Pintura e poesia

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Pintura e poesia: Fernando Pessoa por Alfredo Margarido


universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

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Editora-assistente Carla Fernanda Fontana Chefe Téc. Div. Editorial Cristiane Silvestrin


Yara Frateschi Vieira Lênia Márcia Mongelli (organizadoras)

PINTURA E POESIA: FERNANDO PESSOA POR ALFREDO MARGARIDO


Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.

ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação P658

Pintura e poesia: Fernando Pessoa por Alfredo Margarido / organizadoras: Yara Frateschi Vieira e Lênia Márcia Mongelli. – Campinas, SP: Editora da Unicamp; São Paulo: Edusp, 2015. 1. Pessoa, Fernando, 1888-1935. 2. Margarido, Alfredo. 3. Poesia portuguesa. 4. Pintura portuguesa. 5. Artes plásticas. I. Vieira, Yara Frateschi. II. Mongelli, Lênia Márcia de Medeiros.

cdd 869.169 e-isbn 978-85-268-1317-5 (Editora da Unicamp) 759.69 isbn 978-85-314-1544-9 (Edusp) 730.969 Índices para catálogo sistemático:

1. Pessoa, Fernando 2. Margarido, Alfredo 3. Poesia portuguesa 4. Pintura portuguesa 5. Artes plásticas

869.169 759.69 869.169 759.69 730.969

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Sumário

Apresentação – Yara Frateschi Vieira e Lênia Márcia Mongelli..................................

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Informações biográficas................................................................................................................................

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Bibliografia seleta.............................................................................................................................................. 11

Ut poesis pictura? – Carlos Felipe Moisés........................................................................................ 13 Alfredo Margarido, pintor de Pessoa(s) – Helder Macedo............................................ 25 Toda arte é uma forma de literatura – Vilma Arêas............................................................ 29 aquarelas de alfredo margarido.. ................................................................................ 37 apêndice.. ............................................................................................................................................................ 113

Aguarelas e aguardentes – Arnaldo Saraiva................................................................................ 115 Pessoa em quadrinhos – Carlos Vogt............................................................................................... 119 Divertimento pessoano – Eduardo Lourenço............................................................................ 121 Aguarelas brasileiras com toque parisiense, ou seja: Fernando Pessoa, do lepidóptero ao cabide – Luciana Stegagno Picchio........................................................ 123



Apresentação Yara Frateschi Vieira Lênia Márcia Mongelli

Há quase 30 anos, dentre as atividades paralelas promovidas pelo IV Congresso Internacional de Estudos Pessoanos (USP, 26 a 29 de abril, e Unicamp, 30 de abril de 1988), destacava-se a publicação das 33 + 9 Leituras plásticas de Fernando Pessoa, de Alfredo Margarido, numa parceria da Fundação Eng. António de Almeida, do Porto, com a Editora da Unicamp. Lançada simultaneamente à “Exposição de guaches e aquarelas de Alfredo Margarido”, inaugurada na Universidade de Campinas no dia 30 de abril do mesmo ano, essa edição incluía a reprodução dos 33 quadros expostos mais 9 de coleções particulares, com as respectivas remissões textuais apensas pelo próprio autor, e ensaios de Arnaldo Saraiva, Carlos Vogt, Eduardo Lou­renço e Luciana Stegagno Picchio. Por sua vez, as 33 aquarelas foram doadas por Margarido à Instituição, encontrando-se hoje custodiadas no Centro de Documentação “Alexandre Eulálio” (Cedae), do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. Tendo em vista a excepcional relevância desse conjunto iconográfico, que se singulariza não só por suas qualidades pictóricas, mas também por constituir uma fina inquirição da biografia e da obra de Fernando Pessoa, a Comissão Organizadora do Congresso Interna-

cional 100Orpheu (USP, 25 a 28 de maio de 2015) con­si­ derou que o público nacional e internacional cer­ta­ mente apreciaria a oportunidade de (re)ver essas obras, especialmente trazidas ao campus da Univer­sidade de São Paulo por ocasião das celebrações do centenário da revista. Ao mesmo tempo, aproveitando a conjuntura, e como sua decorrência natural, reconheceu a necessi­ dade e a pertinência de preparar uma nova edição do livro, proposta que, apresentada à Editora da Unicamp, foi imediata e entusiasticamente por ela abraçada. Pintura e poesia: Fernando Pessoa por Alfredo Marga­ rido é uma edição revista e ampliada da anterior, 33 + 9 Leituras plásticas de Fernando Pessoa. Em linhas gerais, há três diferenças entre uma e outra: 1) quanto à dis­po­ sição, os quatro ensaios que abriam aquela edição estão agora em “Apêndice”; 2) quanto aos acréscimos, três novos ensaios foram solicitados especialmente para abrir esta edição, que ganhou também as “Informações biográficas”, um breve comentário sobre a obra e uma “Bibliografia seleta”, além da “Apresentação”; 3) quanto às imagens, reproduzem-se agora em alta definição as 33 aquarelas do acervo do Cedae, mais 5 de coleções particulares, das quais apenas duas presentes na edição anterior.


