A arte de escrever cartas

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DE

E SCREVER C ARTAS

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UNIVERSIDADE ESTADUAL

DE

CAMPINAS

Reitor CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ Coordenador Geral da Universidade JOSÉ TADEU JORGE

Conselho Editorial Presidente PAULO FRANCHETTI ALCIR PÉCORA – ANTÔNIO CARLOS BANNWART – FABIO MAGALHÃES GERALDO DI GIOVANNI – JOSÉ A. R. GONTIJO – LUIZ DAVIDOVICH LUIZ MARQUES – RICARDO ANIDO

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ORGANIZAÇÃO

E MERSON T IN

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E SCREVER C ARTAS

A NÔNIMO DE B OLONHA E RASMO DE R OTTERDAM J USTO L ÍPSIO

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F ICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA B I B L I O T E C A C E N T R A L DA U N I C A M P Ar75

A arte de escrever cartas: Anônimo de Bolonha, Erasmo de Rotterdam, Justo Lípsio / Emerson Tin (org.). – Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2005. 1. Cartas. 2. Epistolários – História e crítica. 3. Retórica. I. Tin, Emerson. II. Título. CDD 801.956 808

e-ISBN 85-268-1220-3 ISBN 85-268-0680-7 Índices para catálogo sistemático: 1. Cartas 2. Epistolários – História e crítica 3. Retórica

801.956 808 808

Copyright © by Emerson Tin Copyright © 2005 by Editora da UNICAMP Copyright © 1971 The principles of letter-writing by University of California Press Copyright © 2004 The principles of letter-writing by James J. Murphy Copyright © 1996 Principles of letter-writing: a bilingual text of Justi Lipsii Epistolica institutio (notas) by Summertown Company, Inc.

Agradecemos ao prof. James J. Murphy, da Universidade da Califórnia, por permitir o uso de sua tradução de The principles of letter-writing, do Anônimo de Bolonha. Somos gratos, também, à Summertown Company, Inc., por permitir o uso das notas a Principles of letter-writing: a bilingual text of Justi Lipsii Epistolica institutio, de Justo Lípsio.

Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em sistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.


À minha família, razão de ser o que sou

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A GRADECIMENTOS Ao professor-doutor Alcir Pécora, pelo grande apoio durante o mestrado. Aos professores do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL–UNICAMP), responsáveis pela minha formação. Ao CNPq, pela bolsa recebida durante o mestrado.

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S UMÁRIO

VELHOS TEXTOS, CRÍTICA VIVA (Alcir Pécora) .............................................. 11

INTRODUÇÃO (Emerson Tin) ......................................................................................... 17

REGRAS PARA ESCREVER CARTAS (Anônimo de Bolonha) ....................... 81

BREVÍSSIMA E MUITO RESUMIDA FÓRMULA DE ELABORAÇÃO EPISTOLAR (Desidério Erasmo de Rotterdam) ................................................. 111

A ARTE

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DE JUSTO

LÍPSIO (Justo Lípsio) ...... 129

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ALCIR PÉCORA

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VELHOS TEXTOS , CRÍTICA VIVA

V ELHOS T EXTOS, C RÍTICA VIVA Sola res est quae homines absentes, praesentes facit. Apud JUSTUS L IPSIUS, E.I.

Levantar legibilidades verossímeis dos objetos antigos para ampliar o vocabulário crítico do presente: eis o que me parece ser um programa de estudos de excelência. Tem sido este exatamente o maior trunfo conquistado pela crítica mais recente de obras anteriores ao período romântico: entender que a sua principal questão hermenêutica é a de ajustar a interpretação dos textos à sua forma histórica contingente. Tal compreensão, bem feita, implica abandonar uma série de lugares-comuns da historiografia literária, como, por exemplo, desistir de tomar os textos mais antigos por objetos menores de idade, exemplos da infância do presente, sobre os quais se pode legislar tranqüilamente, com base em transferências imediatas de categorias atuais, ou em teleologias mais ou menos disfarçadas, que ao cabo são sempre naturalizações de uma mitologia determinista da história. A disponibilidade para a diferença e contingência radical dos tempos é uma conquista hermenêutica decisiva para que se deixe de imaginar, como tem sido tão comum nos estudos literários brasileiros (mas não apenas neles), que pouco mais cabe assinalar a respeito de escritura colonial ou das letras ancien

