Poem(a)s
universidade estadual de campinas Reitor Fernando Ferreira Costa Coordenador Geral da Universidade Edgar Salvadori De Decca
Conselho Editorial Presidente Paulo Franchetti Alcir Pécora – Christiano Lyra Filho José A. R. Gontijo – José Roberto Zan Marcelo Knobel – Marco Antonio Zago Sedi Hirano – Silvia Hunold Lara
e. e. cummings
Poem(a)s traduções de
A ugusto
de
C ampos
edição revista
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.
ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação C912p
Cummings, E. E. (Edward Estlin), 1894-1962. Poem(a)s / E. E. Cummings; tradutor: Augusto de Campos. – 3a ed. revista. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2012. 1. Poesia americana. 2. Literatura americana. I . Campos, Augusto de. II . Título.
cdd 811.52 isbn 978-85-268-0970-3 810 Índices para catálogo sistemático:
1. Poesia americana 2. Literatura americana
811.52 810
From COMPLETE POEMS: 1904-1962 by E. E. Cummings, edited by George J. Firmage. Copyright 1923, 1925, 1926, 1931, 1935, 1938, 1939, 1940, 1944, 1945, 1946, 1947, 1948, 1949, 1950, 1951, 1952, 1953, 1954, © 1955, 1956, 1957, 1958, 1959, 1960, 1961, 1962, 1963, 1966, 1967, 1968, 1972, 1973, 1974, 1975, 1976, 1977, 1978, 1979, 1980, 1981, 1982, 1983, 1984, 1985, 1986, 1987, 1988, 1989, 1990, 1991 by the Trustees for the E. E. Cummings Trust. Copyright © 1973, 1976, 1978, 1979, 1981, 1983, 1985, 1991 by George James Firmage. Used by permission of Liveright Publishing Corporation.
Copyright © by Augusto de Campos Copyright © 2012 by Editora da Unicamp 1a edição, Francisco Alves Editora, 1999 2a edição, Editora da Unicamp, 2011
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sumário
e. e. cummings, sempre jovem ...................................................................... 13 traduções acrescidas a esta edição ................................................. 21 e. e. cummings: olho e fôlego .................................................................... 23 não, obrigado .............................................................................................................. 27 30 anos, 40 poemas .................................................................................................... 33 intradução de cummings ................................................................................ 37
poem(a)s foreword to is 5, 1926 ................................................................................................... 48 introdução a são 5, 1926 ........................................................................................... 49 de tulips and chimneys ( 1923 ) 1
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into the strenuous briefness . ........................................................................ 50 na estrênua brevidade ........................................................................................ 51 the Cambridge ladies who live in furnished souls ....................... 52 as damas de Cambridge que moram em almas mobiliadas ..... 53 de &(AND) ( 1925 )
3
4
i will be ....................................................................................................................... 54 eu estarei .................................................................................................................... 55 i like my body . ........................................................................................................ 56 eu gosto do meu corpo ..................................................................................... 57
de XLI POEMS (1925) the sky was . ................................................................................................................ 58 5 o céu era . .................................................................................................................. 59 Buffalo Bill’s ........................................................................................................... 60 6 Buffalo Bill é .......................................................................................................... 61 de IS 5 (1926) 7
POEM,OR BEAUTY HURTS MR. VINAL . ............................................ 62 POEMA,OU A BELEZA FERE O SR. VINAL ................................ 63
ITEM . ............................................................................................................................ 68 8 NOTA ............................................................................................................................ 69 9
oDE . ............................................................................................................................... 70 oDE . ............................................................................................................................... 71
MEMORABILIA ..................................................................................................... 72 10 MEMORABILIA ................................................................................................... 73 11
“next to of course god america i .............................................................. 76 “depois de é claro deus américa eu . ....................................................... 77
12
since feeling is first ............................................................................................ 78 já que sentir vem antes .................................................................................... 79 de W(VIVA) (1931)
13
twiis -Light bird . ................................................................................................. 80 crep úscu -Luz ave ................................................................................................ 81 14
it)It will it . ................................................................................................................ 82 ela)Ela virá ela . ..................................................................................................... 83
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somewhere i have never travelled,gladly beyond .......................... 86 nalgum lugar em que eu nunca estive,alegremente além ......... 87 de NO THANKS (1935)
16
o pr ................................................................................................................................. 88 ó pr ................................................................................................................................. 89
17
r-p-o-p-h-e-s-s-a-g-r .......................................................................................... 90 o-h-o-t-n-a-f-g-a . .................................................................................................. 91
18
go(perpe)go .............................................................................................................. 92 vai(perpé)vai ............................................................................................................ 93
19
floatfloafloflf ........................................................................................................... 94 flutuflutfluflf ........................................................................................................... 95
20
birds( ............................................................................................................................. 96 aves( . ............................................................................................................................. 97
21
brIght ............................................................................................................................ 98 brIlha . ........................................................................................................................... 99 de NEW POEMS (1938)
22
un ..................................................................................................................................... 1 00 a ........................................................................................................................................ 1 01
23