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Distanciados no tempo em mais de 20 anos, os ensaios de ontem e de hoje detêm-se com a mesma pre­ cisão em examinar o que pareceu a todos a caracte­ rística básica dessas aquarelas de Alfredo Margarido: o es­trei­to diálogo delas com a obra de Fernando Pessoa (com destaque para Álvaro de Campos, 15 vezes ci­ tado/representado, o semi-heterônimo Bernardo Soares e Pes­soa-ortônimo, 11 vezes cada um), tão mais convincente porquanto realizado por um “pintor” que foi igualmen­te poeta e leitor arguto da produção pes­ soana, em ­prosa e verso. Dessa convivência de toda uma vida, segundo os ensaístas, nasceu o olhar irônico de Marga­rido, cheio de humor (não poucas vezes corrosivo) e disposto a brincar com os mitos que se criaram em torno de Fernando Pessoa e que ele próprio criou de si mesmo. Se a heteronímia é a questão central abordada pelas aquarelas – sugerida pelos tantos rostos sem corpo –, os ensaios apontam nelas a presença igualmente marcante do mar, do tema da infância e da predileção pela aguardente. Uma vez que aludem, ainda, a corres­pon­ dências de Pessoa com Mário de Sá-Carneiro, Antonio Botto, Violante de Cysneiros (pseudônimo de Armando Cortes-Rodrigues), dentre outros, essas aquarelas com­põem um amplo panorama crítico não só da vida e da obra de Fernando Pessoa, como também dos tempos buliçosos que marcaram a afirmação do Moder­ nismo português. Observação: Os textos que acompanham as aqua­ relas foram mantidos da forma como constam na edição dos textos pessoanos utilizada por Margarido, a não ser alguns casos de erro evidente, que foram corrigidos.

Informações biográficas Alfredo Augusto Margarido nasceu em Moimenta (Vi­nhais, Trás-os-Montes, aldeia situada na fronteira entre Portugal, Galiza e Leão), em 5 de fevereiro de 1928. Sua formação escolar liceal completou-se em Bra­gança e Viana do Castelo, passando em seguida a frequentar a Escola Superior de Belas Artes do Porto, onde chegou a fazer algumas exposições. Desde cedo filiado ao Partido Comunista Português, em 1948 é preso por “atividades subversivas” e, em 1949, novamente detido na cadeia do Porto, por pertencer ao Movi­ mento de Unidade Democrática (MUD) juvenil e fazer parte da Comissão Concelhia da candidatura à Presidência da República do general Norton de Melo. Em 1954, em Lisboa, casa-se com Manuela Carvalho Margarido, poeta são-tomense, também envolvida no combate anticolonialista. Em 1955, está em São Tomé e Príncipe e, em 1956-1957, em Angola, onde é respon­ sável pelo Fundo das Casas Econômicas. Ali participa ativamente em jornais e outros periódicos e na organização de eventos culturais, sempre denunciando o colonialismo. Por causa dessas atividades, é expulso de Angola em dezembro de 1957. Em 1958, retorna a Lisboa. Ali restabelece relações mi­ litantes com a Casa dos Estudantes do Império (CEI), encarregando-se da organização de antologias de criadores africanos, tanto de ficção como de poesia, com o propósito de assegurar a divulgação dos valores áfricos. Continua a publicar em jornais e em revistas artigos marcados pelas preocupações anticolonialistas e antiditatoriais, sendo o responsável pela seção cul­ tural do Diário Ilustrado. Ainda sob a mira da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (Pide), solicita asi-


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lo político na Embaixada do Brasil. Instala-se em 1962-1963 em Valença do Minho, com a família. Nessa al­ tura, já era autor de dois livros de poesia e três de ficção; em 1962, juntamente com Artur Portela Filho, publica O novo romance, que introduz em Portugal o nouveau roman. Em 1964, obtém uma bolsa de estudos da Fundação Calouste Gulbenkian e parte para Paris. Ali se forma em sociologia na École Pratique des Hautes Études (mais tarde École des Hautes Études en Sciences Sociales – Ehess), à qual veio a integrar-se, poste­rior­ mente, como investigador e professor. Ensina em diversas instituições francesas: Paris-Nanterre, Paris-Vincennes, Paris I Panthéon-Sorbonne, Amiens, Tours. Em 1974, depois do 25 de Abril, retorna a Portugal. Mas, logo desiludido com a revolução, regressa a Paris, consolidando sua situação profissional na Ehess e adquirindo nacionalidade francesa. Na década de 1980, na qualidade de professor vi­ sitante, dá cursos e palestras em várias instituições bra­sileiras: UFMG, USP, Unicamp, UFRJ, UL, PUC-SP e UFPB. Aos 20-21 de setembro de 1985, participa, no Insti­ tuto de Estudos da Linguagem da Unicamp, do colóquio “Fernando Pessoa: Eventos comemorativos do cinquentenário de morte”, proferindo palestra sobre os poemas pessoanos consagrados aos santos juninos (San­to Antônio, São João e São Pedro). Monta-se, então, pela primeira vez, a exposição “Uma leitura plás­ tica de Fernando Pessoa”. Em agosto e setembro de 1986, ministra, na qualidade de professor visitante, os “Seminários sobre literaturas africanas dos países de lín­gua oficial portuguesa”. Em 1988, por ocasião do IV Con­gresso Internacional de Estudos Pessoanos (São

