Cidades e sociedades urbanas na Itália medieval

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universidade estadual de campinas Reitor Fernando Ferreira Costa Coordenador Geral da Universidade Edgar Salvadori de Decca

Conselho Editorial Presidente Paulo Franchetti Alcir Pécora – Christiano Lyra Filho José A. R. Gontijo – José Roberto Zan Marcelo Knobel – Marco Antonio Zago Sedi Hirano – Silvia Hunold Lara

Universidade Federal de Minas Gerais Reitor Clélio Campolina Diniz Vice-Reitora Rocksane de Carvalho Norton Editora Ufmg Diretor Wander Melo Miranda Vice-diretor Roberto Alexandre do Carmo Said Conselho Editorial Wander Melo Miranda (presidente) Flavio de Lemos Carsalade – Heloisa Maria Murgel Starling Márcio Gomes Soares – Maria das Graças Santa Bárbara Maria Helena Damasceno e Silva Megale Paulo Sérgio Lacerda Beirão – Roberto Alexandre do Carmo Said

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Patrick Gilli

cidades e sociedades urbanas na itália medieval séculos xii-xiv

tradução Marcelo Cândido da Silva Victor Sobreira

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ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação G414c

Gilli, Patrick. Cidades e sociedades urbanas na Itália medieval: (séculos xii-xiv) / Patrick Gilli; tradutores: Marcelo Cândido da Silva e Victor Sobreira. – Campinas, sp: Editora da Unicamp; Belo Horizonte, mg: Editora ufmg, 2011. 1. Cidades e vilas medievais – Itália. 2. Vida urbana – Itália. 3.Itália – História – 1268-1492. I. Título.

cdd 301.3630945 isbn 978-85-268-0927-7 (Editora da Unicamp) 945.05 isbn 978-85-7041-888-3 (Editora Ufmg) Índices para catálogo sistemático:

1. Cidades e vilas medievais – Itália 2. Vida urbana – Itália 3. Itália - História – 1268-1492

301.3630945 301.3630945 945.05

Título original: Villes et sociétés urbaines en Italie: milieu xii e-milieu xiv e siècle Copyright © 2005 by Armand Colin Copyright © 2011 by Editora da Unicamp Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em sistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.

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sumário

Prefácio à edição brasileira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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introdução .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 1

os fundamentos supranacionais da história urbana italiana: império e papado .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 Nas origens da comuna: o poder do bispo pós-carolíngio (século XI-meio do século XII) ........................................................................................... 24 Os esforços italianos de Frederico Barbarruiva: aspectos militares e diplomáticos ....................................................................................... 27 Frederico II e as cidades italianas ..................................................................................... 35 O papado e as cidades italianas ......................................................................................... 39 O papado e as comunas: de Alexandre III a Inocêncio III ...................................... 47

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política e instituições: as quatro idades das cidades italianas .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57 Os governos consulares . ......................................................................................................... 58 Funções e funcionários consulares . ................................................................................... 63 A comuna podestadal ............................................................................................................. 70 A comuna do povo ................................................................................................................... 82

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3 sociedade urbana e dinâmica social .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97

Na origem da comuna: a militia (1150-1230) . ............................................................ 98

Uma nova classe dirigente (1230-1350)? ........................................................................ 121

4 engenharia administrativa comunal i: juristas, direito, justiça . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139 Uma nova figura social: o jurista ...................................................................................... 140

Criar leis e aplicar a justiça ................................................................................................. 150

5 engenharia administrativa comunal ii: finanças públicas e fiscalização .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177 Formas e valores da fiscalidade direta ............................................................................ 178 Fiscalidade e dívida pública . ............................................................................................... 193

6 demografia e política de povoamento das cidades italianas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205 A rede urbana da Itália medieval . .................................................................................... 207 As relações cidade–campo, chave do dinamismo urbano . ....................................... 217

7 economia urbana e mercado de trabalho .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 235 As estruturas corporativas .................................................................................................... 236 Mundo e mercado de trabalho ............................................................................................ 249