so little he is . .......................................................................................................... 1 02 tão pequeno ele é . ................................................................................................ 1 03
24
my specialty is living said ............................................................................. 1 04 minha especialidade é viver — era a legenda . ................................ 1 05 de 50 POEMS (1940)
25
!blac . ............................................................................................................................. 1 06 !pret . .............................................................................................................................. 1 07
de 1 X 1 (ONE TIMES ONE) (1944) 26
nonsun blob a . ........................................................................................................ 1 08 nãosol bolha um .................................................................................................... 1 09
27
a politician is an arse upon . ........................................................................ 1 10 um político é um ânus no ............................................................................... 1 11
28
plato told .................................................................................................................... 1 12 platão lhe . .................................................................................................................. 1 13
29
pity this busy monster,manunkind, ........................................................... 1 14 piedade desse monstro em ação,humanimaldade? ......................... 1 15
what if a much of a which of a wind ...................................................... 1 16 30 que tal se um nem de um quem de um vento ................................... 1 17 a- ...................................................................................................................................... 1 18 31 à ........................................................................................................................................ 1 19 how ................................................................................................................................. 1 20 32 tão . .................................................................................................................................. 1 21 de XAIPE (1950) hush) .............................................................................................................................. 1 22 33 psiu) ............................................................................................................................... 1 23 chas sing does(who ............................................................................................. 1 24 34 chas sing não ca(e . .............................................................................................. 1 25 when serpents bargain for the right to squirm ............................... 1 26 35 quando as serpentes paguem para ser serpentes . ........................... 1 27 pieces(in darker . ................................................................................................... 1 28 36 cacos(no mais escuro ......................................................................................... 1 29 why must itself up every of a park . ......................................................... 1 30 37 por que haverá de em cada de um parque ........................................... 1 31 i’m ................................................................................................................................... 1 32 38 eu ..................................................................................................................................... 1 33
(fea . ................................................................................................................................ 1 34 39 (plu ................................................................................................................................. 1 35 a like a ......................................................................................................................... 1 36 40 uma como uma . ...................................................................................................... 1 37 (im)c-a-t(mo ............................................................................................................. 1 38 41 (i)g-a-t-o(m . ............................................................................................................. 1 39 de 95 POEMS (1958) l(a .................................................................................................................................... 1 40 42 so . .................................................................................................................................... 1 41 now air is air and thing is thing:no bliss . ......................................... 1 42 43 agora ar é ar e coisa é coisa:traço ........................................................... 1 43 un(bee)mo .................................................................................................................. 1 44 44 i(abe)mó ...................................................................................................................... 1 45 off a pane)the .......................................................................................................... 1 46 45 na vidraça)a .............................................................................................................. 1 47 joys faces friends . ................................................................................................ 1 48 46 alegrias faces amigos . ....................................................................................... 1 49 why from this her and him ............................................................................. 1 50 47 por que deste ela e ele . .................................................................................... 1 51 dim .................................................................................................................................. 1 52 48 dim .................................................................................................................................. 1 53 ev erythingex Cept: ............................................................................................. 1 54 49 tu doex Ceto: ........................................................................................................... 1 55 what Got him was Noth . .................................................................................. 1 56 50 o que o Levou não foi Nad ............................................................................ 1 57 a he as o ..................................................................................................................... 1 58 51 um o tão v . ................................................................................................................ 1 59 a gr ................................................................................................................................. 1 60 52 um bê ............................................................................................................................ 1 61