Paulo e Campinas), suas aquarelas são novamente expostas no Instituto de Estudos da Linguagem. A partir dos anos 1990, passa a viver em Lisboa, na companhia de Isabel Castro Henriques. É convidado a lecionar na Universidade Autônoma de Lisboa e na Uni­versidade Lusófona de Tecnologias e Humani­da­ des. Em 1992, aposenta-se do cargo de professor na Ehess, de Paris. Durante esses anos, mantém uma tribuna de intervenção contra os vícios sociais, em alguns jornais – Jornal do Fundão, Diário do Ribatejo, Semaná­ rio –, instaurando um jornalismo formador de opinião. Morre em Lisboa, aos 12 de outubro de 2010. • Tanto os que conviveram mais de perto com Alfredo Margarido, como aqueles que sobre ele escreveram ou com ele polemizaram põem de lado aplausos ou objeções para reconhecer, unanimemente, o aspecto singularizante de seu perfil intelectual: foi homem de múltiplos interesses e a todos eles dedicou-se com paixão, sempre renovada por prodigiosa memória e por um saber de matiz enciclopédico. Perfecto Cuadrado sintetizou-o bem: poeta, ficcionista, ensaísta, sociólogo, antropólogo e historiador1, pintor nas horas vagas, a que se soma a atuação, desde cedo, como ativista político de esquerda, ferrenhamente empenhado na luta contra o colonialismo português na África2. 1 Obra plástica. Alfredo Margarido. Coord. de Perfecto E. Cuadrado. Vila Nova de Famalicão, Fundação Cupertino Miranda, 2007, p. 2. 2 Vale a pena consultar, a este respeito, sua coletânea de ensaios sobre a cultura e a literatura africanas – sendo Margarido um dos primeiros a reconhecer o valor da poesia autóctone das ex-colônias: Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua portuguesa. Lisboa, A Regra do Jogo, 1980. Na mesma linha dos trabalhos instigantes estão


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Na crítica literária – ofício que exerceu prodiga­ mente, com a isenção dos intimoratos –, seus estudos são no mínimo originais: quer na acuidade com que submetia a exame obras do momento (ver, por exemplo, a colaboração de numerosas recensões na revista portuguesa Colóquio-Letras), quer nas relações sempre muito ricas apontadas entre a literatura e as artes em geral (pintura, fotografia, cinema)3, ou, ainda, na de­ fesa de certos princípios estéticos como os que regeram o Surrealismo, o Futurismo, o Cubismo e o Nouveau Roman, à Alain Robbe-Grillet4 – princípios pelos quais o próprio Margarido se orientou em sua poesia5 ou em romances como A centopeia6, com sua evidente recusa à “subjetividade alienante” (tantas vezes recriminada pelo autor), sua ênfase no objeto e no descritivismo supostamente “impessoal”, responsáveis pelo lento desenrolar da ação. No caso específico das leituras de Fernando Pessoa, sobre o qual depositou o mesmo olhar à margem das mi(s)tificações festivas, uma das grandes preocupações

suas pesquisas em torno dos séculos XV-XVI em Portugal, visando a compreender “por dentro” o discurso oficial “imperialista” e o quanto ele, na opinião de Margarido, era contrariado pelos fatos. Cf. Isabel Castro Henriques & Alfredo Margarido, Plantas e conhecimentos do mundo nos séculos XV e XVI. Lisboa, Publicações Alfa – Biblioteca da Expansão Portuguesa, 1989. 3 Cf., por exemplo, “A complexa relação de Mário de Sá-Carneiro com o cubismo”, Colóquio-Artes, no 82 (set. 1989), pp. 32-41. 4 Alfredo Margarido & Artur Portela Filho, O novo romance. Lisboa, Presença, 1962. 5 Porque coesos e pressupondo um percurso de fácil visualização, consultem-se os quatro poemas (“O atalho”, “As canas”, “O trigo”, “Depois da ceifa”), que Margarido publicou na Colóquio-Letras, no 70 (nov. 1982), pp. 52-53. 6 Alfredo Margarido, A centopeia. Narrativa. Lisboa, Guimarães Editores, 1961.

de Margarido parece ter sido separar, pelo menos para fins de análise, o homem, o cidadão – com suas limi­ tações e posições políticas discutíveis7 –, do poeta, que ele­geu a fragmentação interior e a dispersão como “motivo” de uma das mais altas expressões poéticas do século XX. E é por causa desse mergulho atento nos desvãos da obra pessoana que Margarido vai disse­ minando ricas sugestões para repensá-la: insiste na absoluta necessidade de inserir Pessoa no contexto das relações familiares, desde a infância; dos momentos de transição e da política salazarista que o poeta acom­ panhou de perto; dos diálogos que manteve com os pares, e mesmo com os desafetos, sobre as novidades em artes. Segundo o crítico, amputar a obra desses laços é alimentar equívocos como os que dão ao fami­ gerado “messianismo” de Pessoa uma importância muito maior do que tem ou os que desconhecem o quanto o poeta esteve bem informado, por exemplo, sobre o capitalismo de sua época. Na linha desses raciocínios estimulantes, Margarido não hesita em afirmar que, na famosa querela do “segundo prêmio” concedido ao Fernando Pessoa de Mensagem pelo Serviço de Propaganda Nacional (SPN) salazarista, não deveria ter sido de estranhar que o primeiro prêmio coubesse a Romaria, do frade missionário franciscano Vasco Reis, cujo teor atendia não só às diretrizes do concurso, como à ideologia católica do regime político vigente8.

7 Discutíveis, mas “muito bem fundamentadas”, Margarido faz questão de frisar. Como não é o momento, aqui, de esmiuçar a questão, encaminhe-se o leitor para o excelente artigo que o crítico dedicou ao tema: “La pensée politique de Fernando Pessoa”, Bulletin des Études Portugaises, t. 32. S. Nouvelle, 1971, pp. 141-184. 8 Fernando Pessoa, Santo António, São João, São Pedro. Introdução de Alfredo Margarido. Lisboa, A Regra do Jogo, 1986, p. 13.