8 redes e comércio: o papel das cidades .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 265 Cidades e comércio mediterrânico . ................................................................................... 266 As práticas comerciais e monetárias: forças e fragilidades das experimentações italianas ..................................................................................................... 276 A Itália fora da Itália: entrepostos e cidades coloniais no Mediterrâneo .......... 293

9 a igreja e a cidade: convergências e tensões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 305 O enquadramento pastoral e o clero secular ................................................................. 306 A Igreja, presença material na cidade ............................................................................. 316 Cidades e ordens mendicantes: uma equação particular ......................................... 326

10 práticas cívicas e cultura política .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 351 As práticas cívicas.. ........................................................................................ 352 Valores cívicos e bom governo.. ...................................................................... 367 Uma cenografia do bem comum: edilidade e religião cívica.. ......................... 377

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conclus茫o: os territ贸rios do urbano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 395 bibliografia .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 401 figuras .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 413

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Prefácio à edição brasileira

a cidade: um paradigma influente Néri de Barros Almeida

Ao inovar seus quadros de investigação, a historiografia do século XX colocou em questão um elemento central da escrita histórica: sua forte vinculação ao quadro de vida urbano. Nesse sentido, o interesse pela história do campesinato e pela história da cultura iletrada medieval produziu resultados consideráveis. Satisfeito, esse ímpeto historiográfico cami­nha hoje lado a lado com antigas perguntas, cujo alcance se viu renovado. Esse “retorno à frente” revitalizou o estudo das cidades, em particular daquelas da península itálica medieval, artífices de uma experiência histórica influente. Durante as últimas décadas, a visão que se tinha da composição social e política dessas cidades mudou, assim como caíram por terra alguns pressupostos que sustentavam sua originalidade radical em relação às estruturas rurais. O livro de Patrick Gilli examina as cidades italianas durante o período comunal, aquele em que adquirem autonomia jurídica em relação ao senhorio, seja do alto clero, seja dos grandes senhores laicos. Essa autono­ mia, detidamente examinada, no entanto, não aparece como o de­senvolvi­ mento paralelo de uma nova sociedade. Sem se preocupar em seduzir o lei­tor com a exploração excessiva de pretensas rupturas, o autor nos apre

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senta novidades que surgem de estruturas sociais, políticas e jurídicas her­ dadas, embora envolvidas em uma dinâmica de transformação contínua. Assim, no século XII, são os milites que — à exceção de Florença — ocupam posição de destaque junto ao grande comércio e aos bancos. Sua importância se faz notar no controle das principais expressões governativas da cidade, notadamente a justiça. Nas cidades, o direito se enriquece de dimensões comuns, se amplifica dando origem a uma tradição mais extensa, bem como a uma elite funcional nova. Com o tempo, o desenvolvimento formal do direito produz o fim da sujeição da comuna às forças militares, tidas até então como base da resolução de conflitos. Mas se os milites perdem progressivamente espaço em sua função militar, isso não torna as cidades menos aristocráticas. Embora desde a primeira metade do século XII seja possível observar a coligação de associações de caráter não aristocrático, estas permanecem oscilantes entre a finalidade caritativa e a política. Apenas a partir de meados do século XIII o papel central da militia será colocado em causa. Desde então, nota-se a neutralização dessa elite por meio da utilização do aparato institucional desenvolvido desde o século anterior. Instituições sobrepostas aos interesses particulares permitem uma prática política que não é “expressão direta ou imediata da dominação social”, mas de formas societárias variáveis relacionadas à vizinhança, ao bairro, às armas ou ao ofício. Numa dimensão social mais ampla, vemos que a ligação com o entorno rural não resulta apena do fluxo migratório, mas de políticas fiscais nas quais, mais do que resultados materiais, a historiografia encontra indícios de mecanismos deliberados de articulação entre as cidades e a parte de si que estas reconhecem extramuros. O estudo da demografia das ci­dades italianas mostra que o fenômeno do fluxo migratório na direção das cidades não é unívoco e que os mais ricos se mantêm entre seus contingentes principais. O movimento de crescimento, mas também de decréscimo urbano, evidencia uma população menos enraizada, mais frágil diante da evolução da cidade, e um componente “popular” menos participativo e menos amparado pela justiça, embora esta se torne formalmente, cada vez mais, expressão de direitos comuns. Tais considerações atenuam a imagem escolar das cidades como porto seguro para os deserdados, para os pobres expulsos do campo ou para aqueles à procura de ares que libertam. 10

