A Versão-Padrão da história estilística . . ........................................ Um repertório em desenvolvimento: a História Básica....................... A cultura cinematográfica e a História Básica................................... A Versão-Padrão: pressupostos centrais.............................................. Entendendo-se com o som................................................................... Bardèche, Brasillach e a Versão-Padrão.............................................

29 30 39 45 55 58

capítulo 3 — Contra a sétima arte: André Bazin e o

programa dialético.......................................................................... 75 A evolução da linguagem cinematográfica......................................... 91 Rumo a um cinema impuro................................................................ 100 Da história estilística à crítica temática............................................. 107 capítulo 4 — O retorno do modernismo: Noël Burch e o

programa de oposição..................................................................... 123 Radicalizando a forma........................................................................ 124 O modo institucional e os seus outros................................................. 136 Sombras vivas e observadores distantes.............................................. 144 capítulo 5 — Perspectivas de progresso: Programas de

pesquisa recentes. . ........................................................................... 167 História em bocados............................................................................ 169 A cultura, a visão e o perpetuamente novo........................................ 193 Problema e soluções............................................................................ 205

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capítulo 6 — Percepções excepcionalmente exatas: Sobre a

encenação em profundidade.. .......................................................... 225 Ideologia e profundidade.................................................................... 226 Tornando inteligível a imagem........................................................... 231 Gigantes mudos................................................................................... 244 Profundidade, decupagem e movimento de câmera............................ 269 Redefinindo a mise-en-scène............................................................... 294 Expandindo a imagem e comprimindo a profundidade..................... 311 Ecletismo e arcaísmo........................................................................... 328 Índice onomástico . . ......................................................................... 359

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Apresentação da edição brasileira

Em Sobre a história do estilo cinematográfico Bordwell traça um pano­ rama de algo pouco explorado entre nós: a estilística fílmica. Demons­ tra que o conjunto de procedimentos estéticos que denominamos esti­ lo organiza-se numa perspectiva diacrônica, evoluindo ao longo do século XX. Determina, assim, três momentos-chave para uma história do estilo, apresentando no final uma opção metodológica para abordá-los. O primeiro momento seria o da “Versão-Padrão” da “história bá­ sica do cinema”, dominante até meados do século XX. A “Versão-Padrão” está personificada na visão dos primeiros analistas do filme mudo, sendo sintetizada, pioneiramente, nas diferentes edições da Histoire du Cinéma (1935) publicadas pelos franceses Robert Brasillach e Maurice Bardèche. É a “Versão-Padrão” de Brasillach e Bardèche que servirá de base para as clássicas historiografias de Georges Sadoul, Jean Mitry, Charles Ford/René Jeanne e outros (Bordwell chega a citar a tardia versão de Otávio de Faria no Brasil). O segundo momento nos é apre­ sentado através da crítica de André Bazin e de sua geração no pós-guer­ ra europeu, podendo ser sintetizado no influente ensaio A evolução da linguagem cinematográfica. Bazin, pioneiramente, liberta-se da crítica marcada pelo horizonte do cinema mudo ou pelas demandas das van­ guardas plásticas (particularmente o construtivismo soviético), incorpo­ rando definitivamente na história do cinema a estilística da cinematogra­ fia sonora e os procedimentos valorados pelo realismo do pós-guerra (planos longos, planos sequência, fotografia em profundidade de c­ ampo, crítica à montagem, elogio da encenação/cenografia realistas etc.). Para traçar o terceiro momento, denominado como momento do “retorno do modernismo”, Bordwell irá se servir da metodologia de análise estilística desenvolvida por Noël Burch. Burch trabalha com “parâmetros” de procedimentos de estilo, dispostos de modo constru­ tivo/estrutural, articulados por “alternativas binárias”. É constatando a estruturação desses parâmetros que Burch delineia suas refinadas aná­ lises estilísticas e sua tabela de valoração do cinema moderno. Circuns­ crevendo o MIR (Modo Institucional de Representação) e o diferen­ciando