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Mesmo essas aquarelas, compostas com tanta leveza e como que ao acaso, trazem a marca da inventividade de Alfredo Margarido: ao constatar a indisposição de Fernando Pessoa contra o cubismo, tão entusias­tica­ men­te exaltado por Sá-Carneiro e por Santa-Rita Pintor, o crítico detecta o que ele classificou de “inquie­ tação plástica” da poesia pessoana, embora o poeta não tivesse maior informação pictórica, escultórica ou arquitetônica9. Segundo o próprio Margarido, as aquarelas visam justamente a “fazer aparecer a densidade cromática potencial da poesia do autor de ‘Ode marítima’”10.

Bibliografia seleta Poesia

Obra plástica 33 + 9 Leituras plásticas de Fernando Pessoa. Porto/Campinas, Fundação Eng. António de Almeida/Editora da Unicamp, 1988. Obra plástica. Alfredo Margarido. Vila Nova de Famalicão, Fun­ dação Cupertino de Miranda, 2007.

Traduções Herman Melville. Moby Dick. Trad. de Alfredo Margarido & Daniel Gonçalves. Lisboa, Estúdios Cor, 1962 (Grandes Clássicos). Reed. Relógio d’Água, 1990, 2005. James Joyce. Retrato do artista quando jovem. Pref. e trad. de Alfredo Margarido. Lisboa, Livros do Brasil [1960] (Dois mundos, 55). Reed. Lisboa, Difel, 1989. Nietzsche, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Lisboa, Guimarães Editores, 1964 (Filosofia e ensaio).

. A gaia ciência. Lisboa, Guimarães Editores, 1967 (Filosofia e ensaio).

Poemas com rosas. Lisboa, Edições Árvore, 1953. Poema para uma bailarina negra. Porto, Folhas de Poesia, 1958.

Sarraute, Nathalie. A era da suspeita: Ensaios sobre o romance. Lisboa, Guimarães Editores, 1963 (Ideia nova).

Ficção

Ensaios

No fundo deste canal. Lisboa, Arcádia, 1960 (Livros de bolso. Autores portugueses, 16-17). A centopeia. Narrativa. Lisboa, Guimarães Editores, 1961 (Col. Nova Vaga). As portas ausentes. Lisboa, Guimarães Editores, 1963 (Col. Nova Vaga).

Teixeira de Pascoaes. Lisboa, Arcádia, 1961 (A obra e o homem, 6). O novo romance. Alfredo Margarido & Artur Portela Filho. Lisboa, Presença, 1962 (Divulgação e ensaio, 6). Jean-Paul Sartre. Lisboa, Presença, 1965 (Biografia de bolso, 14). A introdução do marxismo em Portugal (1850-1930). Lisboa, Guimarães Editores, 1975 (Sociologia e Política, 1). Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua portuguesa. Lisboa, A Regra do Jogo, 1980 (Ensaios, 3).

9 Ver o texto citado na nota 3, acima. E ainda: “O cubismo apaixonado de Mário de Sá-Carneiro”, Colóquio-Letras, nos 117-118 (set.-dez. 1990), pp. 92-102 (especificamente, p. 98). 10 “Uma carta quase inédita de Violante de Cysneiros”, Colóquio-Letras, nos 117-118 (set.-dez. 1990), pp. 117-119 (nota de rodapé à p. 119).

Plantas e conhecimento do mundo nos séculos XV e XVI. Isabel Castro Henriques & Alfredo Margarido. Lisboa, Publicações Alfa, 1990 (Biblioteca da expansão portuguesa, 50). A lusofonia e os lusófonos: Novos mitos portugueses. Lisboa, Ed. Universitárias Lusófonas, 2000.


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Sobre Fernando Pessoa “Alberto Caeiro: Poeta polémico”. Jornal de letras e artes, no 162, A. 4. Lisboa, 4 de novembro de 1964, pp. 4, 14-15. “La pensée politique de Fernando Pessoa”. Bulletin des Études Portugaises, t. 32. S. Nouvelle, 1971, pp. 141-184. “Sobre as posições políticas de Fernando Pessoa”. Colóquio-Letras, no 23. Lisboa, janeiro de 1975, pp. 66-68. “A ‘Ode marítima’, a pirataria inglesa e o mar português”. JL: Jornal de letras, artes e ideias, no 111, A. 4. Lisboa, 21 de agosto de 1984, pp. 5-6. “Bernardo Soares: Escrever é existir”. Colóquio-Letras, no 88. Lisboa, novembro de 1985, pp. 78-87. “Inquietações plásticas de Bernardo Soares”. Estudos Portugueses e Africanos, no 8. Campinas, 1986, pp. 27-46. “Introdução a Fernando Pessoa”. Santo António, São João, São Pedro. Lisboa, A Regra do Jogo, 1986, pp. 9-90. “O imaginário plástico de Bernardo Soares (falso heterónimo de Fernando Pessoa)”. Colóquio-Artes, no 73. Lisboa, junho de 1987, pp. 24-35.

“Fernando Pessoa, James Joyce e o Egipto”. Um século de Pessoa. Encontro internacional do centenário de Fernando Pessoa. Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa, 5-7 de dezembro de 1988. Lisboa, Secretaria de Estado da Cultura, 1990, pp. 158-162. “As línguas da ‘Ode marítima’: A retórica e a falsa biografia”. Nova Renascença, vol. 8, nos 30-31. Porto, abril-setembro de 1988, pp. 161-173.

Sobre Alfredo Margarido “Alfredo Margarido, un parcours à contre-courant”. Latitudes. Cahiers lusophones, no 24. Paris, setembro de 2005, pp. 3-80. Alfredo Margarido (1928-2010). Um pensador livre e crítico. Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal, 2012 (Catálogos da Biblioteca Nacional de Portugal).