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Prefácio à edição brasileira

Se o livro de Patrick Gilli não apresenta as comunas como resulta­ do revolucionário, isso não as torna um fenômeno histórico menos im­por­ tante. Setor por setor da vida da cidade, o autor reconstrói os passos fir­mes da autonomia comunal e as injunções sociais nela implicadas. Se, por um lado, podemos nos decepcionar com a perda do caráter explosivo do pro­ ces­so de constituição da sociedade urbana tardo-medieval, por ou­tro, é for­temente compensatório observar a construção dos mecanismos de so­ berania, que transferem a abstração do poder da pessoa para a comuna. Sem deixar de dialogar com os grandes paradigmas da história urbana medieval, Patrick Gilli reelabora minuciosamente suas dimensões, procurando compreender “formas de poder” e “fórmulas de governabi­ lidade”. Nesse esforço, detém-se em seu “policentrismo” político e insti­ tucional, experiência tipicamente medieval, em que vemos se agregarem aos organismos de poder, em graus diferentes de integração, grupos sociais complexos e poderes segmentados. Ligando os pontos dessa ex­ periência “fragmentada”, temos a construção dos elementos de uma nova prática de soberania. Esse resultado se desenha de forma sutil ao longo das quatro fases atribuídas ao desenvolvimento histórico das cidades italianas entre os sé­ culos XII e XIV e que balizam a investigação conduzida pelo autor: o pe­ ríodo consular, que vai do final do século XI à Paz de Constância, em 1183; o período podestadal, de 1183 à metade do século XIII; uma fase do go­ verno podestadal em que os representantes do popolo passam a exercer influência determinante na gestão da cidade; e, a partir do século XIV, o regime senhorial. Ao longo dessas quatro fases vemos a comuna se cons­ tituindo como fonte de autoridade por meio da transferência do poder a suas instituições. O consulado aparece como a consolidação e a ampliação de formas de cooperação antigas entre “a aristocracia urbana informal (a militia), os mer­cadores e os detentores tradicionais da autoridade pública (bispos, con­des e famílias de viscondes e capitães)”. Dessa forma, a aristocracia con­sular estava enraizada tanto nas famílias poderosas tradicionais, cujo poder estava associado ao campo, quanto nas elites profissionais das ci­ dades. Não importando qual fosse sua origem, os que exerciam o poder tinham de fazer uso de atribuições militares, consideradas necessárias à autoridade. Embora tenhamos aqui a expressão de uma continuidade em 11