f ......................................................................................................................................... 1 62 53 t ......................................................................................................................................... 1 63 why . ................................................................................................................................ 1 64 54 por que ......................................................................................................................... 1 65 n ........................................................................................................................................ 1 66 55 v ........................................................................................................................................ 1 67 you no ........................................................................................................................... 1 68 56 você re . ........................................................................................................................ 1 69 old age sticks . ......................................................................................................... 1 70 57 o velho prega ........................................................................................................... 1 71 “but why should” ................................................................................................. 1 72 58 “mas por que” ......................................................................................................... 1 73 out of the lie of no .............................................................................................. 1 74 59 da mentira do não ................................................................................................ 1 75 the(oo)is ...................................................................................................................... 1 76 60 d(oo)is .......................................................................................................................... 1 77 de 73 POEMS (1963) at just 5 a . ................................................................................................................. 1 78 61 às 5 da man . ............................................................................................................. 1 79 e ........................................................................................................................................ 1 80 62 e ........................................................................................................................................ 1 81 n ........................................................................................................................................ 1 82 63 m ...................................................................................................................................... 1 83 insu nli gh t .............................................................................................................. 1 84 64 empl eno so l ........................................................................................................... 1 85 a grin without ......................................................................................................... 1 86 65 um riso sem .............................................................................................................. 1 87 “nothing” the unjust man complained .................................................. 1 88 66 “nada” o homem injusto lamentou ........................................................... 1 89
n ........................................................................................................................................ 1 90 67 n ........................................................................................................................................ 1 91 t,h;r:u;s,h;e:s .......................................................................................................... 1 92 68 o,s;t:o;r,d;o:s ........................................................................................................... 1 93 mi(dreamlike)st ...................................................................................................... 1 94 69 né(comoemsonho)voa ........................................................................................ 1 95 & sun & . ..................................................................................................................... 1 96 70 & sol & ........................................................................................................................ 1 97 who is this ................................................................................................................. 1 98 71 quem é esta ............................................................................................................... 1 99 one .................................................................................................................................. 2 00 72 o ........................................................................................................................................ 2 01 D-re-A-mi-N-gl-Y . ................................................................................................ 2 02 73 S-on-H-am-E-nt-E ................................................................................................ 2 03 de ETC thing no is(of ........................................................................................................... 2 04 74 coisa é nenhuma(de . ........................................................................................... 2 05
APÊNDICE ESTELA PARA E. E. CUMMINGS ............................................................................ 2 09 CUMMINGS ENTRE MÚSICOS ................................................................................. 2 17 E. E. CUMMINGS: BIOFLASHES ............................................................................. 2 25 BIBLIOGRAFIA DE E. E. CUMMINGS (POESIA) . ......................................... 2 29 DOCUMENTOS E IMAGENS ....................................................................................... 2 31
Memorabilia — Correspondência relativa à primeira edição de E. E. Cummings — 10 poemas (1960) ............................................................. 2 33 Capa de Alexandre Wollner e Geraldo de Barros para a primeira edição das traduções de Cummings por Augusto de Campos .......... 2 44
Notícia da morte de Cummings ( 1962 ) . ........................................................... 2 45 4 Patchin Place — Residência de Cummings em Nova York (foto: Bernardo Voronow, 2007 ) ............................................................................ 2 46 Placas de homenagem ao poeta em 4 Patchin Place (foto: Carlos Adriano, 2007 ) .................................................................................... 2 47
e . e . cummings , sempre jovem *
passaram-se mais de 60 anos
desde que o (então respeitável) crítico R. P. Blackmur sentenciou que a arte do poeta E. E. Cummings, considerada a sério, não era mais que uma espécie de “baby-talk”. Hoje ninguém mais sabe quem é Mr. Blackmur. Mas Cummings está entre os grandes da poesia moderna norte-americana. Para os poetas — os mais exigentes, pelo menos — isso nunca foi novidade. Marianne Moore: “E. E. Cummings é um concentrado de significações titânicas, ‘um caráter positivo’; e somente a inventividade poderia tentar sugerir em uma palavra o aspecto ‘heroico’ de suas pinturas, seus poemas e suas resistências. Ele não comete erros estéticos”. William Carlos Williams: “Penso em Cummings como se fosse Robinson Crusoé no momento em que viu a impressão do pé desnudo de um homem na areia. Isso também implicava uma nova linguagem — e um remanejamento da consciência”. Ezra Pound: “Cummings? Sim. Sempre o mais vivo de todos nós”. A área principal de atrito de Cummings com a crítica se localiza no seu uso não ortodoxo da tipografia, as suas famosas ou famige radas fragmentações de palavras. Mas tais desconstruções gráficas são só aparentemente desorganizadas, e, no fundo, são construtivistas ou reconstrutivistas, pois têm finalidades ao mesmo tempo se mânticas (buscando, por meio de associações icônicas, reconstituir a experiência sensorial ou imaginativa e multiplicar os níveis de leitura) e estruturais (relativas à divisão estrófica do poema). Nesse sentido, não constituem um fato isolado na poética de Cummings; Publicado como introdução à primeira edição de Poem(a)s (Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1999).