Ut poesis pictura? Carlos Felipe Moisés*

Os antigos acreditavam que as artes se assemelham e até se equivalem, já que todas brotam da mesma fonte, a “inspiração” ou o “entusiasmo” (estar com um deus dentro) que em dado momento ilumina a alma do artista. O fato de a iluminação se traduzir em formas e cores, desenhos e volumes; ou em palavras e vozes, melodia e canto; ou no próprio corpo, a esculpir no ar a estatuária que se multiplica, é algo que, para os antigos, corre por conta do acaso e das circunstâncias. Por isso não se fazia questão de isolar, cada qual em seu eito próprio, a pintura, a escultura, o canto, a dança, o teatro, a poesia. Por essa razão, Horácio não teve dificuldade em cunhar a verdade que vigorou por séculos: ut pictura poesis1, vale dizer, “tal como a pintura, assim é a poesia”, na esteira de um certo Simônides de Ceos, que antes afirmara: “pintura é poesia muda, poesia é pintura que fala”2. Os antigos, de fato, acreditavam na cor*

Poeta, crítico literário, tradutor, ex-professor de literatura portu­guesa da Universidade de São Paulo e de outras instituições de ensino superior. 1 Horácio, Arte poética, v. 361. Trad. port. e comentários de R. M. Rosado Fernandes. Edição bilíngue. Lisboa, Livraria Clássica Editora, s.d., p. 108. 2 Lessing, Laocoonte o Sobre los límites de la pintura y la poesia. Trad. arg. de Javier Merino. Buenos Aires, El Ateneo, 1946, pp. 26-27 passim.

respondência de todas as artes, e ninguém imagi­nava que tal verdade não duraria para sempre. Durou até o nosso século XVIII, quando a Razão iluminista determinou, e não só para as artes, o confinamento de cada ofício no seu domínio exclusivo, atribuindo ao dogma da especialização a condição de soberano absoluto do mundo. Certos versos de Homero descrevem o escudo de Aquiles, forjado pelo coxo Hefaisto; certa poderosa descrição de Vergílio reproduz o drama de Laocoonte e seus filhos, esmagados por enormes serpentes; certas estrofes de Camões retratam um irado Adamastor, a recriminar a cobiça e a ganância dos navegadores, embora também exaltem a sua audácia3. Mas o escudo do herói, o drama do pai que se sacrifica, em vão, pelos filhos, assim como a figura e a voz aterradoras do Gigante, antes de serem convertidos em palavras, eram

3 Homero, Ilíada. Trad. bras. de Otávio Mendes Cajado. São Paulo, Difusão Europeia do Livro, 1961, livro xviii, versos 478-608, pp. 283-286; Vergílio, Geórgicas-Eneida. Trad. bras. de Manuel Odorico Mendes. Rio de Janeiro, W.M. Jackson, 1949, livro ii, versos 195-227, pp. 130-131; Camões, Os lusíadas. Ed. comentada por Otoniel Mota. São Paulo, Melhoramentos, 1944, canto v, estrofes 37-60, pp. 178-182.


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todos fatos de realidade (reais ou imaginários, que diferença faz?), fatos que todos conheciam, que já tinham sido vistos por todos e ninguém tinha dificuldade em reconhecer nos versos dos seus poetas. Todos sabiam: a poesia é como a pintura. O século XVIII, racionalista e ilustrado, jacobino e galante, acabou com a festa. Desde então, os artistas sabem que, neste mundo reduzido a funções e finalidades específicas, nada mais há que se assemelhe ao escudo de Aquiles, à massa escultórica do Laocoonte ou ao vulto agigantado do Adamastor, isto é, nada que seja do efetivo conhecimento de todos e possa existir, ao mesmo tempo, na realidade aí fora e no espaço ocupado pelas palavras do poeta; pelas cores, as formas e os volumes do pintor e do escultor; pela melodia do músico; ou pelos movimentos, serenos ou agitados, do ator e do bailarino. A partir de então, o artista vive, de pleno direito, a única realidade que lhe cabe: a que ele for capaz de inventar, com mais ou menos inspiração e entusiasmo, com ou sem uma razão de ser, partilhada por todos e por ninguém. Faltou pouco para que se invertesse a equação antiga: Ut poesis pictura. Tal como a poesia, assim é a pintura? Daí podemos extrair o lema-guia que nos ajude a percorrer os meandros da notável coleção de aquarelas de Alfredo Margarido, dedicadas a Fernando Pessoa, a exemplo do que vem ocorrendo com uma quantidade de artistas plásticos, fascinados pela obra e pela personalidade do poeta dos heterônimos. Acresce que Margarido é também poeta, escritor, crítico de artes e de literatura, de modo que, no seu caso, o intercâmbio entre as linguagens – modos de expressão e modos de interpretação – talvez se multiplique, em vários caminhos que se cruzam.