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do MPR (Modo Primitivo de Representação), Burch encontra base para uma apreensão estrutural do estilo, sintonizada com as demandas da modernidade dos anos 1960/1970. Está assim delineada, grosso modo, a quadra histórica da estilística fílmica no século XX, conforme vista por Bordwell. A partir desse quadro, o autor utiliza a segunda metade do livro para expor suas pesquisas contemporâneas sobre o tema. Demonstrando amplo domínio do horizonte bibliográfico e particular capacidade para “ver” cinema, desmonta mitos pedindo detalhamento nas formulações gerais da historiografia clássica e moderna. A preocupação será intro­ duzir nuanças nos três grandes quadros apresentados, deslocando lu­ gares-comuns. Descobre tendências insuspeitas na história do cinema, detalhando diacronicamente elementos de estilo como a construção da mise-en-scène no espaço frontal/traseiro do plano ou a encenação em profundidade, seja na diagonal, seja no deslocamento transversal para fora de campo. Os diferentes tipos de raccord e a opção entre uma es­ tilística de montagem mais marcada ou suave são analisados fora dos lugares-comuns da historiografia mais conhecida. A opção metodológica, em termos historiográficos, recai sobre o que chama de pesquisa de “nível médio”. A pesquisa de “nível médio”, tra­ balho de formiga, situa-se em oposição às “Grandes Teorias”. Está aqui traçada uma dicotomia que irá perdurar em sua obra e que servirá de base à crítica de horizontes ideológicos generalizantes. Enfatiza o le­ vantamento histórico com foco em questões precisas, tendo por eixo a utilização de fontes primárias como subsídio (fontes de origem fílmica ou de arquivo documental). Em Sobre a história do estilo cinematográfico Bordwell revela-se um analista fílmico perspicaz. Alguém que sabe olhar para a imagem situando-a no contexto de sua época, ao mesmo tempo em que leva em consideração o conjunto de elementos estéticos que a conformam. Trata-se de livro que realça a dimensão estilística do filme, escrito por um crítico que se sustenta no conhecimento historiográfico da arte com a qual trabalha. Fernão Pessoa Ramos

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capítulo 1

A aparência dos filmes: A importância da história estilística

Se você fosse ao cinema por volta de 1908, a maioria dos filmes ficcionais que veria exibiria seus dramas em imagens como a da Fig. 1.1. Os atores estão ordenados em fila e longe de nós. Eles representam diante de um pano de fundo de lona, com direito a rugas e decoração pintada. O plano se desenrola sem ser interrompido por vistas mais próximas. Hoje, uma imagem assim parece espantosamente “não cinematográfica”, o cúmulo da teatralidade. Apenas uma dúzia de anos depois, um frequentador de cinema teria visto algo muito mais naturalista (Fig. 1.2). Um homem é seduzido por uma mulher em uma sala. Ainda não há cortes para fechar os planos dos personagens, mas o espaço destes é bem volumétrico. O homem está de pé, razoavelmente perto da câmera, e os adereços, a pele de tigre e todo o resto, estendem-se graciosamente em profundidade, culminan­ do na figura distante da mulher, delineada nitidamente contra o seu quarto. Ao visitar um cinema por volta de 1919, você teria visto imagens bem diferentes. Um jovem rico fica impressionado pela beleza de uma jovem trabalhadora; eles se estudam. A ação-chave é encenada em menos profundidade do que no plano de 1913 (Fig. 1.3). Como que para com­ pensar, a ação é decomposta em vários planos. A interação erótica ocorre em um par de imagens mais próximas (Figs. 1.4 e 1.5). E, para o plano da mulher, o ângulo da câmera muda abruptamente, colocando­ -nos “no meio” dos atores. Agora, salte para 1950, mais ou menos. Marido e mulher defrontam­ -se no final de um lance de escadas (Figs. 1.6 e 1.7). Como na cena de 1919, uma série de planos penetra o espaço, mudando o ângulo para acomodar os participantes. Agora, porém, o ângulo da câmera au­menta a profundidade pictórica, produzindo um espaço frontal, um espaço intermediário e um espaço de fundo, que lembram os planos de nosso caso de 1913. Embora as áreas frontais não estejam nitidamente em foco, cada tomada produz um primeiro plano de uma figura e uma vista de plano de conjunto de outra. A aparência dos filmes

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1.1 — Accidents Will Happen (W. R. Booth? 1907).

1.2 — Red and White Roses (William Humphrey? 1913).

1.3 — O presidente (Præsidenten) (Carl Theodor Dreyer, 1919).

1.4 — O presidente.

1.5 — O presidente.

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1.6 — Corvos e pardais (Wuya Yu Maque) (Zheng Junli, 1949).

1.7 — Corvos e pardais.