unem-se a outros tantos recursos formais, dentre os quais sobres saem: a cunhagem de vocábulos, em grande parte por processos de afixação; as trocas de funções gramaticais, consistentes sobretudo na conversão de verbos, pronomes, adjetivos, advérbios e con junções em substantivos; e o deslocamento sintático, ou aquilo que D. J. Grossman (o mais conhecido tradutor francês de Cummings) denomina de “interversão”, isto é, a alteração da ordem das pa lavras, tal como a concebe a estrutura das proposições da lógica discursiva. O que é fundamental para compreender a poesia de Cummings é que as suas transgressões tipográficas e sintáticas não são meros fo gos de palha ou gratuidades. O que ele pretende é rejuvenescer a linguagem e explorar, com maior flexibilidade do que permitem as estruturas entorpecidas dos sistemas convencionais, o universo com plexo da percepção e da sensibilidade. É por isso que ele introjeta num idioma moderno ocidental, como o inglês, procedimentos de rivados do ideograma chinês (a figuralidade de origem pictográfica e o pensamento por analogia) e de línguas clássicas como o grego ou o latim, tratando o seu idioma como se fosse uma língua flexionada — como já observou Norman Friedman, no seu estudo E. E. Cummings: The Art of His Poetry — de forma a liberar a ordem das palavras. Igual libertação é concedida às áreas mais humildes da linguagem, como os conectivos ou as partículas de transição. Lionel Trilling, um dos raros críticos que souberam apreciar o poeta desde a primeira hora, escreveu a propósito: “Ele foi capaz de encontrar mais e mais vida em mais e mais palavras. Aquelas partes da linguagem que todos considerávamos apenas ‘modificadoras’, ‘relativas’ ou ‘dependentes’ aprenderam com ele a ter uma existência plena e livre”. É esse o caso de prefixos como “un-” ou “non-”, ou sufixos como “-less”, “-ness” ou “-ly”, que se unem a outros vocábulos para criar novas palavras, por exemplo: “nonsun” (nãosol) ou “sunly” (solmente) ou “dreamlessnesses” (semsonhidades). E de partículas como “a”, “un”, “self, “much”, “when”, “if’, “am”, convertidas em substantivos. 14 |
Poem(a)s — e. e. cummings
Esse anárquico idioleto de Cummings não é, porém, nem caó tico nem egocêntrico. Obedece antes a uma ética que privilegia a criatividade individual contra o conservadorismo da maioria (“mostpeople”), o amor e a solidariedade contra a cobiça e a guerra, a poesia e a emoção contra o negócio e a razão condicionada pela obediência cega aos valores convencionais. Daí a simpatia com que Cummings vê os amantes, as crianças, as minorias discriminadas ou excluídas, como os bêbados e as prostitutas, e o correlato desprezo com que trata os negociantes e os políticos, os fascistas e os comunistas (igualmente escarnecidos por ele) e os “democratas” e “patriotas” belicistas e preconceituosos. Sua poesia apresenta algumas linhas temáticas, muitas vezes re correntes. Há uma vertente descritiva (motivos principais: a lua, a estrela, a folha e o floco de neve, a primavera e as estações, o cre púsculo; pequenos animais como o gato ou o esquilo, e insetos como o gafanhoto, a abelha, a mosca). Uma vertente amorosa, altamente significativa, tanto na pauta físico-erótica da primeira fase como na mais espiritualizada dos poemas da maturidade. Entre essas duas linhas se situam os poemas que retratam personagens em breves anedotas poéticas, podendo tanto homenagear pessoas reais como Picasso, o dançarino Paul Draper (no 19) ou o comediante Jimmy Savo (no 23), como consagrar criaturas anônimas como prostitutas ou vagabundos, uma camponesa ou um catador de papéis. Na antítese dos poemas amorosos ou encomiásticos, situa-se uma larga porção da poesia de Cummings: os poemas satíricos, que abrangem os textos antibélicos como “plato told” (no 28) e “why must itself up every of a park” (no 37), os que ridicularizam os valores convencionais e suas figuras prototípicas como o de no 2, “the Cambridge ladies who live in furnished souls” (as damas de Cambridge que moram em almas mobiliadas), ou “the dollarbringing virgins” (as virgens endolaradas) — isto é, as turistas americanas em Veneza (no 10, “MEMORABILIA”) — e invectivam a “manun kind”, a “humanimaldade” (no 29) dos patrioteiros, dos negociantes e dos políticos (no 27: “a politician is an arse upon”). Finalmente há Augusto de Campos