Digamos, de início, que o artista não esconde a condição subalterna das suas aquarelas, fazendo questão de sublinhar, em todas elas, o motivo pessoano tomado por ele como ponto de partida. Em quase todas, está presente o inconfundível rosto-retrato do poeta: nariz adunco de “judeu português”, bigodes bem aparados, óculos de aros redondos e finos. Quando não, as constantes referências literárias, inseridas nos quadros, mas traçadas a lápis comum, como se fosse em off, não deixam margem a dúvida quanto ao motivo em causa. Mais adiante examinaremos de perto alguns exemplos do consórcio que o artista deliberadamente estabelece entre a visualidade e as palavras. O observador verá aí uma clara demonstração de humildade: a obra pictórica a se oferecer como comentário à parte, como “ilustração” de outra realidade, poé­ tica e biográfica, que a antecede e lhe determina os rumos. Mas tal condição não implica subserviência e não impede que as aquarelas ganhem vida própria, lançando-se para além do comentário ilustrativo. Comecemos pelos motivos, atrás referidos, cujo recenseamento pode denunciar a espécie de interesse que o artista dedica ao poeta. Acima de todos, destaca-se a heteronímia: pelo menos sete aquarelas lidam explicitamente com o tópico da multiplicação da personalidade, conceito eminentemente abstrato, de largo alcance (os estudiosos do poeta que o digam), mas, ao que parece, de limitado apelo visual. Margarido opta por representá-lo, quase sempre, pela multiplicação daquele rosto-retrato facilmente reconhecido. Logo abaixo da heteronímia, com um total de cinco aquarelas cada, temos o motivo do mar, das viagens e da vida marítima, motivo óbvio na vida e na obra do poeta, ao lado de outro, menos óbvio, a figura e a personalidade


ut poesis pictura?

de Mário de Sá-Carneiro, claro índice da importância que Margarido atribui, na constelação pessoana, ao infortunado companheiro dos tempos de Orpheu. Por fim, vários outros motivos – a julgar pelas quantidades, menos relevantes – que não ensejaram mais do que duas aquarelas, como a bebida, a infância, o dinheiro, o trabalho etc., além de uns poucos tópicos avulsos. O recenseamento sugere que o desenhista não partiu de um “plano”, ou de um conjunto organizado de motivos, que por si só seria suficiente para desenhar uma “interpretação” coesa de Fernando Pessoa. Margarido procedeu aleatoriamente, guiado pela livre fantasia, pela memória, visual e verbal, e pela sensibilidade de momento. Bem por isso, a reiteração daqueles três motivos mostra que aí se concentram os aspectos da per-

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sonalidade pessoana que aparentam ser, para o artista, os mais significativos: a consciência da pluralidade, traduzida na heteronímia; o mar como símbolo de largo espectro, mito ancestral; e o difícil relacionamento com o Outro, representado, no caso, por Sá-Carneiro. Não temos dificuldade em reconhecer a atenção especial conferida ao motivo da heteronímia em aqua­ relas como as reproduzidas abaixo. Ambas trazem, ainda, o reforço de frases esclarecedoras, anotadas a lápis no canto inferior esquerdo, ambas assinadas por Bernardo Soares: “Creio em mim várias personalidades”, “Cada um de nós é vários”. Além de reforçarem o que sem dificuldade detectamos nas imagens, as frases acrescentam a conotação forte da empatia. Devemos entender que o pintor adota


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o ponto de vista do poeta e trata de dar forma visível ao que, na origem, seria tão somente ruminação verbal. O observador é levado a crer que não é o Pessoa visto por Margarido, mas o que brota, com naturalidade, do olhar “literário” do próprio poeta. No mesmo com­ passo, outra aquarela, acompanhada de mais uma frase de Bernardo Soares, é igualmente reveladora no que se refere às conotações interpretativas, benignas, introduzidas pelo artista, que – não nos esqueçamos – é também poeta e crítico literário.

O que temos aí é, mais uma vez, a proliferação do rosto-retrato sobejamente conhecido, subordinada a um arranjo simétrico e uniforme, em estilo “galeria”, com sua ligeira variação cromática e o progressivo espessamento. Isso contraria o que todos sabemos do

processo heteronímico: dinâmico, irregular, nada uniforme. Mas, antes que o crítico se regozije com a des­ coberta, convém prestar atenção à referência literá­ria, agora no canto inferior direito: “Tenho grandes estagnações”. A (falsa) incongruência se explica e o desenho ganha conotações mais ricas. Margarido não está interessado em mais uma ideia relativa ao processo hete­ ronímico, mas tão só no eventual sentimento de “estagna­ção” que, a julgar pela declaração de Bernardo Soares, pode ter ocorrido mais de uma vez ao poeta. Assim, o que no processo houver de estagnado (regular, uniforme, simétrico, repetitivo) deixa de ser ruminação verbal e se metamorfoseia em representação visual, incorporado pelo artista à técnica empregada nesta sua irisada aquarela. Por fim, para encerrar esta incursão pelas aquarelas atinentes ao motivo da heteronímia, vamos à mais intrigante de todas, aquela que, de início (paradoxo tipicamente pessoano), talvez não vinculássemos a esse motivo, já que não temos aí a convencional multiplicação do rosto-retrato. O que temos é uma só figura, de corpo inteiro, que parece ser a de um religioso, quem sabe um santo, mas, agora sim, com a cara do poeta. Pessoa canonizado? Para o observador, é notório o travo de humor, assim como a possível heresia, mais a sensação de estranheza e deslocamento. A “explicação” quem a oferece é o próprio artista, por meio de palavras, desta vez, no verso do desenho, ou seja, não incorporadas diretamente à composição. E não são frases extraídas de Bernardo Soares ou de outro heterônimo; são palavras de Alfredo Margarido, crítico literário de senso apuradíssimo. Vejamos, primeiro, a aquarela propriamente dita.