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torno da dominação da aristocracia, temos também o retrato de uma maleabilidade das relações sociais típica da Idade Média. Nela, os atributos da condição aristocrática migram segundo os critérios de ocupação do poder e não segundo o nascimento simplesmente. Assim, o compromisso social que promove a pacificação por meio dos cônsules resulta de um acordo intra-aristocrático que visa, sobretudo, minimizar tensões entre as aristocracias. À diferença dos cônsules, o podestade será um magistrado temporário (semestral ou anual), na maior parte das vezes habitante de uma outra cidade, em quem se busca imparcialidade na execução das decisões dos conselhos, nos quais se concentra, então, o poder efetivo da comuna. A grande importância do podestade reside no fato de “permitir separar a gestão administrativa ordinária da gestão partidária”. A necessidade de estabelecimento de maiorias qualificadas na época podestadal obriga a uma organização partidária no seio dos conselhos que altera a natureza da composição dos grupos atuantes na gestão da comuna. Forma de autoridade delegada superposta às tensões sociais, o podestade representa uma instância vital à criação da soberania da comuna. O regime podestadal contribui para “a criação de um espaço propriamente político, no qual se afrontam as instituições representativas e não mais as famílias autoqualificadas como dominantes”. É então que vemos serem aperfeiçoa­ dos os registros escritos da administração e da justiça urbanas — avanço também político, na medida em que as arbitrariedades eram colocadas sob um controle novo. Após o recuo do poder imperial sobre as cidades, conflitos latentes entre os diferentes grupos politicamente dominantes vêm à tona. De seu desfecho, emerge a comuna do “povo”. Esta conquista espaço, sem desalojar a aristocracia consular, que continua apoiada no podestade. As funções deste, no entanto, se veem cada vez mais restringidas ao campo jurídico. É assim que o popolo, grupo social heterogêneo, é protagonista de uma importante redistribuição do poder, decorrente do surgimento de novos tipos de colegiados provenientes de corporações ou sociedades territoriais e do aumento considerável dos membros dos grandes conselhos. Cabia ao chefe do popolo nomear o capitão do povo, um oficial estrangeiro, encarregado da proteção dos interesses dos popolani por meio de atribuições militares e da apelação de sentenças do podestade e do tribunal 12

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de causas criminais. “A novidade do regime do povo em relação à experiên­ cia propriamente podestadal se liga à ideia de uma gestão da vida política local que se apresenta como expressão de uma relação de forças partidárias e não de forças sociais.” Com os popolani as instituições da comuna se veem reforçadas por meio de medidas legais contra os magnatas que restringem sua atuação em cargos públicos. Além disso, as dificuldades para a clara e inequívoca definição do que era um magnata tornavam esse termo um instrumento político importante para os interesses dos grupos represen­ tados entre os popolani. A pretexto de instaurar a paz e a concórdia entre os diferentes gru­pos dominantes em conflito, senhores escolhidos podestades ou capi­ tães do povo se mantêm no poder concentrando as decisões e tornando me­ramente nominal a representatividade das instituições ligadas tanto ao popolo quanto aos aristocratas. Se não houve com o regime “popular” uma re­volução, tampouco tivemos na ascensão das tiranias senhoriais uma contrarrevolução. Encontramos entre as famílias, doravante chamadas ao poder pela comuna, membros tanto da aristocracia fundiária quanto da aristocracia mercantil e artesanal. Durante sua gestão, consolida-se uma hierarquização institucional que afasta os agrupamentos societários do poder. No campo de nossas expectativas, parece acontecer uma ruptura. No entanto, no plano histórico, o aprofundamento institucional dá continuidade à gestação de heranças caras à modernidade ao produzir, nas palavras de Patrick Gilli, uma verdadeira “marcha para a soberania jurí­dica e política”.

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introdução Si non est civis, non est homo. Remigio dei Girolami, De bono commune (1302)

Pela amplitude das realizações monumentais, pela inventividade institucional e administrativa, pelo dinamismo de sua economia mercante, a Idade Média italiana oferece uma fisionomia singular à paisagem europeia. Isso ocorre, pois a península fragmentada politicamente conheceu um fenômeno que a distingue radicalmente de seus vizinhos: o desenvolvimento sem equivalente das cidades. Toda a história da península, a partir do século XII pelo menos, obedece a uma dinâmica urbanocêntrica. Além das taxas de urbanização consideráveis, das quais nenhuma outra região europeia se aproxima, com exceção de Flandres, a Itália foi marcada pela predominância do fato urbano, que influenciou as práticas sociais, políticas, religiosas e culturais. A historiografia peninsular olhou esse período como uma idade de ouro da Itália, principalmente no século XIX, quando o Risorgimento considera os mercadores-empreendedores pioneiros do espírito burguês e liberal. Hoje, essas considerações já foram atacadas violentamente, mas a singularidade italiana se mantém. Não que os historiadores não se tenham empenhado em colocar a história comunal dentro do movimento geral da Idade Média europeia. Numerosos trabalhos nestes últimos 30 anos si­tuam 15