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ALCIR PÉCORA

régime do que a medida vicária de sua prefiguração do projeto romântico-nativista que ela nunca teve. Emerson Tin, autor desta utilíssima Arte de escrever cartas que o leitor tem em mãos, demonstra, com seu trabalho operoso, participar de uma linha de pesquisa que faz para si uma exigência séria de ajuste de propriedade dos vocabulários analíticos ao objeto letrado histórico. Interessado inicialmente na correspondência de dom Francisco Manuel de Melo, esse monstro de engenho do XVII português, logo percebeu que o domínio das prescrições que regulavam o gênero ou subgênero da ars dictaminis era decisivo para que chegasse a penetrar a gramática de usos empregados pelo destríssimo dom Francisco. A partir daí, Emerson levantou, estudou, traduziu — e disponibiliza agora para o público brasileiro, e em especial para os estudantes de letras e história — três dos principais modelos da tradição letrada ocidental a autorizar e prescrever a produção das epístolas, na ampla variedade delas, admitidas historicamente. São eles: Rationes dictandi (1135), do chamado Anônimo, da escola de Bolonha; Brevissima formula (1520), como ficou conhecido o primeiro dos três tratados de Erasmo sobre ars dictaminis; e Epistolica institutio (1590), de Justo Lípsio. Com este trabalho em mãos, o leitor conta com uma introdução segura e uma chave importante de leitura dos documentos epistolares, muitas vezes lidos ainda ingenuamente como informação direta neutra, de conteúdo denotativo e referencial simples, como se as prescrições de gênero, algumas delas seculares, fossem apenas transparências frágeis facilmente penetradas pelo olhar superior do crítico contemporâneo. Nada mais enganoso. As prescrições, aqui apresentadas em suas fontes principais, são constitutivas dos objetos que produzem. Ou 12

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seja, o que as cartas particulares informam está invariavelmente em função do que o gênero prescreve e permite significar. Visto dessa maneira, o trabalho de Emerson Tin também deve ser entendido como mais do que um bem-vindo esforço arqueológico de levantamento e divulgação de fontes e autoridades. É possível concebê-lo como um exercício heurístico de ajuste de convenção, no qual o principal empenho do crítico é adquirir um certo domínio de um vocabulário afim ao objeto em questão, tanto mais reclamado ou exigido quanto mais distante ou fora de uso esteja esse vocabulário dos empregos contemporâneos. Tal ajuste se traduz, em seu estudo, pelo levantamento minucioso das prescrições técnicas que regulam a composição das cartas, bem como pelo estudo comparativo de regularidades e variações importantes na tradição retórica do gênero epistolar. Convém ter em mente, ainda, que não se trata, aqui, de defender quaisquer formalismos em oposição a conteúdos históricos, como rezam as velhas oposições positivistas. As convenções, tal como entendidas no estudo de Emerson Tin, são relevantes justamente porque históricas, isto é, concebidas enquanto produtoras dos sentidos ou temperamentos datados das epístolas. Convenções, aqui, não são virtualidades ou idealidades teóricas, mas vetores práticos, que balizam concretamente as epístolas, seja por meio dos limites argumentativos dos seus modelos de autoridade, dos seus temas mais correntes, dos arranjos aptos das partes discursivas, do repertório dos ornatos eficazes nas diferentes situações, do exemplário fornecido etc. Antes de encerrar esta breve apresentação ao livro de Tin, gostaria de fazer apenas mais um destaque a propósito de seu mais fecundo emprego crítico. As categorias de análise 13