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a categoria dos poemas de “persuasão” ou de “reflexão”, como os classifica Norman Friedman, aqueles que revelam a filosofia de vida do poeta e o seu elenco de valores, como “now air is air and thing is thing:no bliss” (no 43). Evidentemente, essas categorias não são estanques, e se projetam umas sobre as outras. Como afirma Friedman, a poética de Cummings se origina do que ele chama de “metafísica carnalizada; ou abstrações elevadas à potência do concreto”. Sua visão da vida, embora transcen dental, começa por um básico e inabalável deleite sensual pelo mundo físico, tanto urbano quanto rural. É o mundo social, o mundo das ansiedades e rotinas criadas pelo homem que ele transcende e não, como se acredita às vezes, os mundos físico e cultural. Não é a morte mas o medo da morte que ele ironiza e não a tradição cultural existente mas a convenção estéril.
As minhas primeiras traduções da poesia de Cummings, reuni das em livro em 1960 (E. E. Cummings — 10 poemas, edição do Ministério da Cultura), enfatizaram o poeta das experiências de ges tualização tipográfica, o mais revolucionário e o menos aceito e entendido. Delineado o perfil do poeta-inventor e implodida a textura tradicional do poema com a exposição dessa inusitada “tortografia”, tornou-se possível explorar, em leituras posteriores, o espec tro mais amplo das vertentes cummingsianas. Duas novas seleções de poemas, publicadas em 1979 (E. E. Cummings — 20 poem(a)s, Editora Noa Noa) e 1986 (E. E. Cummings — 40 poem(a)s, Editora Brasiliense), ampliaram o número de textos traduzidos, enfatizando o humor cummingsiano e as sutilezas de sua fase derradeira. Nesta nova edição, comemorativa do centenário do nascimento do poeta, pretendo homenageá-lo com mais 22 traduções, abrangendo todas as suas faces e estilos. Das composições líricas de juventude como “somewhere i have never travelled” (nalgum lugar em que eu nunca estive) — no 15 — aos poemas objetivistas, como os que tematizam a mosca, a lua, o floco de neve, a estrela, a camponesa. Dos epigramas crítico-anedóticos, como os de no 51 e no 52, que descrevem
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os bêbados de rua — “a he as o” (um o tão v), “a gr” (um bê) —, aos poemas francamente satíricos, como o antibelicista “why must itself up every of a park” (por que haverá de em cada de um parque), no 37, ou os que escarnecem os “unpeople”, as nãopessoas, sem horizonte a não ser a vida prática e o lucro, como o de n o 50, “what Got him was Noth” (o que o Levou não foi Nad) ou o de no 56, “you no” (você re). Este último poema se fulcra no trocadilho (irrecuperável literalmente em português) entre “more” (mais) e “morticians” (agentes funerários). Com liberdade, uso na tradução as palavras “mais” e “animais”, mudando a chave semântica, mas mantendo o tom cáustico do poema dentro de um equivalente jogo de palavras. As composições de n os 19 e 23, “floatfloaflofl” (flutuflutfluflf) e “so little he is” (tão pequeno ele é), dedicadas a Paul Draper, um dançarino, e a Jimmy Savo, um comediante, confirmam o poeta radical das atomizações de palavras e dos mimogramas tipográficos. Cummings é um mestre da tmese (do grego tmesis, corte), ou intercalação de palavras, processo que tem origem no latim clássico — o exemplo mais notável é “cere-comminuit-brum” (que traduzo por cere-esfacela-bro), geralmente atribuído a Ênio (século III a.C.) — mas que Cummings, versado em literatura greco-latina, emprega sistematicamente e erige à condição de recurso privilegiado da estrutura, associando-o às técnicas da montagem cinematográfica e da colagem. Algumas vezes a tmese se alia à