Doze anos depois, outra mulher se defronta com outro homem. Ela o convida para uma refeição em seu restaurante. O vagabundo começa a tirar o chapéu (Fig. 1.8). Corte para ele enquanto ele continua o gesto (Fig. 1.9) — aparentemente, um corte para um primeiro plano como o do exemplo de 1919. Mas, de repente, o homem não está mais de pé no corredor; ele está tirando o chapéu enquanto se senta à mesa. A câ­mera revela a situação efetiva movendo-se para trás em diagonal, para incluir a mulher enquanto ela o serve (Fig. 1.10). O corte é desconcertante de uma maneira não evidente nas nossas primeiras cenas. Ou o vagabun­ do tirou o chapéu duas vezes ou, no mundo dessa história, os movi­ mentos contínuos dos personagens conseguem, de certa maneira, trans­ por lacunas no tempo e no espaço. Visite um cinema por volta de 1970 e poderá ter uma sensação de déja vu. Isso porque na tela se desenrola uma história contada em ima­ gens que lembram as vistas usadas por volta de 1910 (Fig. 1.11). Os ade­reços, de certa maneira, são mais tridimensionais, e o enquadra­mento não é tão espaçoso, mas a imagem é definida por uma parede ao longe e por figuras distantes enfileiradas, de certa maneira, como roupas em um varal. Embora nossos espécimes representem um amplo leque de nações produtoras de filmes (Grã-Bretanha, Estados Unidos, Dinamarca, Chi­ na, França, Geórgia Soviética), nenhum deles provém de um clássico aclamado. Contudo, esses filmes, em boa parte desconhecidos, nos encorajam a fazer perguntas fundamentais sobre a história das imagens em movimento. O que salta mais prontamente à vista são as diferenças: um plano x vários planos, uma posição de câmera x múltiplas posições de câmera; composições razoavelmente planas x composições profundas; vistas dis­tantes x vistas próximas; continuidade espacial e temporal x descon­

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1.8 — Uma tão longa ausência (Une aussi longue absence) (Henri Colpi, 1960).

1.9 — Uma tão longa ausência.

1.10 — Uma tão longa ausência.

1.11 — Pirosmani (Georgy Shengelaya, 1971).

tinuidade espacial e temporal. Podemos destacar padrões de mudança plausíveis que vão da imagem mais antiga para a mais recente? Há princípios gerais governando essas diferenças? Revelar tais padrões e princípios apenas aguça o nosso apetite. Como e por que essas mu­ danças ocorreram? Por que o método do “varal” de 1910 caiu em desu­ so? E por que, após as mudanças das décadas intermediárias, um filme de 1971 aparentemente retornou a ele? Isto é, como podemos explicar as mudanças que discernimos? Estamos fazendo a contraparte cinema­ tográfica da pergunta que abre Arte e ilusão, de E. H. Gombrich: Por que a arte tem uma história? Um pouco de reflexão nos leva a outra linha de investigação. Nem tudo na nossa amostragem de sequências muda de época para época. A cena de três planos mostrando a avaliação erótica que o jovem faz de sua criada, filmada há mais de 75 anos, continua perfeitamente inteli­ gível para nós. Assim como o par de imagens do marido e da mulher

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no fim do lance de escadas. Além disso, se ficamos surpresos com a mu­dança no tempo e no espaço quando o vagabundo tira o chapéu (Figs. 1.8-1.10), é provavelmente porque pressupomos que a maioria dos cortes liga tempo e espaço suavemente. O que significa dizer que esses espécimes de imagens também têm certas técnicas e princípios de cons­ trução em comum. Nossa investigação da história do cinema terá de levar em conta as continuidades que cruzam casos específicos. Alguns exemplos não conseguem sugerir todas as maneiras como as imagens cinematográficas foram construídas ao longo de cem anos. Nos­sas imagens fornecem meros vestígios de tendências, sugestões de desenvolvimentos complexos e sobrepostos. Por ora, eles servem para realçar fatos simples esquecidos com excessiva frequência. A aparência dos filmes tem uma história; essa história pede análise e explicação, e o estudo desse domínio — a história do estilo cinematográfico — apre­ senta desafios incontornáveis para qualquer um que deseje entender o cinema. No sentido mais estrito, considero o estilo um uso sistemático e significativo de técnicas da mídia cinema em um filme. Essas técnicas são classificadas em domínios amplos: mise-en-scène (encenação, ilumi­ nação, representação e ambientação), enquadramento, foco, controle de valores cromáticos e outros aspectos da cinematografia, da edição e do som. O estilo, minimamente, é a textura das imagens e dos sons do filme, o resultado de escolhas feitas pelo(s) cineasta(s) em circunstâncias históricas específicas. Carl Theodor Dreyer tinha a opção de filmar a troca de olhares (Figs. 1.3-1.5) em um único plano, como na Fig. 1.2, mas escolheu enfatizar as expressões dos personagens fazendo o corte para imagens mais próximas. O estilo, neste sentido, afeta o filme individual. Naturalmente pode­ mos discutir o estilo em outros sentidos. Podemos falar do estilo individual — o estilo de Jean Renoir, de Alfred Hitchcock ou de Hou Hsiao­ -Hsien. Podemos falar do estilo grupal — o estilo de fazer filmes da Montagem Soviética ou dos estúdios de Hollywood. Em qualquer um dos casos, estaremos falando, minimamente, sobre escolhas técnicas características, só que, agora, na medida em que estas se mostram re­ correntes em um corpo de obras. Podemos também estar falando sobre propriedades, como estratégias narrativas ou assuntos ou temas prefe­ ridos. Assim poderíamos incluir como parte do estilo de Hitchcock a sua propensão para tratar os diálogos com suspense ou uma persistên­ cia do tema da duplicação. Contudo, características recorrentes de en­ cenação, filmagem, cortes e som continuarão a ser uma parte essencial de qualquer estilo individual ou grupal. A história do estilo cinematográfico é uma parte do que ampla­mente se considera ser a história estética do cinema. Esta categoria abran­