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levantadas pelo seu estudo, ainda que utilizadas de maneira própria, isto é, de acordo com a mencionada exigência de ajuste histórico-convencional, não querem produzir originais dos objetos, não têm a ilusão idealista de descobrir seu verdadeiro ou primeiro sentido — sabem que lidam o tempo todo tão-somente com verossímeis de tais objetos. Quer dizer, no limite da habilidade de sua rigorosa tentativa de, digamos, reconstrução das preceptivas epistolares, está não a nostalgia do original — pois culturas não se reconstroem, produtos contingentes que são, sem destinação nem determinações absolutas —, mas apenas descrições alternativas, igualmente contingentes, que, no melhor dos casos, estabelecem uma boa relação de adequação entre os vocabulários ajustáveis de época e o âmbito contemporâneo do debate a seu respeito. Tal relação, por sua vez, implica uma equação interessante entre referências empíricas admitidas sem contestação e lugares teóricos prestigiosos entre os debatedores da matéria. Este é o ponto de fricção a ser seriamente considerado, e, nele, as questões literárias ganham frescor, novidade e interesse efetivamente atuais. Pretender ter encontrado o objeto cultural puro é trocar uma fantasia teleológica por outra, regressiva, de mitologia de origem. Da recusa de ambas decorre a compreensão mais adequada de que as preceptivas epistolares ora apresentadas não reclamam para si a capacidade de interpretação natural ou única dos textos historicamente produzidos no gênero, pois apenas podem produzir interferências igualmente históricas a respeito dele. No caso de A arte de escrever cartas, a apresentação dos pontos decisivos de uma tradição preceptista anterior à revolução burguesa, tão distante já das práticas contemporâneas, pode perfeitamente significar hipóteses criativas para a interpretação 14

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de objetos contemporâneos: da carta oficial até o e-mail. O levantamento em jogo aqui, longe de mumificar objetos culturais, quer testar hipóteses para escrituras do presente ainda inexploradas pelos lugares-comuns da crítica e da leitura.

Alcir Pécora

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INTRODUÇÃO

I NTRODUÇÃO

Durante mais de 2 mil anos, escrever cartas foi o principal meio de comunicação a distância. Assim, dizia-se que a carta tornava presentes os ausentes. É o que se pode ler nas correspondências, bem como nos diversos tratados de epistolografia que o tempo nos legou. Nesta introdução, pretendo apresentar algumas dessas artes de escrever cartas. Umas estão dispersas em correspondências, como regras ocasionais que surgiam; outras, consubstanciadas em tratados de retórica ou mesmo em tratados autônomos. Segue-se a tradução dos tratados do chamado Anônimo de Bolonha, de Erasmo de Rotterdam e de Justo Lípsio, três dos melhores exemplos da arte de escrever cartas.

Referências epistolares na Antigüidade Video te, mi Lucili; cum maxime audio; adeo tecum sum ut dubitem an incipiam non epistulas sed codicellos tibi scribere. SÊNECA , Epistulae morales ad Lucilium, liber sextus, LV, 11

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EMERSON TIN

A Antigüidade não concebeu nenhum tratado de epistolografia autônomo. As poucas regras sobre a escrita de cartas que nos restaram ou estão dispersas na correspondência do período, ou integram tratados de retórica. A inclusão nesses tratados de capítulos específicos sobre a escrita de cartas pode sinalizar, contudo, a importância que o gênero epistolar passou a ter. Num período que cobre cerca de cinco séculos — desde o século I a.C. até o século IV d.C. —, menções a cartas aparecem nas obras de Demétrio, Filóstrato de Lemnos e Caio Júlio Victor, além das dispersas nas epístolas de Cícero, de Sêneca e de Gregório Nazianzeno.1 O interesse dessas referências antigas é patente, uma vez que são as primeiras teorizações sobre epistolografia de que se tem notícia e documentação. Especificamente quanto às epístolas de Cícero e de Sêneca, o interesse reside também no fato de terem sido eleitas como modelos de escrita epistolar, sobretudo durante o Renascimento, nos séculos XV e XVI. Alguns traços comuns parecem unir todas as concepções epistolares da Antigüidade: a carta é definida como um diálogo entre amigos e, como tal, deve ser breve e clara, adaptando-se aos seus destinatários e empregando o estilo mais apropriado.2 Como veremos, de certo modo, essa definição da carta como diálogo, ou como uma das partes de um diálogo, perpassará praticamente todas as artes epistolares.