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ples truque literário, é um modo de ser. Nenhum crí­ tico-intérprete o diria com mais lucidez do que a notável aquarela de Alfredo Margarido. Mais do que isso, ao associar Fernando Pessoa ao poverello de Assis, quem está a heteronimizar, já agora, é o pintor, em sintonia com o modo de ser do poeta. Notável é também a variação em torno da borbo­leta, ou do “lepidóptero”, um dos vocábulos “perjurativos” (segundo Almada Negreiros4, criação de Sá-Carneiro) que se tornaram moeda corrente entre os de Orpheu. “Le­pidóptero” designa o Outro, o insensível, quase sem­ pre o homem medíocre, frívolo, o burguês aco­mo­dado. Mas, como lembra Almada, o poeta de Indícios de oiro foi o primeiro a dar a si mesmo como exemplo vivo de lepidóptero. Por essa razão, depois de fazer a sua borbo­ leta flanar aqui e ali, Margarido houve por bem aproveitar a queixa de Sá-Carneiro (carta a ­Pessoa: “Ora você sempre está um lepidóptero”, frase inserida na aquarela abaixo), para lepidopterizar Fernando Pessoa. No verso, diz a inscrição: “Transmutação / provocada pela viagem: / Fernando Pessoa heteronimiza tudo, / até o Pobre S. Francisco?”. Com isso, ficamos sabendo que é de fato um santo, e o desenho ganha um possível título, “Transmutação”, que é uma explicação: o poeta transmudado em santo, e ao mesmo tempo São Francisco transmudado em Fernando Pessoa. O mais significativo, porém, vem a seguir, com o precioso, embora nada preciosista, “heteronimiza”. A invenção das máscaras Caeiro, Reis, Campos, Ele-mesmo, Soares e tantas outras é só uma das formas de manifestação do processo heteronímico; a outra, mais decisiva, é a ideia da heteronímia como verdade ontológica (“Fernando Pessoa heteronimiza tudo”): não é um conjunto está­ tico de individualidades bem definidas, não é um sim-

4 José de Almada Negreiros, Orpheu: 1915-1965. Lisboa, Ática, 1965, pp. 30-31.


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Notável, ainda, é uma das aquarelas dedicadas ao motivo do mar, que nos coloca face a face com a indagação proposta no título destes apontamentos: tal co­ mo a poesia, assim é a pintura? O modo peculiar como o motivo é aqui tratado suscita uma análise atenta das complexas relações entre imagem e palavra, que talvez nos leve um pouco além do truísmo segundo o qual uma só daquelas vale tanto quanto mil destas – “ver­ dade” corrente, nesta nossa Civilização da Imagem. O observador familiarizado com a vida e a obra de Fernando Pessoa reconhece logo um dos pertences pes­ soais do poeta, quem sabe o mais emblemático, a sua máquina de escrever, imagem mais de uma vez re­pro­ duzida nas fotobiografias a ele consagradas5. Parece ter sido essa a fonte de inspiração de Margarido, que aí foi encontrar o motivo para mais uma aquarela. O mesmo observador, ao primeiro relance, dirá: ah, uma velha typewriter, marca Royal, há mais de um século ultrapas­ sada, mas que, graças à imaginação do artista, per­mi­te desenhar com traço contínuo, em cores, e não ape­nas com letras, ponto a ponto, a exemplo dos calligrammes de Apollinaire. As mãos em repouso, um pouco afastadas do teclado, quase deixam ver o poeta a con­templar a obra que acaba de realizar, na folha já toda preenchida, prestes a se desprender do rolo. A partir daí, a imaginação corre solta, aparentemente sem limi­tes. Antes de prosseguir, detenhamos a atenção nas imagens6. 5 Maria José de Lencastre, Fernando Pessoa: Uma fotobiografia. 3a ed. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984; “Fernando Pessoa: Coração de ninguém”. Catálogo da exposição organizada por Teresa Rita Lopes. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1985; “Fotobiografias século XX: Fernando Pessoa”. Texto de Richard Zenith. Lisboa, Temas e Debates, 2008. 6 Ao lado, a máquina de escrever que pertenceu ao poeta, reproduzida de Fernando Pessoa: Uma fotobiografia, ed. cit., p. 264.

Margarido, na verdade, realizou um esplêndido trabalho de restauração: por fora, a fachada da velha Ro­yal, reconduzida ao que foi na origem, com seu va-


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lor histórico ciosamente preservado; por dentro, uma poderosa e ultramoderna ferramenta de edição gráfica. (A folha de papel é só metáfora, pequeno truque do restaurador.) O resultado, a imagem que aí temos, é pura virtualidade, pronta a ser postada na internet, em alguma das muitas redes sociais – diga-se de pas­ sagem, clara protoinvenção pessoana: a heteronímia ao alcance de todos, com pouco esforço. Já no instagram, talvez não. É um instantâneo, sem dúvida, mas não é uma foto. Com sua fantasia libérrima, o aqua­ relista transporta Fernando Pessoa para o século XXI, este nosso tempo fantástico, onde ambos – artista e poeta – parecem sentir-se perfeitamente à vontade. Mais do que isso, a imagem nos diz que, flagrado na intimidade do seu trabalho, Pessoa se revela mais pintor ou desenhista do que poeta. Uma imagem não diz tanto quanto mil palavras? Pois é só levar em conta exa­tamente as palavras que Margarido inscreve no can­to baixo, à direita (“Quilhas partidas, navios ao fundo, sangue nos mares!”, e as iniciais “A. de C.”), para que o exercício de imaginação até aqui desenvolvido se desfaça. Só aí o observador começará a ver o que a aquarela diz. Foi nessa mesma Royal que Fernando Pessoa-Álva­ ro de Campos escreveu a sua portentosa “Ode marí­ tima”, de onde provêm as palavras inscritas, a lápis comum, na aquarela, e é para o poema que o artista pre­tende chamar a atenção do observador, embora nos­so olhar (ele o sabe) seja fortemente atraído pela typewriter antiga. O verdadeiro motivo da aquarela é o mar, e não a máquina de escrever, não obstante esta se exiba como má­quina de desenhar. Difícil resistir ao poder de comoção da “Ode marí­ tima”. Enquanto percorremos os seus 904 versos (se é