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no primeiro plano do desenvolvimento urbano a presença de uma aristocracia “encitadinada” como fermento das mutações institucionais no século XII. A comunhão de valores compartilhados pelas elites nobiliár­quicas europeias é indiscutível, quer se trate do ideal de cavalaria, do ethos cortês ou das práticas matrimoniais. Rapidamente, tal ideal se ampliou ao conjunto das elites dirigentes locais. Não faltam vestígios de uma difusão precoce de lendas épicas arturianas e carolíngias: na metade do século XII, as catedrais de Módena e de Verona não ostentam uma estatuária que representa, no primeiro caso, heróis arturianos e, no segundo, Rolando!? Mas a grande presença de uma aristocracia urbana não nos permite somente deduzir que as cidades italianas viviam segundo modelos idênticos aos das monarquias vizinhas. Mais do que a composição social de suas elites, é o papel das cidades no processo político que merece ser exa­minado de perto. Nesse cadinho de diferenças e de desigualdades clara­ mente expostas, nesse território onde coabitam uma aristocracia rural instalada na cidade, mercadores, artesãos, assalariados, migrantes desenrai­ zados, profissionais “liberais” (juristas, notários, médicos) e clérigos, elaborou-se progressivamente uma consciência citadina bastante similar de uma cidade à outra. É esse processo instável, fruto de tensões jamais superadas no seio de grupos sociais antagonistas, que acaba por dar forma à cidade italiana. A necessidade de achar um modus vivendi, mais urgente do que a constante pressão externa, conduziu as populações locais a mostrar sua inventividade política. Imaginação no poder, por assim dizer! Dois fenômenos que poderiam parecer contraditórios interagiram simultaneamente: o urbanocentrismo comunal e o policentrismo institucional. O primeiro designa o movimento de polarização de um território periurbano comandado pela cidade, envolvendo fluxos migratórios vindos do campo próximo, em uma domesticação mais ou menos conduzida das populações rurais, um investimento fundiário das famílias urbanas no

Patrick Gilli estabelece uma série de neologismos a partir da palavra “cidade”. O autor evita utilizar termos derivados de “urbano”, a fim de marcar junto ao leitor as especificidades históricas do universo por ele descrito que não se confundem com a urbanidade contemporânea. (N. da R.)

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Introdução

contado , uma drenagem dos recursos fiscais e uma rede viária centrípeta que conflui para a cidade, práticas culturais que têm na cidade seu lugar quase exclusivo da maturação. Sobre essa onipresença da cidade, os dirigentes, qualquer que fosse o seu perfil social, encontraram um consenso. O poder estava na cidade. Nenhuma instância exterior, quer fosse o imperador ou até mesmo o papa, poderia tentar sobrepor sua força à congregatio civium, constituída precisamente para fazer valer os interesses próprios da cidade. Mas, se a independência jurídico-institucional da cidade representava a substância mesma da sociedade comunal, resta compreender o conteúdo dado às instituições destinadas a fazer viver esse organismo urbano, verdadeiro óvni político no céu dos poderes universais. Os contemporâneos, tanto italianos como estrangeiros, ficaram chocados por essa singularidade. Tudo parecia estranho, o tamanho das cidades, os usos sociais, a divisão dos poderes, a natureza dos grupos dirigentes. Uma das dificuldades mais árduas para o historiador que enfrenta a Itália das cidades está na compreensão das formas de poder e das fórmulas da governabilidade. O policentrismo institucional evocado logo acima se caracteriza por uma multiplicidade não somente de instâncias políticas, mas de organizações detentoras de fragmentos de autoridade: um executivo diluído em diversos ofícios, múltiplos conselhos urbanos que possuíam, parcialmente, um papel deliberativo, mas também cor­ porações artesanais integradas, em diversos graus, no organismo dos poderes urbanos — até mesmo as sociedades de armas (aristocráticas ou populares) — possuíam atribuições de natureza pública, de acordo com as relações de força, para não falar dos partidos políticos. Será que a comuna italiana era como a natureza para Pascal, uma esfera cujo centro estava em toda a parte e a circunferência em parte alguma? A esta questão, a resposta pode ser somente negativa. A despeito da dispersão das instâncias públicas e parapúblicas, havia uma direção cardeal que apontava a autoridade: a comuna. A aparente indistinção entre o público e o privado frequentemente enganou os historiadores, levando-os a ver estruturas de comando es-