Demétrio Demétrio, autor do Peí émhneíaV (em latim, De elocutione), não deve ser confundido com Demétrios de Fáleron

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INTRODUÇÃO

(c. 354-c. 283 a.C.), a quem erroneamente a tradição manuscrita atribuiu a autoria do De elocutione.3 Pouco ou nada se sabe sobre o seu autor. Não se pode precisar também a data de composição do tratado, escrito provavelmente entre os séculos I a.C. e I d.C. Seja como for, trata-se da primeira obra a expor regras teóricas sobre epistolografia, embora não autonomamente, e sim na forma de um excurso.4 Demétrio aborda, nas seções 190-235 de seu tratado, o chamado estilo simples (ischnos), que é associado ao vício da aridez (xeros), e propõe a sua aplicação na escrita de cartas5 (especificamente nas seções 223-235). Toma como base um juízo de Artemón, que teria compilado as cartas de Aristóteles, segundo o qual se devem escrever as cartas da mesma maneira que os diálogos, de tal forma que a carta seja como uma das duas partes de um diálogo. Demétrio afirma, então, que a carta deve ser algo mais elaborada que o diálogo, pois, enquanto o diálogo imita alguém que improvisa, a carta, de outra forma, é escrita e enviada a alguém, como se fosse um presente. Ainda assim, deve-se adotar na carta um estilo simples, pedestre, de maneira que mais se aproxime de uma conversa entre amigos do que da demonstração pública de um orador. Critica o uso de “frases soltas” como não apropriadas para as cartas, por causar obscuridade na escrita e por não ser a imitação própria da escrita como o é do debate. Prossegue comparando a carta ao diálogo: deve ser ela rica na descrição dos caracteres, pois pode-se dizer que cada um escreve a carta como retrato de seu próprio ânimo, sendo ela a forma de composição literária em que mais se pode ver o caráter do escritor. Quanto à extensão e ao estilo da carta, ambos devem ser ordenados cuidadosamente, considerando que as cartas

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muito extensas ou muito pomposas não são, em verdade, cartas, senão tratados em forma epistolar, como as de Platão e Tucídides. A carta deve ser mais livre, tendo Demétrio por ridícula e pouco cortês a construção de períodos como se se estivesse escrevendo um discurso judicial e não uma carta. Ela deve ser a expressão breve de um sentimento amistoso e a exposição de um tema simples em termos simples, o que veta, por exemplo, que se preste à veiculação de sofismas ou questões de história natural. Demétrio afirma que constituem a beleza de uma carta as expressões de amizade e os numerosos provérbios que contém. Considera-os a única filosofia que se deve encontrar numa carta, já que são populares e de domínio comum. Mas não devem ser utilizadas máximas e exortações, pois quem as utiliza não parece estar falando familiarmente numa carta, mas eloqüentemente num púlpito. Quando, contudo, as cartas forem dirigidas ao Estado e a pessoas reais, devem adotar um tom ligeiramente elevado, levando-se em conta a pessoa a quem se escreve. Reafirma que a elevação do estilo não deverá chegar ao ponto de se ter um tratado no lugar de uma carta, dando como exemplos disso as cartas de Aristóteles a Alexandre e a de Platão aos amigos de Dión. Demétrio conclui que a carta, em geral, quanto ao seu modo de elocução, deve mesclar os estilos gracioso e simples, sendo como uma das partes de um diálogo. Para George A. Kennedy, essa discussão na obra de Demétrio reflete presumivelmente o crescente papel da epístola, pública e privada, no período helenístico.6

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