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gente também abarca a história das formas fílmicas (por exemplo, for­ mas narrativas ou não narrativas), dos gêneros (por exemplo, os fa­roes­ tes) e dos modos (por exemplo, filmes de ficção, documentários). Os estudiosos do cinema geralmente distinguem a história estética da his­ tória da indústria cinematográfica, da história da tecnologia do cinema e da história das relações do cinema com a sociedade ou a cultura. Não é fácil delimitar com nitidez esses tipos de história, e qualquer projeto de pesquisa específico irá misturá-los com frequência. Prova­ velmente o melhor é conceber a escrita da história do cinema tal como im­pelida por perguntas colocadas em diferentes níveis de generalidade. Como primeira aproximação, a lição de nossos estudos de caso em miniatura pode ser formulada exatamente dessa maneira. Os historia­ dores do estilo cinematográfico buscam responder a duas questões amplas: que padrões de continuidade e mudança estilística são signifi­ cativos? Como esses padrões podem ser explicados? Essas questões natural­mente abrigam pressupostos. O que constituirá um padrão? Quais são os critérios para a significação? Como a mudança será con­ cebida — como gradual ou abrupta, como o desdobramento de um potencial inicial ou como uma luta entre tendências opostas? Que tipos de explicação podem ser invocados e que tipos de mecanismos causais são relevantes para eles? Sondar esses pressupostos é parte do que pretendem os capítulos que se seguem. Por ora, devemos reconhecer que o próprio empreendi­ mento — a tentativa de identificar e explicar padrões de continuidade e mudança estilística — constitui uma tradição central na historiografia do cinema. Defender essa tradição hoje é correr o risco de parecer ossificado. Desde a ascensão de novas tendências na teoria do cinema durante os anos 1960, explorar a história do estilo tem sido rotineiramente con­ denado como “empirista” e “formalista”. O estudioso da técnica foi acusado de ingenuamente confiar em dados em vez de conceitos e de isolar o cinema do que realmente importa — sociedade, ideolo­gia, cultura 1. O pós-modernismo acrescentará que tentar escrever uma história do estilo cinematográfico é entregar-se à fantasia de uma “grande narra­tiva” que dará significado àquilo que, nas nossas presen­ tes circunstâncias, são apenas fragmentos de experiência, uma massa flutuante de artefatos isolados e documentos indefinidamente inde­ terminados. Essas objeções, pelo menos na forma como geralmente são emitidas, parecem-me mal fundadas. Por exemplo, chamar de empirista a histó­ ria estilística é simplesmente impreciso. O empirismo é uma doutrina epistemológica que sustenta que a experiência é a única fonte de conhe­ cimento. Essa visão é frequentemente acompanhada pela afirmação de