Termo italiano para campo, zona rural. (N. da R.)

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sencialmente privadas ou a imaginar o funcionamento administrativo somente sobre a base de relações sociais clânicas, cujo objetivo último seria utilizar as instituições para seu benefício exclusivo. O ponto de vista defendido por esta obra é um tanto diferente. Ao fazermos das construções políticas lato sensu o coração da história das cidades, procuramos mostrar quanto o funcionamento comunal, tateante que foi, fez emergir efetivamente um espaço público parcialmente dissociado do jogo faccioso e do procedimento administrativo. Um dos pontos mais fascinantes do mundo urbano italiano reside precisamente no nascimento de um espaço político compreendido como canal de mediação institucional. Uma velha historiografia francesa caçoou dos inúmeros conflitos intraurbanos, dos partidos políticos que lutavam com armas nas mãos, ou protegidos atrás de torres, para controlar a cidade, e chegaram a conclusões surpreendentes. Tudo era uma questão de solidariedade vertical e de organização clânica, e os diversos agrupamentos associativos não eram diferentes em substância dos clãs escoceses. O quadro urbano, o jogo institucional, as formas das regulamentações judiciárias ou ainda os condicionamentos exteriores contavam pouco. Para dar uma boa impressão, acrescentavam-se festas e carnavais para divertir o bom povo e mimar a unanimidade social. Em suma, depois do kilt, a fest noz! Hoje, essa mesma historiografia, sempre hostil a qualquer enunciação de conflitos de classe, vestiu uma fantasia cintilante. Ela empresta da antropologia histórica alguns de seus conceitos inovadores: “invenção da política, invenção da política, eu vos digo!”. Certo, mas de que política falam eles? Dois pontos que formam o fio condutor do nosso percurso merecem ser destacados. Em primeiro lugar, é preciso estabelecer uma cronologia final da história comunal, pois, frequentemente, a abordagem clássica privilegiou uma abordagem a-histórica, invocando fenômenos que são idênticos apenas na aparência. As formas associativas, corporações ou sociedades populares, por exemplo, permaneceram inalteradas do século XII ao XIV? Como ignorar as hierarquizações ferozes que ocorrem, conduzidas ao acaso, seja através da supressão de certos tipos de reagrupamen “Festival da noite”, em bretão. Festa com música e danças de origem incerta, porém continuamente retomada desde a década de 1950 na Inglaterra. (N. do T.)