tática dos deslocamentos sintáticos, produzindo efeitos de confusão de sensações ou simultaneidade perceptiva. Vivamente presente nas primeiras linhas de “why must itself up of every park” ou no poema da mosca (no 45) — “off a pane)the” / na vidraça)a —, ou no da camponesa (no 40) — “a like a” / uma como uma —, o processo se desenvolve admiravelmente na composição de no 74, um pequeno poe ma inédito recolhido na coleção póstuma ETC — “thing no is(of” / coisa é nenhuma(de —, de estilo semelhante a outro, anterior, já traduzido por mim (no 26): “nonsun blob a” (nãosol bolha um). Se reconstruirmos a ordem de encadeamento lógico do poema, ele ofeAugusto de Campos
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recerá, entre outras possibilidades de leitura, a seguinte: “of all things which are, no thing is so quite alive as one star (which will disappear in a now) to whom kneeling I say here my (who)” — de todas as coisas que são, coisa nenhuma é tão bela como uma só estrela (que já vai indo embora num aqui) à qual ajoelhado eu digo agora meu (quem). Numa das leituras possíveis a palavra “will” (formante do futuro) sugere também o substantivo com o signifi cado de “desejo”, que poderia também completar a frase em suspenso, tomando o lugar de “who” (quem). Mas é da própria incom pletude do enunciado, da dispersão e da ambiguidade frásica que se forja o momento mágico do poema; de um lado, a desordenação imposta ao texto iconiza a contemplação da estrela perdida na pai sagem celeste, e de outro, por meio da substantivação das partes do discurso, opera a transformação da coisa em ser ou do “which” em “who”, ou do “que” em “quem”, para usar o jargão estilístico do próprio poeta. Acho admirável que Cummings, em seus últimos poemas, tenha insistido em pesquisar nessa área-limite da desautomatização da linguagem, tão difícil de empreender, mas tão rica de sugestões. Está aí talvez um dos pontos de contato de sua obra com a poética de John Cage. Este, como se sabe, foi um dos primeiros a musicar poemas de Cummings nas composições “Five Songs for Contralto”, 1938, “Forever and Sunsmell”, 1942, “Experiences I”, 1945, “Experiences II”, 1948. Alguns dos próprios textos de Cage parecem dever algo a outros de Cummings. É o caso do título de “Diary: How to improve the world (You will only make matters worse)”, 1965, que recorda o “sonnet entitled how to run the world” de No Thanks. E do apólogo de Suzuki relatado por Cage na sua Conferência da Juillard (“Before studying Zen, men are men and mountains are mountains.”) que faz lembrar “now air is air and thing is thing:no bliss” (agora ar é ar e coisa é coisa:traço”) de 95 Poems, também incorporado a esta coletânea de traduções. Mas são procedimentos como o deslocamento sintático e tipográfico e a liberação das partículas auxiliares ou subordinadas que irão interessar mais especifi18 |
Poem(a)s — e. e. cummings
camente a Cage, ainda que chegue a eles não por meio de um deliberado controle da desconstrução, como Cummings, mas antes pelo desencadeamento de processos casuais que têm por escopo eliminar a interferência do gosto pessoal. Indagado sobre suas preferências em poesia, Cage manifestou em mais de uma oportunidade a sua admiração por Cummings, Eliot, Pound, Gertrude Stein e James Joyce. E embora tenha sempre afirmado que Joyce e Gertrude foram os mais importantes para ele, o fato é que em seus “mesós ticos” — alguns dos quais compostos inteiramente de fragmentos do Finnegans Wake — ele fez convergirem Joyce e Cummings, assim como o fizera antes com Pound e Stein. De qualquer modo, há uma forte presença cummingsiana na obra de Cage, que com partilha com o poeta uma generosa ética anarcoindividual da cidadania americana, com raízes comuns na “desobediência civil” de Thoreau. É mais um aspecto das potencialidades prospectivas da obra de Cummings, que resiste com intacta grandeza neste fimcomeço de século. Augusto de Campos 1999
Augusto de Campos
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