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que a experiência se origina do registro passivo de impressões pela mente. Nenhum historiador importante do cinema jamais acreditou em tais coisas. Os capítulos a seguir demonstrarão que as estruturas de referência conceituais têm guiado até mesmo os mais tradicionais his­ toriadores do estilo na seleção de seus dados e na construção de seus argumentos. É verdade que os historiadores inevitavelmente fazem afirmações empíricas — isto é, afirmações sujeitas a modificação à luz de informações adicionais. Mas críticos e teóricos também fazem afir­ mações empíricas. O “empirismo” como doutrina filosófica ou psicoló­ gica não deve ser confundido com um recurso a afirmações empirica­ mente confiáveis. Algo similar é válido para as acusações de que qualquer um que es­ tude a história do artístico cinematográfico é um “formalista”. Uma im­plicação adicional é que os praticantes da história estilística sustentam a visão de que a arte cinematográfica, ou a arte em geral, é autônoma em relação a outras esferas. Contudo, não é preciso sustentar uma visão autonomista para praticar a história estética; muitos historiadores do estilo argumentam que as mudanças na arte cinematográfica estão in­ timamente ligadas a outras mídias e a muitas práticas não artísticas, como mudanças sociais e políticas. Escolher uma área de estudo não é automaticamente votar na melhor maneira de estudá-la. Estruturar questões de pesquisa a respeito de processos formais como o estilo não é comprometer-se com a crença de que as explicações decorrentes são inteiramente de ordem formal. É perfeitamente possível descobrir que os fenômenos formais que estamos tentando explicar procedem de causas culturais, institucionais, biográficas e de outros tipos. Na verda­ de, não podemos prever aonde nos levará uma questão sobre estilo. Trata-se, como dizemos, de uma questão empírica. Naturalmente, alguém pode insistir para que ignoremos inteiramente a forma e o estilo, mas esse é um gesto dogmático para o qual não consigo imaginar nenhum fundamento plausível. E a suspeita pós-modernista quanto às “grandes narrativas”? Se con­ cebemos uma grande narrativa como uma narrativa determinista ou teleológica, na qual acontecimentos iniciais carregam as sementes de desenvolvimentos posteriores, devemos reconhecer que alguns histo­ riadores sustentaram que o estilo cinematográfico se desenvolve de alguma maneira assim, mas nem todos o fizeram. Uma teleologia não é componente necessário de uma história do estilo cinematográfico. Alternativamente, se uma grande narrativa é uma narrativa que subor­ dina uma variedade de acontecimentos distintos a uma lógica superior de longo prazo, pode-se assinalar que a doutrina pós-modernista traça as suas próprias grandes narrativas: a passagem do realismo para o modernismo e o pós-modernismo ou do capitalismo primitivo para

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o capitalismo tardio, ou do estado-nação para o mercado global. Mais positivamente, podemos observar que nem todas as descrições esclare­ cedoras do estilo cinematográfico são grandes nesse sentido. Boa parte da mais instigante pesquisa “revisionista” do estilo ao longo das duas últimas décadas evitou o grande retrato e revelou uma profusão de pro­ cessos causais pulverizados operando em um breve período. O mais importante é que qualquer narrativa histórica, grande ou não tão grande assim, é concebida da melhor maneira como uma tentativa de responder a uma pergunta. As descrições revisionistas são atraentes não tanto porque funcionam na escala menor, mas porque constituem respostas vigorosas às perguntas que colocam. Uma investigação do estilo cinematográfico deve resistir ou cair pela sua plausibilidade em comparação com a plausibilidade de suas rivais, e se uma “grande nar­ rativa” enfrenta um problema de maneira mais convincente do que uma “micro-história”, não podemos descartá-la imediatamente por incorre­ ção teórica. Um projeto de pesquisa convincentemente colocado e cui­ dadosamente conduzido exigirá atenção séria, não importa em que escala atue. Este livro sustenta que a tradição da história estilística do cinema resiste aos tipos de ceticismo que acabo de mencionar. Posteriormente terei oportunidade de desenvolver elaborações mais completas a res­peito desses desafios teóricos. Mesmo que a história estilística fosse passé, ainda valeria a pena estudá-la. Isso porque ela constituiu uma das visões de cinema mais influentes mundo afora. Parte da influência dessa tradição se deve simplesmente ao seu atra­ tivo intelectual. A escrita sobre cinema envolveu algumas das melhores mentes que já refletiram sobre o cinema: Georges Sadoul, Jean Mitry e, acima de todos, André Bazin. Durante os anos 1970 e 1980, boa parte da pesquisa cinematográfica mais original e penetrante concentrou-se em problemas de estilo, particularmente no cinema anterior a 1920. Lida simplesmente como investigação intelectual, a historiografia do estilo cinematográfico é precisa e provocante em um grau que a teoria cine­ matográfica contemporânea, apesar de todas as suas aspirações, geral­ mente não é. O estudo do estilo moldou profundamente as maneiras como entende­ mos a história do cinema. Os períodos em que dividimos essa história, os tipos de influências e consequências que temos como certos, as es­ colas nacionais que rotineiramente designamos (expressionismo alemão, neorrealismo italiano): tais esquemas conceituais nos foram legados pelos historiadores do estilo. A historiografia do estilo cinematográfico ocupou-se não apenas de descobrir as grandes obras e acumular dados a seu respeito; ela também promoveu estruturas de referência que ain­ da guiam o nosso pensamento. O estudioso mais atualizado trabalhan­

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