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Introdução

tos, seja através da subordinação ou da exclusão política desses grupos? A natureza da representação política comunal foi modificada pela intrusão no jogo político-institucional de grupos sociais reivindicando uma maneira diferente de governar, particularmente por meio da procura temporária de um consenso ou da exclusão. Isso nos conduz ao segundo ponto, ainda mais decisivo para nós. A despeito dessas turbulências (ou por causa delas), os conglomerados urbanos, que se tornaram extremamente complexos, tiveram que inventar, para tornar compatíveis e suportáveis todas essas diferenças, princípios de organização que deixavam subsistir essas instituições policêntricas enraizadas nas oposições sociais, hierar­ quizando-as. Deste ponto de vista, a história da Itália comunal é uma tentativa, parcialmente acabada, de criação de soberania, mas de uma soberania (chamada de bem comum, amor patriae, caritas, commune) que não é nem um pouco abstrata: trata-se, nada mais, nada menos, da condição de sobrevivência do organismo comunal, cujas tensões são assim subsumidas por um objetivo superior. A este respeito, o papel da religião e das instituições eclesiásticas foi considerável, ao fornecer modelos e uma gramática que as comunas souberam copiar. Não há autoridade sem alguma porção de sagrado; um poder somente laico é incapaz de gerar sua própria sacralidade. A história hesitante, cheia de sobressaltos, de fracassos, de realizações magistrais, esta Maestá (majestade) comunal, que investiu no espiritual, na economia e no judiciário, forma a textura das páginas que se seguem. Este trabalho pretende assim prestar homenagem a uma vigorosa e inventiva historiografia italiana e a alguns magistrais estudos franceses que souberam sair das armadilhas e trouxeram novidade e frescor para Bérgamo, Pádua, Apúlia, Sicília, Veneza ou Arezzo, entre outras cidades. É possível observar que a perspectiva profundamente unitária do projeto se concentra na cidade comunal. De fato, a escolha corta a península em dois. O que passa a ser então essa Itália meridional e monárquica? Não escondamos que ela não tem um papel importante nesta obra, em par­ticular, porque o poder central real fazia das cidades lugares puramente dominiais. A corte era o maior elo do encontro e da confrontação dos interesses de grupos que aspiravam a controlar a política geral da coroa; a ci­dade, por outro lado, era o local de enraizamento e do exercício do poder em limites territoriais mais restritos, dispondo de recursos fiscais reduzidos. 19

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Cidades e sociedades urbanas na Itália medieval

Evidentemente é aí que atuam as famílias em contato com as estruturas centrais, cujos objetivos não excedem à esperança de uma honrável eminên­ cia social local . É claro que no século XIV as cidades meridionais, sici­lianas sobretudo, colocam por escrito seu corpus estatuário, procuram aumentar seu horizonte jurídico, impõem as scrutinia (eleições) de seus próprios magistrados. Mas, por mais interessante que seja esse movimento, o ­mundo meridional não se caracteriza nem pelo urbanocentrismo, nem pelo policentrismo. As comunas rurais e o campo não mostram, salvo raras exceções, a dominação direta da cidade: se as instituições urbanas do Sul são complexas, elas estão, contudo, articuladas entre a distinção local e o pertencimento à coroa. Daí, uma dupla administração, na qual coabitavam paralelamente oficiais reais, emanação periférica do aparelho real (superintendentes de exportações de grãos, titulares de serviços fiscais diretos ou indiretos, capitães reais, oficiais de justiça etc.), e um aparelho administrativo de alcance local. Certamente, o primeiro grupo não é uma abstração conceitual! Ele é constituído por homens que não pertencem necessariamente à cidade para a qual são nomeados, capitães provenientes da aristocracia militar frequentemente rural, administradores fiscais normalmente exteriores ao reino (da Toscana principalmente); logo, a administração local poderia ser objeto de apropriação por diversas famílias. Nunca era a cidade que impulsionava a sua própria história e ainda menos a do reino. Por todas essas razões, o Sul não entrou senão acidentalmente na dinâmica de conjunto deste projeto, por meio do qual procurei, sobretudo, compreender e apresentar a um público pouco familiar um movimento histórico que ilustra verdadeiramente uma outra Idade Média, aquela de uma autêntica civilização comunal. A redação e a conclusão deste trabalho foram possíveis graças ao apoio de numerosos colegas e amigos que me deram sugestões e artigos ainda inéditos ou quase inencontráveis. Agradeço a Jean-Claude Marie Vigueur e Jean-Marie Martin. Rosa Maria Dessi, Cécile Caby e Armand Jamme me forneceram preciosas informações, algumas vezes dados de pesquisa ainda em curso, das quais me servi abundantemente. Sou grato por sua generosidade.

Corrao (1998).

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Cidades e sociedades.indb 20

19/05/2011 12:15:39


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