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que a gritaria ali contida pode ser mensurada em linhas, uma a uma), “vamos olhando de perto os mastros, afilando-se lá pro alto, / roçando pelas cordas, descendo as escadas incômodas, / cheirando a untada mistura metálica e marítima de tudo aquilo”7, assim como os antigos viam, palpavam, cheiravam os bra­­ ços fortes de Aquiles a pelejar com Heitor, enquanto de­voravam, com os olhos, os versos de Homero. Durante a leitura – minutos, horas, dias –, impossível saber on­de termina a realidade, onde começa a ficção. O tempo entra em colapso e, daí por diante, a reali­ dade já não será a mesma, a sensação se prolongará in­de­finida­mente, e não nos daremos conta de que pas­ samos a ser guiados pela imaginação. Tal é a ra­zão, aliás, pela qual Platão não quis saber de poetas na sua República8. Mas Alfredo Margarido houve por bem subverter o confortável acordo que apreciamos manter com o par realidade-fantasia. Quilhas, navios, sangue, mares? Na­da disso é realidade verdadeira! Só o que temos aí é uma prosaica máquina de escrever. Bem, e as ma­qui­ nações de um poeta. Apesar do alerta, continuamos a ver (a palpar, a cheirar) a caveira e os ossos cruzados do pirata, os mastros, o navio, os mares... Então, como ficamos? Ficamos assim: uma só imagem vale mais do que mil palavras, é verdade, desde que pensemos só na banalidade da conversação ordinária, ainda que esta insista, por vezes, na forma escrita, e se espraie da comunicação vulgar à explanação pseudocientífica: ta­ 7 Fernando Pessoa, Poemas de Álvaro de Campos. Edição de Cleonice B­rardinelli. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1992, p. 50. 8 Cf. Poesia & utopia: Sobre a função social da poesia e do poeta, de Carlos Felipe Moisés. São Paulo, Escrituras, 2007, pp. 11-38 passim.


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garelice inútil, palavras jogadas fora. Mil delas, de fato, não chegam perto do que uma só imagem seria capaz. Mas o quadro muda de figura quando estamos diante das palavras do poeta. Então, “para além da sua signi­ ficação, boa para os intercâmbios da vida coletiva, as pala­vras têm outra virtude, propriamente mágica, que lhes permite captar a realidade que escapa à inteli­ gência”9. Aí não haverá imagem capaz de dizer o que o poeta verteu em palavras. Todas as imagens do mundo (o instagram que o diga) serão insuficientes. Por isso Pessoa não hesita: “Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar”10. O pintor Alfredo Margarido, de bom grado, o endossaria. Com isso chegamos a um ponto decisivo, que re­ meterá ao desfecho. Poderíamos prosseguir por pá­ ginas e páginas, acrescentando outros exemplos tão esti­mulan­tes quanto os até aqui examinados, mas isso seria roubar do leitor um tempo precioso, a ser empregado com mais proveito na contemplação das aqua­ relas do que na deambulação algo errática destes comentários para­le­los. Antes, porém, um aspecto parcial me­rece destaque. Além da aquarela motivada pela máquina de es­ crever, temos outras quatro inspiradas em imagens largamente conhecidas: a foto famosa de “Fernando Pessoa em flagrante delitro”, como diz a dedicatória, no verso, à namorada Ofélia de Queirós; o retrato a óleo, pintado por Almada Negreiros; a foto do menino Nando, montado no seu triciclo; e a do transatlântico Her9 Albert Béguin, L’âme romantique et le rêve: essai sur le romantisme allemand et la poésie française. Paris, José Corti, 1946, p. 483. 10 Fernando Pessoa, Livro do desassossego, vol. II, por Vicente Guedes & Bernardo Soares. Edição organizada por Teresa Sobral Cunha. Campinas, Editora da Unicamp, 1994, p. 279.

zog, no qual o menino embarcou, com a mãe, rumo à África do Sul, ao encontro do padrasto.

O fato é revelador de uma estratégia, por assim dizer, epistemológica. No intuito de apreender e dar representação visual à “realidade-Pessoa”, Margarido não se atém, apenas, à concretude da biografia e à materia­ lidade por vezes imaterial da obra multifacetada, recorrendo também a objetos, lugares, fotos e outras imagens, como partes integrantes, igualmente válidas, dessa mesma realidade. O artista não teme a comparação entre a sua realidade e a outra, ou entre a sua interpretação e a interpretação alheia. Examinemos, a título de exemplo, o par Margarido-Almada11. No canto direito, baixo, da aquarela lemos: “A carta”. E temos de fato uma carta, enorme, a se confundir com o tampo da mesa, na qual distinguimos o nome do remetente, “Mário de Sá-Carneiro”, e a data: “Paris, 26 de Abril de 1916”. O anúncio do suicídio? O fim da revista Orpheu? Isso “explica” as diferenças: o fun­do e o piso despojados, a perspectiva fora de prumo, o traje em desalinho, a falta do chapéu etc., além da postura recuada, como que a afastar para longe as notícias infaustas, que se agigantam. 11 O retrato a óleo, pintado por Almada Negreiros (página se­guinte), reproduz o que temos em “Fotobiografias século XX: Fernando Pessoa”, ed. cit., p. 180.


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